O reino de cristal facilmente quebrável- DTRL 29
Parte 1: O globo de cristal e o começo da queda
Sentada de seu trono de cristal ricamente trabalhado a rainha das fadas olhava para o globo de cristal mágico que repousava sobre uma almofada de cetim ao lado do trono. Seu olhar era carregado de tristeza, pois ela percebia que o objeto mágico estava dando seus últimos suspiros. A luz vermelha que ele emitia estava de um rosa desbotado e sem vida. Logo ele estaria apagado para sempre e tudo estaria perdido. Todo um reino de luz se converteria em trevas.
Segundo o que afirmavam as profecias antigas no dia em que o globo mágico parasse de irradiar seu brilho toda a magia das fadas se perderia, visto que o globo era o que mantinha a magia viva. Ainda segundo a profecia depois que o brilho parasse o destino do globo ficaria nas mãos de uma criança que a profecia citava apenas como “criança sem nome”. Se essa criança revertesse o problema todo o reino das fadas voltaria a ser o que foi um dia. Mas se essa criança estivesse morta no momento em que o globo apagou ou se não revertesse o problema o reino das fadas chegaria ao fim e seria apenas questão de tempo para que o lugar onde o reino delas estava fosse tomado por criaturas que as profecias chamavam de humanos. Essas ditas criaturas nunca saberiam que as fadas um dia reinaram...
Lys, a rainha das fadas, sempre encarou essas profecias como nada mais que histórias para assustar os mais jovens, todavia quando, depois de séculos,a primeira rachadura apareceu no globo ela fez de tudo para que a falha não se espalhasse e para que o artefato mágico não perdesse a sua força, tentou até achar a tal criança sem nome da profecia, todavia seus esforços foram em vão...
Ela ainda estava perdida em seus pensamentos quando o globo parou de brilhar. Quando finalmente o antigo artefato mágico que manteve a magia viva e o caos longe morreu.
Lys pegou no globo apagado com as mãos trêmulas. Por um breve momento ela teve a esperança de que ele se acenderia em suas mãos. Teve a esperança de que as forças da natureza sentiriam o seu desespero e iriam intervim em seu favor. Nada disso ocorreu.
Ela sabia que o povo jamais poderia saber do ocorrido. Isso iria gerar o caos. Todos sabiam das profecias e lendas ao redor do globo. Iria cuidar para que o fato não saísse das paredes do castelo.
Uma semana se passou desde o momento em que o artefato morreu. Enquanto voava pela cidade Lys reparava que nesse tempo nada de diferente ocorreu. Olhou para a fonte de água mágica que ficava na praça central e reparou que ela continuava cristalina como sempre. O céu continuava belo. Os habitantes da cidade estavam felizes. Tudo ocorria como sempre ocorreu há séculos. Ela começou a achar que as profecias eram apenas lendas. Que foi ignorância da parte dela se preocupar tanto a toa, mas mesmo assim continuava procurando a criança da profecia.
“ Afinal de contas estamos seguros.”- Foi o que pensou. Antes de voltar ao palácio deu uma última olhada na paz e alegria do povo. Foi a última imagem agradável que viu antes da queda que viria no dia seguinte.
No dia seguinte logo que acordou percebeu que algo estava errado. Sentia dores na região de suas asas. Ficou muito preocupada com isso. Não haviam muitas doenças registradas que atingissem as asas. Poderia ser algo sério, por isso ia chamar o curandeiro do palácio.
As asas eram as coisas mais importantes para as fadas. Elas nasciam por volta dos cinco anos, as vezes por volta dos sete. As asas eram tão importantes que era motivo de desespero e preocupação quando a criança passava dos sete anos e ainda não tinha asas. Mas pelo que ela sabia as asas sempre nasciam, podiam demorar, mas sempre nasciam. Pelo menos ela nunca conheceu uma fada sem asas, apesar de alguns boatos afirmarem que as crianças que não desenvolviam asas eram lançadas, no silencio da madrugada, do penhasco que ficava no limite do reino, mas eram apenas boatos...
Uma fisgada de dor a tirou de seus pensamentos. Antes que percebesse estava gritando. O curandeiro do palácio entrou apressado em seus aposentos. O desespero dela aumentou quando viu as asas do curandeiro. Elas haviam adquirido um aspecto desbotado e o pior de tudo era que pareciam prestes a se desfazer. Algo dentro dela sabia que aquele era o futuro das suas asas.
Parte 2: A criança sem nome e a estranha mulher
Ela não tinha um nome. Na verdade quando nasceu tinha um, mas ela não lembrava mais do nome que seus pais haviam lhe dado. As suas memórias da época em que morou com os pais eram embaçadas e sem vida. Apenas lembrava que eles nunca a amaram realmente, pois ela era diferente.
A criança não conheceu muito do mundo, mas sabia que era diferente. Sabia isso pelos seus irmãos que eram normais, todos eles desenvolveram asas na idade certa e tinham os olhos e os cabelos da cor certa. Nenhum deles nasceu com os cabelos brancos e com os olhos vermelhos que a criança sem nome tinha. Assim como nenhum deles tinha aversão ao sol. Ah, e mais importante todos eles conseguiam falar normalmente.
Era mantida trancada em um quarto. Tanto pelos seus pais terem vergonha dela como por sua pele não poder entrar em contato com o sol. As vezes seus irmãos iam brincar com ela e lhe levar comida. Duas vezes por ano sua mãe também ia lhe ver. Seu pai nunca ia. A única vez que viu seu pai foi na madrugada em que ele a pegou para lançar do penhasco. Ela podia ter esquecido do seu nome, mas ela nunca se esqueceria daquela noite. Nunca esqueceria dos gritos da sua mãe pedindo para que o pai não a jogasse. No fim não foi jogada, mas foi abandonada. O que foi muito pior. Acompanhou com os olhos cheios de lágrimas sua família se afastando e a abandonando na beira do penhasco.
A criança teria se lançado do penhasco por vontade própria depois que aqueles que ela chamava de família foram embora, mas uma voz doce a chamou e perguntou o que uma menina tão bonita como ela fazia sozinha naquele local. Lembra que na época seus primeiros pensamentos foram que a pessoa dona da voz estava lhe zombando, pois ela não era bonita. Se fosse bonita e normal não teria sido abandonada.
Quando se virou para a dona da voz recuou alguns passos e quase caiu. Teria caído se a mulher não tivesse a pegado de forma gentil pelos braços.
A mulher que falou com ela era a mulher mais feia que a criança havia visto na vida. A estranha figura tinha um dos olhos totalmente branco e maior que o normal. Os cabelos eram de um louro desbotado e restavam poucos cobrindo a cabeça manchada dela. Mas o mais assustador de tudo era a cicatriz que atravessava o rosto da mulher. A cicatriz começava acima do olho branco, passava pelo nariz e terminava perto do queixo.
-Minha aparência a assusta, minha menina?
A criança lembra que não respondeu. Não poderia responder. Não conseguia falar. Além de criança sem nome ela era criança sem voz.
-Como se chama, menina? – a mulher havia perguntado com a mesma voz doce de sempre. Ela se perguntou como um ser tão feio teria uma voz tão afetuosa. Um questionamento que invadiu a mente da menina naquele momento e que até os momentos atuais se fazia presente.
-Você não pode falar? Mas tenho certeza que entende o que digo. Parece ser uma menina muito esperta. Sim, muito esperta. Venha comigo. Não pode ficar sozinha nesse local.- a mulher fez uma pausa e depois completou- Sua família se foi para sempre.
Depois de um momento de silêncio as feições feias da mulher ficaram ainda mais feias quando ela fez uma expressão de profunda tristeza e apontou um de seus dedos para a direção da cidade e disse, não mais com uma voz alegre:
-Essas fadas que moram naquela cidade não aceitam o diferente. Se acham perfeitas com as suas asas de muitas cores e suas aparências belas. Nós duas nunca seremos aceitas. .. Na verdade quem sabe um dia... Mas hoje não... – as feições da mulher se suavizaram e ela estendeu a mão para a menina- Vamos embora, minha criança sem voz.
Ela foi com a mulher que com o tempo meio que aprendeu a amar, apesar de tudo.
A menina não tem noção de quanto tempo se passou desde aquela noite. Era difícil ter noção do tempo na cabana em que morava com Maylla, a mulher que cuidava dela. O que tornava tudo ainda mais difícil era o fato da criança não ter envelhecido.Com seus olhos atentos ela viu Maylla ficar mais velha e mais feia. Acompanhou as estações do ano irem e voltarem, mas sua aparência em nada mudou. Continuava com a mesma idade e tamanho que tinha naquela noite. Continuava com a aparência de uma criança de dez anos, apesar de em sua mente ser mais velha.
A criança suspeitava que essa sua eterna juventude tinha alguma coisa a ver com as poções que Maylla lhe dava antes de dormir. Poções essas que tinham um gosto estranho. Meio amargo. Mesmo com o gosto meio ruim tomava sem reclamar. Até porque não tinha voz para reclamar. Mas ela não tinha certeza se as poções eram realmente o que mantinham a sua juventude, pois se Maylla conhecia poções que mantinham a aparência porque ela não tentava algumas nela mesma?
Ela sentia como se a mulher que a criou estivesse a preparando para algo, mas não sabia ao certo para o que. Talvez tivesse alguma coisa a ver com uma tal profecia que as vezes a mulher sussurrava enquanto dormia, mas que nunca citava enquanto estava acordada. Se Maylla tivesse a ensinado a ler, talvez ela descobrisse sozinha em um dos muitos livros que tinham pela cabana. Mas a criança não sabia ler e suspeitava que Maylla não a tinha ensinado de propósito. Esse seria um fato que ela nunca perdoaria. Isso e o fato da mulher nunca ter lhe dado nenhum nome.
Como ela não tinha voz não conseguiu falar seu nome enquanto ainda se lembrava dele. Se ela tivesse aprendido a ler e escrever naquele tempo poderia ter o escrito e no presente não seria uma criança sem nome.
“Mas bem que ela poderia ter me dado outro nome. Bem que ela poderia ter me ensinado a ler”- pensou em sua mente com um pouco de mágoa. Eram pensamentos recorrentes...
Parte 3: Um estranho mosaico de cores
A fada que um dia foi rainha andava de cabeça baixa pela rua. Ocultava o seu corpo com uma capa com capuz que ia até seus pés. Tudo estava sem cor e sem vida. As ruas estavam tomadas por um estranho mosaico de cores. Mosaico esse que era formado por pedaços das asas das fadas.
Todos , assim como a rainha, haviam perdido as asas e agora eram obrigados a andar ou a se arrastar em alguns casos. A magia não estava mais presente. A fonte de água mágica havia secado assim como as árvores que tinham belas folhas lilás. As únicas coisas que haviam restado eram as que não eram mágicas.
Lys andava com cuidado pois ainda sentia dores na região das costas e também não queria pisar nos retalhos de asas. Os pedaços estavam começando a ter um cheiro forte de coisa estragada. Assim como os restos enegrecidos das árvores mágicas.
Olhar para essas coisas deixava a rainha ainda pior do que estava. A fazia ter vontade de voltar para o palácio e se trancar em seu quarto, mas não poderia fazer isso. Talvez ainda houvesse tempo. Talvez se encontrasse a criança da profecia a magia voltasse.
Em suas pesquisas ela encontrou uma profecia complementar e desconhecida que falava da aparência da criança. Dizia que ela tinha olhos vermelhos e cabelos brancos. Isso tornou tudo ainda mais difícil, pois ela nunca ouviu falar de uma criança assim. A aparência descrita a fez se lembrar de alguns animais que nasciam com os olhos vermelhos e com os pelos brancos. Esses animais geralmente morriam cedo pois parecia que o sol lhes fazia algum tipo de mal. Segundo alguns boatos algumas crianças nasciam sensíveis ao sol também, mas essas viviam ainda menos que os animais, pois segundo falavam se o sol não desse um fim a vida da criança o penhasco dava... Essas crianças nasciam com os cabelos claros, mas não brancos. Com os olhos igualmente claros, mas não vermelhos.
Lys começou a pensar que talvez a criança sem nome da profecia fosse uma metáfora para um desses animais. Ela já estava no desespero e acreditando em qualquer coisa. Mas se fosse como o dito animal poderia consertar o globo ?
Balançou a cabeça e tentou tirar essas ideias da mente. O tempo estava acabando por isso teria que tomar uma medida radical. Iria colocar um anuncio por todo reino. Para que todos soubessem que essa criança era a única esperança. Não havia mais tempo a perder.
Parte 4: O tempo se aproximava
Estava chegando o dia mais esperado por Maylla. O dia em que ela seria aceita na sociedade das fadas apesar da sua aparência e de não possuir asas. O dia em que seria tratada como uma heroína por ter salvado a todos. Por ter levado até elas a criança da profecia.
Nunca vai esquecer da noite em que quando estava prestes a desistir de tudo e a se jogar do penhasco achou a menina especial. Mesmo no escuro da madrugada que era iluminada somente pela forte lua cheia viu os olhos vermelhos da criança e tudo fez sentido. Naquele momento a menina era a criança mais linda do mundo.
Maylla viveu uma vida de abandono desde a tentativa frustrada de a matar. Foi jogada do penhasco quando não desenvolveu asas, mas algo deu errado e ela não morreu.
Nunca vai esquecer o momento em que acordou da queda que seria para a sua morte. O buraco que ficava abaixo do penhasco era úmido e escuro. Logo no primeiro momento depois de acordar além da certeza da dor teve a certeza que não estava sozinha. Essa certeza se confirmou quando o lugar começou a se iluminar de forma sobrenatural. Era como se estivessem a esperando. Tochas que ela nunca vai entender como estavam lá se acenderam. Quando viu o que a cercava gritou. Seu grito ecoou por todo buraco.
Estava cercada por ossos. Muitos ossos. Parecia que ela estava cercada pelos ossos de todas as crianças-fadas imperfeitas que foram atiradas para a morte desde o principio do reino. Ainda estava em choque quando sentiu alguma coisa passar por cima de sua perna. Pensou que fosse uma aranha, porém quando se virou percebeu que para seu horror que era uma mão que se movia de forma agitada em direção ao pedaço de um braço.
Todos os esqueletos começaram a se montar na sua frente. Imobilizada pela dor e pelo medo ficou apenas assistindo o espetáculo assustador. Quando todos os esqueletos estavam montados assumiram a forma que eles tiveram um dia. As crianças que foram um dia. Só que dessa vez todos tinham asas, mas não asas de borboleta como todas as fadas tinham. Não... Essas crianças tinham asas de morcego. Mas o pior de tudo eram os olhos, ou melhor a falta deles. Todas as crianças tinham apenas buracos no lugar dos olhos. Todavia eles viam. Mesmo muitos anos depois Maylla ainda sente o olhar deles sobre ela. Eles viam com os olhos sombrios da alma atormentada deles. Ela desmaiou no momento em que essas criaturas avançavam para cima dela.
Quando acordou estava fora do buraco e perto de uma cabana abandonada que se tornaria seu lar. Ainda sentia dor por todo seu corpo, mas era como se seus machucados estivessem cicatrizando. Ela podia não ter asas, mas tinha uma capacidade rápida de cicatrização.
Levou horas para se arrastar para dentro da cabana que parecia ter sido abandonada as pressas. Uma panela de sopa ainda soltava fumaça em cima da mesa e muitos livros estavam espalhados pelo chão. Livros esses que mais tarde se mostrariam muito úteis.
Seus ossos quebrados se emendaram de novo, mas as cicatrizes da queda continuaram. Principalmente em seu rosto que ficou parcialmente esmagado e atravessado por um corte. Nunca mais conseguiu se olhar em um espelho. Mas ela não precisava de um espelho para saber que a medida que envelhecia ficava ainda mais feia. Via isso refletido no rosto da criança sem nome.
Sabia que a menina a achava feia. Maylla não demonstrava, mas isso a feria profundamente. Isso a impedia de amar realmente a criança. Isso e o fato de no fundo ela sentir que a menina poderia ser uma daquelas criaturas que ela achou no fundo daquele buraco. Talvez não chegasse a isso, mas havia algo errado com a menina. Isso era fato. A maior prova disso era que mesmo depois de todos esses anos ela continuava criança. Talvez isso fizesse parte da profecia.
Nos muitos anos de abandono Maylla aproveitou para ler os livros e descobriu que muitos falavam da tal profecia sobre o globo mágico e a criança sem nome. Falavam da aparência que ela teria que ter e de como somente a menina poderia consertar o globo mágico ou o quebrar de vez. Os outros livros falavam de poções e remédios caseiros que ela usou para se tratar. Com o tempo, com cartas esquecidas nas gavetas e palavras escritas nos próprios livros, ela descobriu que um estudioso exilado morava na cabana. Isso explicava os livros. Estudioso este que provavelmente foi expulso por crianças com asas de morcego antes dela acordar.
Desde o primeiro momento em que acordou tinha vontade de morrer. Somente não fez isso por medo do que a esperava depois da queda do penhasco. Tentou se distrair com os livros e com o cultivo de plantas. Mas um dia o abandono foi maior que o medo e ela decidiu se jogar. Foi no dia que a criança entrou na sua vida junto com os sonhos de ser aceita pelas fadas. Sonhos infantis era verdade. Dentro de sua alma Maylla era mais inocente que a menina que criava.
A criança tinha um grande poder dentro de si. Tinha sim. E Maylla tinha muito medo da criança. Não via a hora de levar a menina para o reino das fadas e poder realizar os seus sonhos.
Naquela noite quando entrou no quarto da criança sentiu um arrepio. O ar parecia pesado. Ela estava levando em uma xícara uma porção que preparava toda noite para a menina. Uma porção feita com as ervas que plantava no quintal. Essa porção tinha como objetivo fazer a menina dormir a noite toda. Maylla não dormiria tranqüila sabendo que a criança andava acordada pela casa. Principalmente porque a menina preferia a noite do que o dia por causa da aversão ao sol.
-Está na hora.- uma voz sussurrou e fez Maylla se arrepiar e deixar a xícara cair. Seu primeiro pensamento foi de que de alguma forma assustadora a menina estava falando, mas algo dentro dela sabia que a voz não era da menina. Até porque para seu espanto ainda maior a criança estava dormindo na cama sem precisar da porção.
Demorou um pouco para se recuperar, mas quando se recuperou se alegrou, pois estava chegando a hora tão esperada. Ela sabia que quando chegasse o momento de levar a menina seu corpo sentiria ou aquelas criaturas avisariam, como foi o caso.
Parte 5: A criança, a rainha e o reino de cristal
Lys, a rainha, foi em pessoa as receber nas portas da cidade quando o mensageiro real avisou da chegada delas. Ela mal pareceu notar na horrível aparência de Maylla. Seus olhos estavam na criança que acompanhava a mulher. A menina tinha exatamente os olhos e os cabelos descritos na profecia. Ela pensou que talvez nem tudo estivesse perdido.
Enquanto andavam pela cidade Maylla somente conseguia pensar em como, independente do desfecho, tudo mudaria para sempre. Ou para melhor ou para pior. Ela torcia que para melhor. Era como se toda cidade tivesse essa mesma sensação. Pois estava um clima de silenciosa expectativa. Como se todos prendessem a respiração para ver o que iria ocorrer a seguir.
Antes de entrarem no palácio a mulher ouviu ao longe o bater de asas. Olhou para trás e não conseguiu ver nada por causa da noite que caia. Mas ela sabia que aquelas criaturas estavam de longe observando com os horríveis buracos que tinham no lugar de olhos.
O tempo pareceu parar quando as três ficaram diante do globo mágico apagado. Eram apenas duas mulheres e uma criança diante de um artefato quebrado. Eram uma rainha que queria salvar o seu reino, uma fada sofrida que queria apenas ser aceita e uma criança sem nome que guardava magoas em seu coração.
Lys se ajoelhou diante da criança e a abraçou.
-O futuro do reino está em suas preciosas mãozinhas, minha querida. Pense em como todos ficarão felizes quando as coisas voltarem ao normal. Pense em todos que terão suas asas de volta.- disse a rainha estendendo o globo apagado para a criança que logo o pegou.
O que a rainha não sabia e nem poderia saber era que aquele globo mágico além da magia mantinha guardado as lembranças.Por ser um artefato mágico muito poderoso todos os fatos ocorridos desde o começo do reino das fadas estavam gravados nele. A magia foi embora, mas as lembranças continuaram e foi a essas lembranças que a criança teve acesso.
Todas vieram de uma vez só. A criança sem nome viu como desde o principio do reino as crianças-fadas que não desenvolviam asas ou que nasciam diferentes eram rejeitadas e lançadas do penhasco. No silencio da madrugada. Viu como ano após ano, século após século a história se repetiu. Viu como com o tempo a dor das crianças rejeitadas e mortas se acumulou e elas se tornaram novas criaturas. Criaturas estas que a queriam como rainha. Que queriam que ela fizesse o que eles não podiam fazer. Que fizesse justiça.
A criança não tinha um nome porque o nome dela era o de todas aquelas crianças rejeitadas. A criança não tinha voz porque aquelas pobres criaturas nunca tiveram a voz ouvida. Mas ela seria a voz deles. Seria sim.
As lembranças também mostraram como todas as rainhas e reis se fizeram de cegos para o crime contra as crianças. Encaravam apenas como boatos. A criança achava bem feito que o reinado das fadas estivesse no fim.
A luz aos poucos foi voltando ao globo, mas não era a luz vermelha de antes. A antiga luz deu lugar a uma luz escura. Negra como a madrugada que ocultava os crimes. Negra como o fundo do buraco. Negra como as asas de morcego das crianças.
Quando Lys viu aquela luz soube que tudo estava perdido. Recuou alguns passos para trás e tentou fugir, mas antes que chegasse a metade do caminho uma lança composta por matéria tão negra como a luz do globo a acertou em cheio e a prendeu na parede. Antes de se entregar a escuridão viu a criança sem nome lhe encarando, em uma das mãos segurava o globo e na outra tinha outra lança composta de matéria escura.
Quando teve certeza que a antiga rainha das fadas havia morrido a criança sem nome desfez a lança e jogou o globo no chão. Com uma forte pisada o quebrou de vez. Estava na hora de por um fim naquelas lembranças horríveis contidas no globo e naquela magia a muito morta.
Enquanto olhava para os cacos pensava em como aqueles cacos representavam o reinado das fadas. O reino delas parecia grande e poderoso, mas era que nem aquele cristal facilmente quebrável.
Maylla a olhava com medo. O globo também havia lhe mostrado todo o sofrimento pelo qual a mulher passou. A criança não sentia mais magoa dela. No fim ela foi apenas mais uma vitima. Teria um lugar para ela no seu reinado.
A criança sabia que seria rainha. Podia ouvir o bater das asas de seu povo se aproximando. Por isso caminhou calmamente para o trono de cristal ricamente trabalhado e sentou nele. Planejava ser rainha até as criaturas chamadas de humanos chegarem ou quem sabe até depois da chegada deles. Se esses humanos se mostrassem egoístas e vaidosos como as fadas a criança poderia dá um jeito neles. Mas primeiro iria os observar...
Depois de tocar o globo algo havia mudado dentro dela. Tinha agora todo o conhecimento que era guardado no globo e sabia que o reino dos humanos poderia ser quebrado assim como o das fadas.
Tema: Conto de fadas