Infernal

Eu aguardava a hora da missa; esperava o bater dos sinos. Mas naquela manhã de domingo os sinos não dobraram. Já havia dado o horário, o relógio em números romanos no alto da igreja tiquetaqueava pelo tempo. Mesmo sem nenhum sinal andei até lá. O caminho deserto demais me provocou um calafrio. Apenas uma cadela feliz saía do lixo por ter achado algo comível. Mas outro alguém ainda estava ali, e não era um bicho, era um menino. Numa esperteza de quem enfrentou a vida de cara ele se sustentava em uma só perna, e o branco dos olhos frios colidiam no contraste do encardido da pele quente. Ele olhou para mim, e sorriu. Depois, entrou no pátio da igreja que era logo ali. Ele seguiu pulando e sorrindo, e me olhava como se me convidasse com o olhar a segui-lo; e assim eu fiz.

A igreja estava vazia. Um ranger irritante cortava o silêncio - um pequeno barulho vindo do teto. Quando olhei acima da cabeça de Cristo crucificado o teto ameaçava cair... Jesus chorava com a goteira que lhe caía sobre os olhos numa ironia sacra. Haviam transferido a missa para outro lugar? Perguntei ao garoto se ele sabia... Ele não estava mais ali.

Andei até o altar e pedi a Nossa Senhora que me desse um sinal. Um barulho enorme se fez e uma viga caiu do teto, decapitando a cabeça da mãe de Jesus. Eu gritei. Todos os santos me olhavam compadecidos; a vela do altar se apagou com uma brisa que entrou pelo rombo do telhado. Alguns ratos assustados começaram a surgir do sótão; grunhiam e se atropelavam descendo pela parede do altar se reunindo em volta da bíblia e começaram a roer as páginas do livro sagrado. Dei alguns passos para trás... aquela aura macabra me afligia, quando num relance eu vi no buraco que se formou no telhado alguém me observando. Do escuro aquele olhar me encarava friamente. Chamei pelo menino aleijado, mas ele havia desaparecido.

As portas, então, se fecharam com o vento, e uma aranha espreitava uma mosca no vitral cheio de pinturas do caminho da cruz. Aqueles olhos continuavam me encarando, e eu clamava por Deus em pensamento. Voltei até a porta por onde eu entrara, e meu coração batia na garganta. Imaginei que não conseguisse abri-la, que algo de muito sinistro acontecia comigo. Mas ela abriu, normalmente. Quando ameacei sair, a aranha me lançou suas teias e me puxou de volta...

Olhei para o chão fora da igreja e era pura lava. A igreja milagrosamente flutuava sobre magma quente. Olhei para Jesus na cruz e lhe pedi misericórdia. Eu não acreditava no sobrenatural, e agora eu vivia aquilo. Pensei que estivesse no inferno, eu e todos os santos que agora me olhavam como se me condenassem. Mas Jesus também estava ali, na sua divina onipresença, Jesus também estava no Inferno. A Virgem Maria já havia, literalmente, perdido a cabeça... e alguém assistia a tudo aquilo lá daquele breu sobre o altar.

Enchi-me de coragem, e então o desafiei. Pedi que descesse e me olhasse de frente. Sem hesitar aquilo saiu lentamente das sombras e ganhava forma. Era algo humano. E de asas gigantes. Pulou num rompante e pouso sobre a mesa do altar. Abriu suas asas, mirou uma flecha na minha direção e lançou.

Senti-me tonto e perplexo. A visão turva adivinhava o rosto conhecido que me amparava. O padre segurava minha mão, ele aferia minha pressão. Finalmente, pude abrir os olhos e me deparar com o mais lindo dos padres me olhando docemente. Nesse instante fui tomado de um misto de culpa e coragem. E, então, beijei-lhe. Ficamos atônitos. E eu sorri quando vi que ele também queria sorrir. O padre me salvou de alguma maldição. E eu senti-me esvair de qualquer resquício de vício ou paixão, por qualquer coisa ou pessoa. Olhei para o teto e não havia mais nenhum buraco lá. E eu tinha certeza que não havia sido apenas um pesadelo. Aquela espécie de cupido do mal, realmente, apontou a flecha na minha direção. Meu peito apertado ainda abrigava um coração descompassado com o susto.

Levantei-me e pedi ao padre para me confessar. Talvez eu tivesse sido exorcizado. O demônio queria minha alma; por isso, vestiu-se de cupido, fantasiou-se de amor. Depois de me ouvir, ele me olhou bem no fundo dos meus olhos. E, então percebi, que desde sempre eu estava apaixonado pelo padre. Mas o olhar do padre foi ganhando um brilho diferente, o mesmo brilho daquele ser vindo da escuridão.

Saí do confessionário apavorado, quando do nada o menino aleijado me abordou e me ofereceu uma bolsa de lixo e disse: “Bem-vindo ao mundo real, onde a fé cedeu lugar à hipocrisia”. Corri da Igreja, e de novo eu vi aquela cadela vira-la que revirava o lixo, agora ela se regozijava sobre a carcaça de algum animal morto; era um animal grande e alado, e ao seu lado havia um arco e flecha. O padre ressurgiu atrás de mim gritando, pedindo para que eu tomasse cuidado. E ao se reaproximar para se despedir, me estendeu a mão me induzindo a lhe pedir a bênção quando eu vi sua batina suja de sangue. E mais uma vez aquele olhar. Não havia para onde fugir.