UM CONTO DE VINGANÇA DTRL29

Clara abriu lentamente os olhos. Suas mãos tocaram o chão forrado por folhas secas e frias. Estava em um bosque estranho. A noite era sombria, iluminada precariamente pela Lua que brilhava no céu.

Ainda tonta, ela se sentou, tentando relembrar o que tinha acontecido. Mas suas lembranças estavam atrapalhadas, como um filme borrado. Tudo que recordava era de um homem de olhos vermelhos com um machado nas mãos.

Sentia que todo seu corpo doía. Ergueu suas mãos, analisando-as. Não estavam feridas, mas muito sujas. Percebeu que ainda usava seu vestido predileto de saia amarela. Notou que seu tronco estava despido, e o corpete azul jogado sobre suas pernas. Em um ato automático, levou as mãos aos seios, cobrindo-os, envergonhada, sem nem saber o porquê, já que estava sozinha. Sentiu suas mãos tocarem em algo pegajoso e abaixou o olhar. Suas mãos estavam banhadas por sangue, e entre seus seios, havia um profundo corte vertical, onde ela poderia enfiar toda sua mão. Apavorada, e crente de que morreria, voltou a se deitar sobre as folhas úmidas do bosque. Imaginara que seu fim estava perto. Fechou os olhos, ignorando a dor. Imaginou se o céu estaria crivado de estrelas, já que as densas árvores não a permitia enxergar o alto.

Adormeceu.

Acordou com o som dos pássaros cantando. Tocou seu tronco, mas não havia mais buraco algum. Examinou atentamente, e só percebeu uma cicatriz vermelha, como se tivesse feito uma cirurgia. Terminou de colocar seu vestido, fechando o zíper pelas costas e se sentou sentindo seu estômago roncar de fome.

Caminhando despreocupadamente sobre sua perna, estava uma formiga grande, uma espécie de tanajura, rebolando com seu traseiro avantajado. Sem pensar, Clara a segurou entre os dedos e a levou à boca. Mastigou-a sentindo um estouro, como se fosse uma jabuticaba, e pode sentir o conteúdo pegajoso e de gosto duvidoso, tomar sua língua. Quando engoliu, procurou por outras, mas não encontrou.

O dia amanhecera. Ela podia perceber que o Sol brilhava, porém não o podia ver. Cambaleante, ela andou procurando a saída daquele lugar que causava arrepios. Ao longe, percebeu um filete de luz com maior intensidade. Correu em sua direção, empurrando folhas e cipós que batiam contra seu rosto.

Chegando ao final da trilha, ela parou, olhando satisfeita para o campo verde e aberto à sua frente. Alguns metros adiante, havia uma casinha com fumaça saindo pela chaminé. "Estou a salvo", pensou, colocando a perna esquerda para fora da mata. Antes que ela apoiasse o pé no chão, sentiu uma dor lancinante e recuou para trás, caindo. Em sua perna havia levantado bolhas enormes, como se tivesse mergulhado em uma caldeira fervente. Se conseguisse, teria chorado, mas lágrimas não saiam de seus olhos.

Estranhamente, as bolhas foram murchando e logo já não havia nada. Ela voltou para perto do local, imaginando se teria alguma barreira invisível que não pudesse atravessar. Se sentou de lado, jogando as pernas para a direita e se apoiando sobre o braço esquerdo. Tudo que podia era olhar. Talvez aparecesse alguém que lhe socorreria.

Conforme o dia foi passando, as sombras das árvores mudaram de posição. E quando a sombra fugiu do lado dela, a luz do Sol tocou seu braço, queimando-o como fizera anteriormente com a perna. Gritando, ela recuou para dentro da mata.

Quando a noite chegou, ela voltou. Com os olhos fechados e dentes cerrados, colocou a mão para fora da abertura da mata. Nada aconteceu. Então ela se lançou correndo pelo campo, rumo à casinha branca. Seu inimigo era o Sol.

O vento batia veloz contra seus cabelos curtos e negros. Quando chegou, percebeu que a casa era muito pequena, como se fosse de brinquedo. Bateu à porta e segundos depois um homenzinho atendeu. Era um anão de barbas longas e brancas, seus olhos negros a investigava, com expressão carrancuda.

— Quem é você? — Perguntou ele, com a voz estranhamente forte para um ser tão pequeno.

— Sou Clara, filha do Rei. Fiquei perdida no bosque, será que pode me ajudar?

— Filha do Rei? — Ele curvou a cabeça, duvidoso.

Logo outros anões tão pequenos quanto ele, chegaram à porta. Um burburinho começou e eles fizeram uma roda, entrelaçando os braços nos pescoços uns dos outros, cochichando. A garota se ajoelhou sobre as pernas, esperando por resposta.

O vento assoviava, estava gelado, embora Clara não sentisse frio algum.

— Pois bem. Se és realmente a princesa, o que fazia no meio de um bosque sombrio como esse? — Se pronunciou um dos anões, dando a perceber que era o líder.

— Fui raptada por um homem mau, que queria me matar com um machado! — Não vendo reação dos homenzinhos, ela colocou as mãos sobre o rosto e ensaiou um choro que não era verdadeiro — Estou com fome, frio, com muito medo. Por favor, me ajudem!

Comovido, o anão de gorro verde a tomou em um abraço envolvente, chorando.

— Tudo bem, entre em nossa humilde moradia! — Disse ele.

— Você não pode decidir nada sozinho, Dengoso! — A voz áspera do baixinho soou ríspida e raivosa.

— Tudo bem, Zangado. Ela parece precisar de ajuda — O líder se pronunciou.

Clara se deixou conduzir por Dengoso, tendo que se abaixar para passar pela porta da casa.

Lá dentro, havia uma pequena mesa, com frutas e pães, e sete caminhas enfileiradas.

Ela se sentou em um canto que melhor lhe cabia e foi servida com bebidas e comida, pelos anões, menos por Zangado, que a todo momento reclamava pela presença da garota.

Mais tarde, todos se recolheram em suas camas, e Clara se deitou sobre uma coberta de lã, feita pelos próprios anões, segundo eles. Todos dormiram, menos Clara. Apesar de estar com o estômago cheio, ela sentia uma dor aguda e impertinente em suas entranhas. Sem que pudesse conter, suas presas cresceram, de modo que não cabiam mais em sua boca. Seus olhos ficaram vermelhos e ela agiu como se fosse um animal controlado por seus instintos.

Sorrateiramente, foi até o leito de Zangado e o tomou nos braços como se fosse um bebê. Saiu para o bosque e quando ele acordou, havia dentes cravados em seu pescoço, sugando de si toda a seiva que mantinha sua vida. Ele tentou se soltar, em vão, enquanto Clara se satisfazia com seu sangue. Quando ela já se sentia saciada, percebeu que o corpo dele já não tinha vida. Jogando-o em uma vala perto de uma cachoeira que caía brilhando sob a luz da Lua, Clara disse, passando o dorso da mão pelos lábios manchados de sangue:

— Deveria ter pego Dengoso. Esse sangue tem gosto de fel!

E voltou tranquilamente para a casa branca, satisfeita e com um sorriso encantador no rosto.

Por mais duas noites foi assim. De manhã os anões procuravam pelos companheiros sumidos e Clara ficava dentro de casa, limpando e cozinhando, e à noite, ela fazia mais uma vítima. Até que Mestre, que era muito inteligente, fingiu dormir e quando Clara pegou Soneca nos braços, ele se levantou e gritou para os outros anões, que sacaram suas armas, que nada mais eram do que pequenas facas.

Clara jogou Soneca no chão e esboçou um sorriso sarcástico.

— Acha que podem me deter com meras faquinhas de brinquedo?

Ela agarrou Feliz pelo pescoço e o ergueu, cravando suas presas em seu pescoço. Os demais se lançaram em sua direção, enterrando as lâminas em sua perna. Ela os chutou para longe, e quando um deles tentou correr pela porta, ela bloqueou a saída, agarrando e sugando o sangue de cada um, apreciando e se satisfazendo aos poucos, enquanto os anões arregalavam os olhos, desfalecendo com uma expressão horrorizada no rosto.

Exterminados todos os pequenos homens, ela se sentia empanturrada e com uma euforia extraordinária. Sua pele sempre fora branca, mas, naquele momento, sua tez era quase transparente e podia ver suas veias azuis salientes, cheias de sangue.

— Chegou a hora de fazer uma visitinha ao Castelo! — Disse, enquanto saía porta afora.

Chegando ao Castelo do Rei, sorrateiramente, ela invadiu o quarto da Madrasta, que ainda estava acordada, sentada em frente ao seu Espelho Mágico, conversando com ele, que gaguejava, sem conseguir concluir frase alguma. Clara parou bem atrás da Rainha e tossiu de mentira, para que ela se virasse e desse de cara com ela.

— Você? — A Rainha se levantou rápida, tinha os olhos assustados e incrédulos — Mas o Lenhador me trouxe seu coração!

— De fato, mas eu não preciso mais dele — Respondeu, enquanto caminhava vagarosamente para o encontro com a Madrasta, que recuou até ter suas costas prensadas na parede.

Clara estava suja e sua roupa manchada por sangue seco e escuro. O Espelho tentou falar alguma coisa, mas foi interrompido quando Clara bateu a mão nele com força, o jogando no chão. Ele se estilhaçou em mil pedaços, silenciando-se para sempre.

A Rainha foi tomada por um pavor horripilante quando viu Clara abrir a boca em um ângulo sobre-humano e suas presas desceram, brilhantes e afiadas.

Ainda tentou pegar uma adaga que ficava presa na parede, mas Clara foi mais rápida, agarrando-a em um abraço apertado, enquanto mordia impiedosamente seu pescoço. Mas só sugou o tempo suficiente para a Rainha ficar sem forças para reagir. Colocou-a no chão e tomou a adaga da parede.

— Você queria um coração, então vou lhe dar um — Ela cravou fundo a lâmina no peito da madrasta, que gritou com lamúria e suas últimas lágrimas rolaram pelo rosto.

Clara arrancou o coração da Rainha, ainda pulsante e o colocou sobre as mãos da mulher, cruzadas sobre o peito aberto.

Nisso, o Rei, seu pai, entrou correndo pelo quarto, atraído pelo grito da esposa.

Parou, estarrecido, ao perceber a cena.

— Filha? — Foi só que conseguiu dizer, engolindo em seco.

Ela já não estava com os dentes protuberantes à mostra. Encarou-o sem saber realmente o que dizer. Seu olhar foi tomado de raiva e tristeza ao mesmo tempo. Segurou o cabo da adaga com tanta força que a junta de seus dedos ficaram vermelhas.

— Pai — Ela se virou na direção dele, ficando a poucos centímetros de seu rosto.

— Por que fez isso, querida? — Sua voz era suave e trêmula. Ele podia sentir o ódio com que a filha segurava a arma, e não via a hora que a cravaria em seu corpo.

— Por que você não cuidou de mim? Por que não assumiu seu papel de pai viúvo em vez de querer arrumar uma nova mãe para o fazer para você? — Ela tinha amargura na voz — Ela me matou, pai. E a culpa foi sua!

Ela recuou alguns passos para trás.

— Eu te amo, filha. Só queria que você fosse feliz...

— Não! Você queria passar a responsabilidade de criar sua filha para outra pessoa, que não me amava, e nem amava a você! — O tom culposo e irritado deu lugar a um tom de voz sombrio, rouco e pesado — Mas o senhor terá a eternidade para se arrepender disso, 'papai'!

Com um golpe só, forte e certeiro, Clara levou a adaga ao pescoço, se decapitando e lançando sua cabeça ao chão, que rolou até parar perto da porta, com os olhos vidrados. Eles perderam o tom vermelho, retornando para o castanho humano. O restante de seu corpo pesou sobre os joelhos, curvando e caindo de costas no chão, se contorcendo como uma cobra venenosa.

Seu pai soltou um grito tão doloroso e estridente que pode ser ouvido por todo Castelo, correndo ao encontro do corpo estirado do que um dia foi sua princesa.

Ele abraçou-a, manchando suas mãos com o sangue que jorrava do pescoço decapitado de Clara. Seu choro foi interrompido com a vibração do corpo dela, que tremia incontrolavelmente em espasmos repetidos. Começou a ondular, formando uma massa de carne podre e sangue. O Rei se rastejou até recostar na parede, mal acreditando no que via. A cabeça de Clara rolou, se juntando ao restante do que fora um corpo e também se diluiu, formando uma gelatinosa e fétida pasta sangrenta. O Rei juntou os joelhos ao peito, abraçando-os e tapou o rosto com as mãos ainda sujas de sangue, sem ter coragem para continuar a ver o que restara de sua filha.

Com um barulho de algo queimando, a massa sangrenta pegou fogo e em menos de trinta segundos, tudo o que restou foram cinzas.

O Rei destampou os olhos marejados, olhando assustado para a última faísca de fogo que se apagava, sem perceber que seus lábios ficaram banhados pelo sangue do que já não era sua filha, mas um monstro noturno em que ela havia se tornado, e aquele sangue foi preenchendo suas mucosas, entrando e contaminando sua corrente sanguínea, como o veneno de um ser peçonhento.

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TEMA: CONTO DE FADAS

V. Honorato