A maldição dos mortos

Eu estava ajoelhada sobre uma poça de lágrimas, meu quarto estava escuro, o relógio marcava 3 horas, a janela estava aberta diante de mim permitindo a entrada de algumas luzes como relâmpagos e faróis de alguns carros que passavam às vezes, uma fina chuva sufocava meus gemidos. A lua estava diante de minha janela, parecia assistir meus últimos instantes, parecia não se importar com minha decisão desesperada. De repente um carro passou iluminando o chão diante de mim, trazendo uma arma calibre 38 carregada para fora da escuridão. Eu sentia um peso enorme nas costas e nos ombros, como se o mundo todo estivesse encostado em mim, inclinei a cabeça encostando a testa no chão, as lágrimas jorravam, senti uma dor na garganta por segurar os gritos de desespero. Eu não aguentava mais, eu precisava me libertar. Joguei meu corpo para trás, agarrei a arma e encostei o cano no lado direito da cabeça, um carro passou rapidamente fazendo com que eu pudesse ver minha sombra na parede, eu sabia que era o fim. Fechei os olhos e puxei o gatilho, a arma disparou e eu ouvi o estouro em meu ouvido direito, não senti dor, não senti nada. Voltei a abrir os olhos, tudo estava escuro, mas eu não estava mais com a arma na mão. Levantei-me ficando sobre os pés, caminhei para onde eu sabia que estava à porta e me choquei contra a parede, dei um passo para trás e apalpei a parede até que encontrei uma escrivaninha, sobre ela tinha uma vela pela metade, abri a gaveta e encontrei fósforos, acendi a vela e diante de meus olhos surgiu um escritório antigo, daqueles de casas nobres.

- Onde eu estou? – sussurrei – Alguém?

No centro da sala havia uma mesa de madeira entalhada a mão, havia duas cadeiras, uma de cada lado da mesa, nas paredes grandes estantes de livros circulavam a sala e provocavam um cheiro de páginas velhas, no chão um tapete caro e cheio de detalhes tirava totalmente o foco dos livros, acima de mim um lustre de cristal balançava suavemente de um lado para outro mesmo sem qualquer tipo de vento. A porta do outro lado da sala estava aberta, eu caminhei para fora do escritório e diante de mim surgiu um grande corredor, também escuro, com quadros nas paredes de pessoas sem rostos, uma pequena janela do outro lado do corredor permitia que os relâmpagos iluminassem o caminho. Havia quatro portas de cada lado do corredor, apenas uma não estava trancada, a última do lado esquerdo, era um banheiro grande, com uma banheira ao lado de uma janela semiaberta, me aproximei e olhei para fora, havia uma grande colina repleta de cruzes como se fosse um cemitério abandonado, avistei a silhueta de uma pessoa ao longe encostado em uma das cruzes, a pessoa estendeu a mão e me cumprimentou, eu joguei meu corpo para trás e por pouco não caiu para dentro da banheira. Afastei-me da janela e voltei para o corredor, caminhei até uma escada, fiquei em pé no topo dela tentando ver por entre a escuridão o que tinha lá em baixo, de repente senti um vulto atrás de mim, não consegui virar meu corpo, senti uma respiração na nuca, agarrei o corrimão e antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, senti uma mão fria tocar minha nuca e empurrar meu corpo para baixo, inclinei para frente ainda segurando no corrimão, senti um peso nas costas como se alguém se sentasse sobre mim, meu rosto estava quase encostando nos degraus quando meu braço não aguentou e eu rolei escada abaixo batendo forte no chão. Senti dores pelo corpo, mas as ignorei, procurei a vela, enfiei a mão no bolso e agarrei os fósforo reacendendo, a lancei em direção à escada e não havia nada no topo, de repente algo saltou sobre mim, passou por meu ombro e caiu na mesa de centro, eu me joguei para trás e cai sentada sobre um sofá, girei a vela e lancei sobre a mesa, tinha um gato preto sentado me observando.

- Você quase me matou de susto – sussurrei aliviada – não faz isso de novo.

Acariciei o gato e o deixei desaparecer na escuridão. Ao meu redor havia dois jogos de sofás, uma lareira que há muito tempo não é utilizada, e duas portas, uma de cada lado da sala. Caminhei para a porta do lado direito, adentrei e me deparei com uma cozinha, uma pequena mesa, algumas cadeiras, um fogão antigo, pratos quebrados no chão. De repente algo passou por entre meus pés, joguei meu corpo para trás e cai sobre a cadeira, à vela se apagou e eu lutava desesperadamente para reacendê-la.

-Foi o gato, foi o gato.

Sussurrei tentando me convencer, então o gato miou aparentemente no andar de cima, e meu corpo todo se arrepiou, senti meu coração disparar, empurrei a cadeira para trás com as postas dos pés até encostar na parede, consegui acender a vela e iluminei embaixo da mesa, não havia nada. Um relâmpago muito forte iluminou a cozinha toda evidenciando que eu estava sozinha. Saltei da cadeira e corri para a sala, atravessei e adentrei na outra porta, diante de mim surgiu uma grande mesa repleta de cadeira, muitos lustres percorriam toda a dimensão da mesa, me aproximei de uma das cadeiras, não sei porque, mas senti uma enorme curiosidade sobre ela. Parei atrás da cadeira e senti cheiro de comida, cerrei as sobrancelhas e me aproximei da cadeira, de repente algo agarrou meu cabelo e encostou minha testa no encosto da cadeira, senti meus pés serem arremessados para cima e eu cai sentada sobre a cadeira, tentei girar o rosto, mas a mão que me agarrar jogou meu rosto contra a mesa, bati a testa e voltei com meu corpo para trás de olhos fechados. Quando abri meu olhos estava tudo claro, a mesa repleta de comida, e muitas pessoas conversando, homens vestiam terno e mulheres vestidos elegantes. De repente um homem se levantou diante de mim, levantou uma taça de vinho e gritou, claramente alterado.

- Felicidades ao futuro casal, Philip e Elisabeth Jonson.

Um homem ao meu lado riu e me cutucou com a ponta do dedo.

- Sorria amor – disse um homem velho, com barba mal feita, cabelos penteados para trás, e dentes amarelos – logo estaremos casados e seremos felizes para sempre.

Eu tinha muitas perguntas mas não conseguia fazer nem falar nada, de repente o homem ao meu lado saltou sobre a mesa, uma escuridão surgiu por detrás dele e tomou conta do ambiente, as pessoas ao redor viraram pedra enquanto gargalhavam, ele enfiou a mão em meu peito e arrancou um corvo de dentro de mim, o lançou sobre a parede e gritou enquanto o pássaro se desfazia em penas. Eu gritava com meu peito aberto, conseguia ver meus órgãos se desfazendo, o homem levantou o pé, pisou em meu peito e me empurrou para trás, bati a cabeça na parede atrás de mim e voltei para a mesa novamente. Não tinha mais ninguém, eu voltei para a escuridão sozinha.

-O que está acontecendo? – gritei – alguém? Socorro.

Saltei da cadeira e corri para a escada, subi correndo e atravessei o corredor, me atirei sobre a porta do escritório e a fechei atrás de mim, escorreguei em alguma coisa e caí de costas no chão. Eu não tinha mais a vela, mas uma pequena luz que vinha de uma pequena janela que antes não estava aqui, me ajudou a identificar o lugar. Não tinha mais nada no escritório, o chão estava repleto de sangue, de repente pessoas começaram a entrar olhavam para mim com uma expressão de tristeza, caminhavam e vasculhavam o local, mesmo que não tivesse nada. O homem que me atacou na mesa surgiu, ele estava com os braços cruzados e chorava muito olhando para mim. Eu levantei e percebi que ele continuou olhando para o chão, girei o corpo lentamente e olhei para trás, havia uma garota caída sobre a poça de sangue, muito magra, olhos arregalados e fundos, voltei a olhar para o homem que estava sendo abraçado e consolado.

- Sinto muito Philip – disse um homem vestido de preto – Se precisar de alguma coisa, sabe como me encontrar.

Então comecei a analisar a situação, se Philip era o homem diante de mim – que antes me atacara – essa no chão deve ser Elisabeth. Antes que eu fizesse mais especulações, Philip levantou os olhos e me encarou, de repente jogou seu corpo para trás, começou a se retorcer, ouvi ossos rangendo, seu corpo desceu sem que seus pés se movessem, até que seus mãos tocaram o chão, ficando com a barriga para cima, ele virou o corpo ficando com a cabeça voltada para mim, mais dois braços rasgaram sua carne nas axilas e saíram de seu corpo, ele ficou parecendo uma aranha gigante. Sua cabeça começou a virar até que ficou com o queixo voltado para o chão e a ponta da cabeça para cima, sua boca abriu rasgando lentamente a pele dos cantos, e uma língua grande com a ponta dividida em duas partes saiu de sua boca e encostou lentamente no chão. Eu senti um toque nos pés e quando girei meu corpo a garota não estava mais deitada no chão, ela estava em pé, encolhida, com o rosto inclinado para o chão e gemia de dor. Philip – ou o que ele se tornou- vomitou uma gosma preta que assim que bateu no chão se transformou em um cachorro, grande, preto, com seis patas, duas cabeças e cada latido eu sentia minha espinha esfriar e meu corpo se arrepiava. Eu não sabia o que era aquilo, eu só queria sair dali, agarrei o braço de Elisabeth e corri para o corredor a arrastando. Ela estava tão fragilizada que mal conseguia andar, eu praticamente a carreguei, eu ouvia a respiração do cachorro na minha nuca, e sons de muitos passos atrás de nós. Desci as escadas praticamente rolando, tentando segurar Elisabeth, a puxei pela sala que tem uma mesa grande, e logo no final havia uma porta, joguei Elisabeth sobre uma cadeira e tentei abrir a porta, porém estava trancada. Girei o rosto e aquela criatura já estava sobre a mesa diante de mim, o cachorro estava embaixo da mesa e sua pele rasgava e outra cabeça surgia.

- Não tem como sair – Elisabeth sussurrou- estou presa aqui.

Minha respiração estava pesada, eu estava com tanto medo que minhas pernas tremiam. Aquela criatura passava sua língua a centímetros de mim. Eu já estava desistindo, quando comecei a gritar

- Socorro – gritei com o restante de força que eu tinha – alguém me ajuda.

- Socorro- a criatura repetiu – ninguém vai te ajudar.

Sua voz parecia que várias pessoas falavam ao mesmo tempo, ele não tinha mais pés, apenas mãos. De repente o gato preto apareceu, eu tinha certeza que ele também se transformaria em algo muito feio e eu finalmente morreria. Ele se sentou diante de mim, miou tranquilamente, a criatura riu, gargalhou terrivelmente, ouvi seus dentes – que agora estavam enormes – baterem e meus ossos tremeram. O gato ficou sobre as patas traseiras, e foi se modificando, se transformando em um homem de quase dois metros, em uma mão surgiu uma espada de dois gumes, sua outra mão começou a pegar fogo e esse fogo se espalhou por seu corpo todo. O cachorro grunhiu e se jogou contra a parede voltando a ser apenas uma gosma preta. A criatura que antes era Philip não se intimidou, saltou sobre o homem de fogo e uma luta intensa começou. O homem de fogo cortou a criatura no meio, ela criou mais pernas e se tornou duas. Eu dei as costas para a briga e tentei abrir a porta, que agora não estava trancada e sim emperrada. Depois de muito insistir, finalmente abri a porta e puxei Elisabeth que não conseguiu sair, parecia estar sendo puxada para dentro. Eu a puxava para fora enquanto o homem de fogo cortava e queimava aquela criatura, de repende o homem abaixou, apertou os braços contra seu corpo formando uma bola de fogo ao seu redor, a bola aumentou até que ele se levantou e a bola explodiu. Eu fui lançada para fora e puxei a Elisabeth comigo, a casa toda virou pequenos pedaços que foram lançados contra mim, não sei em que momento eu soltei Elisabeth, mas eu tinha certeza de que ela não estava mais presa naquele lugar. Vi fotos passarem por mim, agora já tinham rostos e eles sorriam, vi pedaços de cordas e correntes se desfazendo em chamas, e quando eu me choquei contra o chão, eu voltei a ouvir o barulho da chuva. E eu estava de volta ao meu quarto. A arma estava no chão, quando relampeou eu pude ver a cápsula da bala ao lado do meu joelho, eu me levantei e acendi a luz, procurei a bala mas não a encontrei. Olhei no espelho e a bala também não havia adentrado minha cabeça. Corri para o computador e fiz uma pesquisa com os nomes Philip e Elisabeth Jonson, encontrei muitos sites que contavam a mesma história. Elisabeth foi forçada a se casar com Philip aos 16 anos, alguns meses após seu casamento ela ficou deprimida e não queria mais sair de casa e nem receber visitas, a única pessoa que cuidava dela era seu marido. Dois anos depois Elisabeth foi encontrada morta por facadas no escritório de sua casa, seu marido não estava em casa, mas disse que viu dois homens fugindo quando ele chegou. O caso estava para ser encerrado quando alguns investigadores ficaram curiosos com o estado em que a Elisabeth foi encontrada e decidiram investigar. Descobriram que ela sofria abusos físicos e psicológicos, que por diversas vezes foi restrita de água e comida, era espancada, estuprada e torturada psicologicamente. Alguns investigadores paranormais disseram que Philip era possuído e que fazia rituais macabros com sua mulher a levando a loucura, disseram também que ambos estão presos a casa, e que deverão ser libertos de lá. Centenas de pessoas tentaram tirar as almas da casa mas ninguém conseguiu, então derrubaram a casa e construíram um condomínio, que foi trocando de dons por anos. Todos os antigos donos ficaram deprimidos, uns estão internados até hoje em hospitais psiquiátricos, outros se suicidaram e tem aquele que simplesmente sumiram. As pessoas que compraram a casa antes de mim, fizeram de tudo para esconder essa história, como aconteceu há tanto tempo, e ninguém tinha coragem de falar, acabou sumindo do conhecimento público.

Minha primeira atitude foi sair dali, voltei para casa dos meus pais e depois me mudei para o outro lado da cidade, comprei um gato, pois agora eu sabia que eles realmente são nossos guardiões do mundo paranormal, vendi aquela casa o mais rápido que pude e tentei esquecer o que havia acontecido. Minha vida mudou depois daquele dia, eu não estava mais depressiva, não pensava mais em suicídio, eu voltei a trabalhar e a sair com os amigos, parecia que eu tinha me libertado de todo aquele peso que eu carregava. Certa vez eu estava indo trabalhar, me perdi e acabei parando diante daquela casa, que agora estava iluminada, cheia de flores, uma senhora tricotava na varanda enquanto ouvia musicas alegres, crianças corriam nas ruas brincando, nem parecia que tanta coisa ruim havia acontecido ali. De repente um gato preto saltou sobre o pequeno muro diante de mim, ele se aproximou e eu o acariciei.

- Você parece um gato que me ajudou uma vez- eu sorri.

Eu pensava na ironia daquela situação quando o gato colocou algo na minha mão e correu em direção à senhora que o chamava.

- fire – a senhora o gritou – volte para dentro.

Eu olhei para minha mão e era um projétil amassado, senti meu corpo todo se arrepiar. Então eu tive certeza de que tudo aquilo era real, não sei como eu sobrevivi aquela bala, não tinha como eu errar o tiro de tão perto, mas eu sabia que todos estávamos livres. No mesmo dia visitei o túmulo de Elisabeth, em baixo de seu nome estava escrito: “Nem todas as flores têm a mesma sorte, umas enfeitam a vida e outras enfrentam a morte”. Eu sorri, certamente estava falando sobre nós. Eu que tive uma segunda chance para viver, e ela que finalmente estava livre, mesmo que na morte.

Sabia que zumbis existem, que mortos podem se mover, e que filmes como O Exorcista, O exorcismo de Emily Rose e Anabelle são baseados em fatos reais? Da uma olhada no blog que eu explico: https://theblackwidowskull.wordpress.com/

Ashira
Enviado por Ashira em 24/09/2016
Reeditado em 06/10/2016
Código do texto: T5770628
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