Um Ritual

Andei conversando com Deus. Perguntei de que milagre eu era vítima, e se a vida era uma penitência. Sentia-me um peso morto. Pesado, mas vazio. E como de costume as respostas não vieram. Talvez tenha me mandado sinais que eu nunca percebi, porque nunca fui de contemplar nada, e sim de destruir. Sempre estive ocupado em costurar esse meu corpo; remendando aqui onde ficava um coração. Ofereci este órgão em uma espécie de sacrifício pagão. Porém, ainda vivo.

Numa barganha bem-sucedida, vendi minha alma num ritual um tanto cafona. Agora saio por aí à revelia, e me valho do álcool para ferir a esperança dos outros. Pois me satisfaço em ver neles a dor que eu não posso mais sentir. É um ciclo básico como das estações: primeiro a pureza da primavera, tudo são flores; logo a paixão arde como o verão; então, o outono abranda os ânimos; até o inverno congelar tudo. Foi o que eu disse: um ritual pagão.

Nesse ritual, eu precisei provocar um touro, que paciente aguardava ser morto. Mas era preciso despertá-lo, torná-lo fera. Então, olhei-o nos olhos e lhe disse mentiras. Depois de tê-lo enfurecido, amansei-o novamente. Eu apenas precisava do seu coração disparado. Era necessário o coração ainda batendo para pôr na minha balança. E assim foi feito. O corpo do touro foi jogado ao leão que lhe vigiava desde o início. Depois, coloquei na minha nuca um escorpião, e fiz com que ele me picasse. Alimentei dois caranguejos com o sangue coagulado daquele coração taurino, e então os esmaguei e comi-os assim, crus. Os restos pus num aquário, e ofereci à lua. Aguardei, então, o efeito do veneno. Adormeci.

Acordei sobre uma mesa esticado e amarrado pelos braços e pernas como um homem vitruviano. Um bater de tambores se fazia forte. E eram tocados berrantes feitos de chifres. Muitas pessoas dançavam ao efeito daquela música. Bebiam e se divertiam, pois riam muito. E, de repente, me golpearam no peito e arrancaram meu coração que palpitava. Elevaram-no em frente a um altar e entoaram algumas preces. Eu via tudo, consciente. Colocaram o sangue que escorria numa taça de prata, brindaram e beberam-no; dividiram um gole para cada um. Devolveram meu coração ao meu peito e costuraram-me. Eu não sentia dor. Estava anestesiado pelas peçonhas.

Hoje, ando assim, pesado e vazio. Sei fingir lágrimas, e administrar conversas. Tenho o dom de iludir. Há, porém, essa cicatriz, mas a transformo em vantagem. Digo sempre que fui ferido, e faço-me vítima quando, na verdade, sou algoz; a apresento como defesa, quando, na realidade, é um ataque. Eu me enclausurei na escuridão de mim. E sei que vou ficar trancado nessa solidão por muito tempo. É minha sina: ferir corações alheios para alimentar o meu corrompido. E o universo me retribui, põe no meu caminho gente de coração bom, puro e autêntico. Vou colecionando crânios numa espécie de santuário.

Contudo, sempre faço tudo com muito cuidado e estratégia. É preciso incendiar as almas, mas manter o fogo brando depois. O calor não pode se exagerar. Se algo der errado, posso me derreter e deformar. E não podem descobrir que depois de tantos beberem do meu sangue e comerem do meu corpo eu ainda sigo vivo. O que eu ganhei com tudo isso? A eterna desconfiança de que embaixo dessa pele, agora, habita um boneco de cera.