Vênus

Foi seus olhos encontrarem os meus, e eu caí numa espiral sem volta. Seu sorriso iluminava o universo todo; pelo menos o meu. E que beijo! Quem o inventou? Deus não faria alguém tão perfeito a ponto de eu blasfemar assim. A sinastria não foi das melhores, mas a química foi exata como matemática. Vênus se estremeceu, e eu mais ainda. Os olhares se sustentavam, como Atlas carrega o mundo, assim bravo. Até as bocas se casarem, se comerem, contaminando-se pelo desejo. Tudo se desanuviou. Tudo se fez nítido e forte como o próprio mistério que é viver. Eu arrisquei me perder, e assim foi...

Não demorou muito você resolveu fumar. A fumaça foi se agigantando, e a neblina causada pelas tuas tragadas tornou a paisagem incômoda, como se eu desenvolvesse rapidamente uma doença nos olhos. De repente, eu estava sozinho, a rua era deserta, nebulosa. O sereno da noite se exibia sob as luzes amarelas opacas dos postes. Era uma rua grande, e ir em frente era a única opção. Uma coruja piou e eu gelei. Do alto de um muro de pedra ela me vigiava como se medisse meus passos. Era uma coruja linda e fria, como sua tatuagem. E seus olhos brilhavam como o seu. Cansada de me encarar ela alçou voo.

E logo a frente vi outros olhos me olharem. Conforme me aproximava, maiores ficavam, pareciam de fogo. A luz do poste se apagou. E agora aquele olhar brilhante vinha em minha direção. Era um gato. Um gato arisco, que logo me mostrou seus dentes me mandando sair dali; como não obedeci, eriçou os pelos da coluna e do rabo, me deixando cismado. Acelerei o passo sem olhar para trás e virei a primeira esquina: uma rosa caída ao chão roubou meu olhar, ela tinha seu perfume. Encantado a cheirei como um viciado em cocaína, e descuidado me feri em seu espinho. Instintivamente pus o dedo na boca e chupei o sangue que brotou, e tinha o gosto do seu beijo.

Eu estava tendo um sonho lúcido. Queria acordar e não podia. Estava hipnotizado, ou drogado, ou louco. Sentei-me na calçada daquela rua estranha, e tentei me lembrar como fui parar ali. Estávamos falando de nós. Você disse que eu morava longe. Eu disse que não. Duas horas de viagem não é nada. Mas eu te compreendi; é melhor esperar alguém que se encaixe nos ideais. Laços permanentes não fariam sentidos a 100 km de distância; a menos que sejam frouxos o suficiente para se desatar quando aparecer alguém mais perto. Porque o futuro a ti parece tão irreal? Só o presente é real? Bebíamos cerveja, a música alta, o cheiro de cigarro barato; eu estava impotente. Alguma amnésia me fizera me perder. Estou num paralelo, desconhecido.

As nuvens passeiam ao sabor do vento num céu azul-marinho. E a lua pálida e sem graça me irrita por nada clarear. Alguns vaga-lumes, então, surgiram como se apresentassem um espetáculo. E escreveram no ar: “Não acredite em ninguém, mas mantenha a fé”. Soou contraditório, e então se apagaram e caíram mortos, todos os vaga-lumes. Um vento gelado me lambeu o rosto, e só então percebi que eu suava frio; talvez delirasse.

A gente se abraçou, se beijou e se despediu. Mas eu via o passado em seus olhos: por isso que o futuro lhe era tão ameaçador. Alguém o feriu. Eu sei, eu vi no seu olhar. Mas o jogo ainda não acabou, se você ainda está de pé, soldado! Talvez não seja eu sua salvação, talvez sejam os outros que você beijou enquanto me fazia promessas piratas. Eu fiz que não vi. E não te culpo, de jeito nenhum; eu é que fui tolo de confiar em você logo na noite em que te conheci, porém mantenho a fé; sim.

Uma criança me tirava dos devaneios. Eu estava num mundo onírico e ainda devaneava, uma irônica metalinguagem. Era uma criança bem vestida, de macacão e botinas, usava uma camisa de mangas compridas, óculos e boné. Tudo em cores sóbrias. Ela me pedia para ir embora, que eu corria perigo. Eu a disse que ela era só parte de um sonho, ela me disse que era um pesadelo. Ela pediu que a seguisse já que não queria deixá-la, e eu segui. Ela me deu a mão e me guiou. Ecoava na minha memória: “Não acredite em ninguém, mas mantenha a fé”. A noite já se despedia, enquanto o sol se prenunciava tímido. Aquela criança que me acolhera então soltou minha mão e eu caí. Foi um tropeço e eu a perdi de vista. Estava sozinho de novo. Ela sumiu do mesmo jeito que apareceu. Estava cansado, e com sono. No céu, não era Vênus mais, era Algol, a estrela demoníaca. Ela sorria para mim: algo de muito macabro estava acontecendo... Os joelhos ralados ardiam, e eu me encostei no muro ali mesmo, e então adormeci. Um cachorro se aninhou do meu lado. Eu dormia, mas sentia meu futuro melhor amigo aquecer a um futuro mendigo desmemoriado. Dormi por horas. E acordei ainda anestesiado por uma atmosfera incompreensível. O chão ao meu redor estava vermelho de sangue. O cachorro havia se alimentado de algo vivo. Eu estava dilacerado. Eu servi de alimento e fui devorado por aquele cão vadio. E agora estava em carne viva. Eu não devia ter confiado nem em uma criança, nem em um animal, mas mantinha a fé. Ferido e desesperado dei poucos passos e vi uma caveira, ela segurava uma carta e me sorria, e eu atrevido a tomei e li: “Qual é o meu nome?”. E então tudo fez sentido. Murmurei a resposta quase sem voz para a pergunta daquele esqueleto: Paixão. Seu nome é paixão!