Cativeiro

Abri os olhos e não reconheci o lugar; o breu me envolvia por completo enquanto umas réstias de luz tentavam invadir aquele quarto através das frestas da porta. Eu ouvia alguns passos, e fui em direção a tal porta para saber qual lugar era aquele; estava trancada. Tateei no escuro tentando achar alguma forma de abri-la, mas não consegui. Uma respiração forte vinha de algum lugar, e um cheiro acre se fazia presente. O som de passos aumentava, alguém vinha na direção do quarto. Pedi, então, que abrisse a porta para mim. Um enorme rugido me foi respondido. Senti meu corpo amolecer enquanto o sangue gelava. O susto me fez perder a orientação; sentei-me no colchão no canto do quarto e tentava acordar daquela sensação de pesadelo. Fechei os olhos para tentar despertar, numa contradição estranha. No momento em que as pálpebras se cerraram uma lembrança me aturdiu ainda mais, eu via uma flor...

Tantos ossos espalhados por um chão de vegetação queimada e galhos retorcidos. Uma espécie de cemitério, mas não qualquer cemitério, e sim um que fora recentemente incendiado. Caveiras sorriam para o nada, urubus rondavam o céu, e o sol a pino. E havia uma flor. Um calafrio me fez voltar a mim. Num ato de desespero saí vasculhando as paredes na tentativa irracional de achar uma saída. Havia apenas um colchão no canto esquerdo da parede do fundo e uma jarra com água pela metade. O silêncio me feria. Só um ruído de respiração se ouvia. E não era a minha.

O colchão em que eu dormi começou a se mexer. Naquele mínimo de claridade que se intrometia eu pensei estar delirando. Mas se tornava um tanto nítido a forma que aquilo assumia. Depois de se desenrolar totalmente e se esticar eu pude perceber que era uma enorme serpente. Seu comprimento era maior do que o quarto que devia ter uns 5 metros. Retesei-me onde eu estava e não me movi. Não sabia como agir; eu era inteiramente medo e confusão. Quando de repente ela começou a vomitar algo. Sem pensar corri até a porta e a esmurrei loucamente. Um urro estrondoso voltou a acontecer; me assustei de novo, mas continuei batendo, pedindo para que me tirassem dali. Por algum tempo implorei socorro. Todavia o cansaço me venceu, então me recostei a parede e me deixei cair; sentei-me abraçando os joelhos. Eu não podia estar vivendo esse horror.

Ao ver o que aquela víbora gigante regurgitava eu enjoei e tive ânsias de vômito. Engasguei e corajosamente me levantei e andei até o fundo do quarto, e tomei a água que estava naquela garrafa. Depois de beber alguns goles como quem morresse de sede, desmaiei. Não sei por quanto tempo fiquei dormindo. Quando despertei eu estava novamente sobre a cobra enrodilhada; de novo me mantive imóvel. E ao ver o que ela havia vomitado, o pavor tomou conta de mim, porque eu entendi o que acontecia. Eu seria a próxima refeição dela. Eu estava sendo refém para servir de alimento àquela enorme serpente. O esqueleto da vítima anterior corroído pelo suco gástrico daquele animal parecia me pedir ajuda. Mas já era tarde.

Cuidadosamente me levantei. A respiração do réptil me arrepiava. Porém ele continuou inerte. Encarei o esqueleto que ali estava, e ele me encarou de volta, se desmontando logo em seguida como se eu tivesse feito algo. Fui até a porta e tentei uma abordagem diferente. Apenas sussurrava um pedido de socorro. Eu sentia que lá fora tinha alguém de guarda. Meu estômago, então, roncou. Eu estava com fome. Foi aí que surgiu a ideia: pensei, então, em pedir comida... quando abrissem a porta eu escaparia. Eu deveria fazer isso duas vezes. Na primeira eu analisaria o cenário, e na segunda eu fugiria de fato. Porém, não sabia quando a minha companheira me devoraria. Então, não havia tempo para análises. Pus minha estratégia em prática e pedi logo algo para comer; e parecia surtir efeito, pois eu ouvia passos de alguém se aproximando quando reclamei de fome. A chave virou na porta, ela rangeu um pouco e se vagarosamente se abriu, uma maçã rolou no chão, e eu corri para o lado de fora daquele cativeiro.

Senti algo me agarrar os pés neste momento e gritei, mas aquilo começou a me arrastar e... meus olhos demoraram a se acostumar com a claridade. Quando, enfim, pude ver, eu estava voando. Cada vez mais alto, e lá embaixo eu avistava o cemitério do qual havia me recordado antes. No meio de toda aquela devastação sem cor, apenas uma flor solitária, de pétalas vermelhas e miolo amarelo. Era uma flor pequena, mas grandiosa. A flor. Tentei ver o que me segurava e me levava. De asas enormes, penas encardidas, olhos cinzas e corpo humano. Eu não entendia, e de cabeça para baixo eu comecei a perceber no semblante da estranha criatura a força que fazia para aguentar meu peso; a testa franzida e a respiração ofegante, ele lentamente baixou voo e pousou. Era um arcanjo. Depois que fechou as enormes asas, eu precisei de um tempo para voltar a um estado de consciência normal, então perguntei o que estava acontecendo. Ele calmamente disse que estávamos no inferno, e que me levaria para longe dali. A curiosidade mordia: e eu quis saber porque estava lá. Soube que essa minha curiosidade foi a causadora de tudo aquilo. A flor. Eu tinha arrancado a única flor do santuário dos pecadores. Eu tinha sido avisado para não arrancar. Agora eu me lembrava - assim que eu a arranquei o que parecia ser um tronco de árvore rastejou rapidamente na minha direção, me encarou e foi se enrolando em mim, me envolvendo aos poucos. Sua língua tremia no meu rosto, e eu não podia mover um músculo, fiquei sem ar e desmaiei. Acordei naquele quarto escuro. Apenas eu e aquela serpente.

O arcanjo então abriu as asas novamente. Eu ainda não entendia porque ter arrancado aquela flor me condenara ao inferno. O anjo dessa vez me abraçou em vez de me pegar pelos pés como fez quando eu fugi. E assim a gente voou novamente, ele me carregando em seus braços. A gente sobrevoava um enorme rio. E eu podia ver o nosso reflexo. Mas as imagens refletidas logo se transformaram numa espécie de lembranças do que me trouxera até aqui. De trás para frente eu me via sendo envolvido pela cobra; eu colhendo a misteriosa flor; andando pelo cemitério; eu beijando quem eu amava; olhando seus olhos; indo ao seu encontro; lhe abraçando; sorrindo ao ver a mensagem de que estava chegando. Tudo como um rio correndo para trás.

Nunca que eu imaginaria que conhecer essa pessoa faria da minha vida um inferno. Tudo por um amor não correspondido, porque eu acreditei que pudesse dar certo, mas me desiludi. Na teimosia da conquista disse que por ela enfrentaria qualquer demônio. O anjo então urrou, o mesmo rugido que eu ouvia quando estávamos no cativeiro. No reflexo da água eu vi suas lindas asas se transformando em asas de morcego, e seu rosto ganhava a aparência do próprio satanás. Então ele me soltou e eu despenquei, enquanto ele gargalhava. Ele e a serpente eram transmutações de um mesmo ser. Estava brincando comigo. Eu clamei por Deus em vão ao mergulhar na água. Senti-me afogar.

Acordei depois num pântano, alguém tinha me salvado. Foram meus demônios, eles sabem nadar. Um vento começou a soprar tão forte que eu fui arrancado daquela lama e levado feito folha podre pelo ar, mas também tenho diabos que sabem voar. O vento me arrastou pelo ar até me jogar em um campo onde se alastrava um fogo que lambia a vegetação rasteira. Queimei-me e senti minha pele crispar com o fogo que lhe consumia. Nenhuma dor, porém. Pois ardia como os capetas que deixam meu peito em combustão. Depois ainda precisei caminhar algumas pedras pontiagudas para continuar a fugir; mas também há em mim demônios que sabem pisar firme e seguir em frente. No entanto, havia um anjo autêntico: e por culpa dele eu havia me apaixonado; resolvi colher flores no inferno para provar o meu sentimento. Miserável que sou tornei-me refém desse lugar: seu coração. Ainda bem que essa eternidade é breve, e que os meus demônios sabem a hora de matar os anjos. Agora já sei fugir, só preciso achar o caminho de volta. Que venha a próxima víbora, que venha a próxima flor.