LAÇOS DE SANGUE (parte 1)

Certamente, hoje, eu sou o homem mais infeliz deste e de outros tantos mundos. Há muito tempo sou um homem rico, muito bem de vida. Para dizer a verdade dinheiro me sobra em abundância. O grande problema foram os meios utilizados para conseguir minha fortuna e é isso que eu espero relatar antes de ser completamente consumido por esse câncer de pulmão que come meu órgão respirador e me causa uma forte dor a cada tecla pressionada neste pequeno computador portátil. Espero que minha escrita o alerte e que eu possa revisar esse texto antes de perecer completamente e iniciar minha passagem sabe-se lá para onde. Cansei de ouvir que Deus, em sua imensa bondade, sempre perdoa os humanos errantes, mas será que o que eu fiz tem algum perdão divino. Bom, será melhor você entender minha história e fazer seu próprio julgamento.

Eu me chamo Miguel. Nome de anjo, porém passo longe de um querubim e muito mais longe ainda de um ser justo e sem pecado. Estou sempre um pouco acima do peso e em minha cabeça já me faltam milhares de fio de cabelo. Tenho uma estatura mediana e me casei três vezes nos últimos vinte anos. Estou internado em um luxuoso hospital do Rio de Janeiro perdendo o que me resta do único pulmão que ainda funcionava. Hoje, fazem três meses que estou aqui, todavia o tempo dentro de um hospital gira tão lento quanto a maior engrenagem do motor de um relógio fazendo parecer minha estadia muito mais duradoura. A última noite não foi tão ruim, só cuspi sangue uma vez e dessa até que estava vermelho claro. A enfermeira me disse que eu estou melhor, mas acho que na verdade ela quer é me animar um pouco.

Quando eu tinha trinta anos, vagava pela calçada da rua oito chutando pedras com meu tênis ensebado e sujo. Fui reprovado em mais uma entrevista e tive a certeza de que pertencia a um caminho sem volta. Eu já estava na derradeira casa dos trinta onde um homem precisa se estabilizar. Depois dos quarenta as letrinhas dos créditos começam a subir mostrando os últimos frames do filme da sua vida profissional e você realmente “cai na real” de que será pobre para sempre. Minha mãe me ajudava com algumas coisas e meu pai já havia falecido tomado pela bebida e pelos jogos de azar.

A triste verdade: — eu não tinha muita perspectiva de vida e me recusava a aceitar uma existência simples tendo que contar moedas todos os meses.

Uma noite acordei sobressaltado! O barulho de sirene intermitente me deixava surdo tirando o que restava do sono. Levantei da minha cama ouvindo o colchão gritar nas minhas costas e caminhei lentamente até a sala. Foi lá que encontrei pela primeira vez a criatura que me inspirou a escrever tudo isso que você está lendo. Naquele dia minha vida mudaria para sempre. Uma pena que isso tenha acontecido.

Havia um homem sentado no meu sofá. Na verdade, não era exatamente meu velho sofá. Agora o estofado estava novo com couro vermelho impecável. O homem baixo de calças social e camisa de botões branca estava despojadamente me olhando com os braços semi erguidos. Usava um sapato preto brilhante e carregava um palito de dentes no canto da boca. A cabeça era pouco desproporcional ao corpo, bem maior do que na maioria das pessoas, mas nada que se igualasse a uma aberração, e tinha ainda menos cabelos do que eu. A penugem rala só era apresentada acima das orelhas.

Estranhamente não me assustei em ver aquele homem na minha casa pouco depois das três horas da manhã. A sirene havia parado e o silêncio sepulcral tomou conta do ambiente.

— Quem é você? — Apertei os olhos ainda incomodado com a pouca luz emitida pelo aquário de peixes ornamentais. Aproveitei para esfregar as vistas e apurar melhor a visão.

— Ora, ora Miguel. Você realmente quer que eu me apresente? O senhor ajeitou-se no sofá fazendo o couro novo gemer.

— Eu acordo tarde da noite com uma porra de uma sirene tocando e quando chego aqui na sala encontro você sentado como se estivesse aguardando ser servido em um restaurante chique. Vou perguntar de novo. Que porra é você?

— Sem rodeios, meu amigo. Eu sou o capeta. — Abriu um largo sorriso.

Meu coração disparou e todos os pelos arrepiaram. Eu estava frente a frente com o tinhoso. E ele estava na minha casa. Não entendia como, mas parecia que o diabo se alimentava com meu medo. Ele se levantou e ainda sorrindo estendeu a mão para que eu pudesse aperta-la

— Não vou apertar a mão do capeta! Sem chance.

— Ora, Miguel. Você aperta minha mão todos os dias quando você reclama da sua vida, ou quando você assiste ao noticiário e amaldiçoa as pessoas mentalmente. Você me abraça quando deseja o mal aos outros e quando sente inveja das pessoas que estão acima de você. E é por isso que eu estou aqui. — Ele continuou com a mão estendida esperando meu cumprimento.

— Não vou apertar a sua mão. Saia da minha casa! Não quero nada com você.

O demônio me olhou ainda sorrindo e baixou a mão bem devagar.

— Vejo nos seus olhos que está louco para mudar de vida. Eu posso te dar tudo que quiser. Venha comigo! Você não tem mais nada o que perder. Faça essa aliança.

Eu sabia que estaria fazendo a coisa errada, mas minha vida estava longe de ser algo apreciável e as contas não paravam de chegar. Há tempos o nome estava negativado em todos os serviços de proteção e eu nunca conseguiria dar aquele salto realmente sensível em minha vida. O desgraçado do demônio me aliciava, dava para sentir o fedor de enxofre que exalava de sua pele. Ele se aproximou e estendeu a mão mais uma vez.

— Vamos lá Miguel. Eu sei que você quer. Estou te acompanhando há tempos. Posso te dar tudo que você precisa. Tudo que você quer.

— E o que você ganha com isso?

O demônio espalmou as mãos, como se eu tivesse feito uma pergunta retórica. Depois largou uma gargalhada satânica.

— O que eu ganho? Você sabe o que eu ganho. Eu vou querer a sua alma e a alma da sua filha. Eu não engano ninguém. Você tem a chance e vou contar até três, logo depois me despeço e você volta para a sua vidazinha ridícula. Um...

Eu tentava colocar as coisas em seus devidos lugares. Filha? Eu sequer tinha uma namorada! Minha vida já estava uma merda mesmo e eu deveria tomar uma atitude naquele momento.

— Dois...

Minhas mãos tremiam olhando para aquele monstro com o braço estendido. O que eu iria fazer agora? Tinha poucos segundos para agir e apenas duas opções. Continuar pobre ou mudar completamente. Dar um salto. Viver algo que eu nunca vivi.

— Três... — O filho da puta começou a baixar a mão vagarosamente. — Você fez a sua escolha e...

Naquele momento eu dei um passo para frente e tomei a mão do diabo com as minhas. Aquela mão de pele grossa e áspera. Aquela mão vadia e quente. Ele largou mais uma gargalhada e logo depois tudo escureceu.

(CONTINUA NA PRÓXIMA QUINTA FEIRA, DIA 20/10/16...)

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Paulo Costa Lima
Enviado por Paulo Costa Lima em 13/10/2016
Reeditado em 13/10/2016
Código do texto: T5790392
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