Santos e demônios
SANTOS E DEMÔNIOS
Esta é a história de Gilles de Rais, o maior assassino de todos os tempos. Ninguém foi mais perverso e cruel que ele. O curioso é que ele não cometeu seus crimes por dinheiro nem por desejo de poder. Isso ele já tinha de sobra. Era um dos maiores barões da França. Seus crimes foram cometidos pela fé. Aliás, a fé sempre é invocada como razão dos maiores crimes. As Cruzadas continuam a ser um bom exemplo disso e os fanáticos do Estado Islâmico é uma prova indiscutível dessa loucura que se apropria da mente humana em certos períodos da História.
Dizem que a luz só pode ser gerada a partir da escuridão. Por isso a Bíblia ensina que o mundo foi feito de luz, luz que Deus tirou das trevas. “Exista luz, disse Deus. E a luz existiu. E Deus viu que luz era boa” O Evangelista João também começa a sua crônica do Novo Testamento com um discurso que fala de trevas e luz.
Convencionalmente se costuma dizer que o século XVI foi “o século da luz”. A cultura ressurgiu através do chamado Renascimento. A Reforma religiosa rompeu os nós com que um clero corrupto, supersticioso e ignorante havia amarrado o espírito humano durante mais de um milênio.
Entretanto, para que a luz possa brilhar, é preciso que antes experimentemos as trevas. Assim, o período que precedeu o século das luzes, ou seja, o século XV, foi talvez o período em que a ignorância, a credulidade e a superstição atingiu o mais alto patamar na história da cultura ocidental. Contribuíram para isso as guerras dinásticas, a cupidez dos bispos e papas da Igreja e uma espiritualidade de caráter extremamente duvidoso, canalizada principalmente para finalidades egoísticas e ávidas de poder.
O século XV foi a época em que as dinastias reais começaram a se afirmar e as monarquias locais davam os primeiros passos para criar os estados nacionais. No Ocidente, França e Inglaterra lutaram uma Guerra de mais de Cem Anos para ver quem dominaria aquela parte da Europa. Na Europa central, as lutas eram para definir quem herdaria os restos do esfacelado Sacro Império Romano Germânico, que as guerras papais, especialmente, haviam contribuído para destruir. Uma multidão de príncipes, barões e prelados religiosos disputavam esse butim, em meio a guerras e conflitos étnicos, que até hoje ainda não foram devidamente solucionados.
Do Oriente vinham os turcos otomanos, povo guerreiro que havia liquidado o Império Romano do Oriente em 1453 e voltava seus olhos para a Europa Ocidental na esperança de ampliar seus domínios e levar mais longe a glória de seus sultões.
Foi o reflexo desse ambiente de pobreza e ignorância, fermentado pelas guerras de conquista e por um clero mais corrupto que piedoso, mais supersticioso que religioso, que levaram rapidamente à população ocidental à degradação intelectual e ao nascimento da cultura da superstição e da falsa ciência.
Na Europa Central nascia a lenda do príncipe Vlad Dracul, que inspiraria o mito do Conde Drácula. Sua fúria na defesa da fé cristã, na luta contra os muçulmanos, o transformaria em um monstro sanguinário. Na Europa Ocidental, começava a se desenvolver uma cultura mística e transcendental, que fazia dos magos, feiticeiras, bruxos e alquimistas, a verdadeira oposição para uma Igreja corrupta e vazia de espiritualidade, que caminhava a passos largos para uma derradeira e definitiva cisão.
Esse foi o caldo do Renascimento, pois como se já se viu, a luz habita nas trevas, e não há luz sem as trevas que a antecede. O Século XV foi a época em que o delírio alquímico atingiu o seu auge. Uma multidão de sopradores e charlatães vendiam seus falsos conhecimentos aos barões, príncipes e autoridades eclesiásticas, prometendo a realização de um sonho quimérico, que era a sinterização da pedra filosofal e o elixir da longa vida. Esses eram os dois produtos, que segundo o sonho alquímico, surgiam como corolários dessa estranha ciência que produziu alguns homens de gênio e uma imensa legião de falsários.
Viver muito e se possível rico. Essa era a principal meta de quem podia contratar um mago, ou um feiticeiro, ou até um verdadeiro cientista para trabalhar para ele na procura da tão sonhada pedra filosofal. Por isso, reis, príncipes, barões e bispos, todos tinham o seu alquimista, ou o seu mago. Uns desenvolvendo a sua estranha prática em laboratórios equipados com fornos, foles, pipetas, astrolábios e balanças, outros em templos ornamentados com sinistras decorações.
Cada corte europeia tinha o seu adivinho. Nada se fazia sem consultá-lo. Por isso, o século XV e as primeiras décadas do século XVI foi a época de ouro dos alquimistas, dos magos, das bruxas, dos feiticeiros, dos videntes e de toda superstição que ainda hoje impressiona a mente humana.
Todos os homens de espírito se envolviam, de uma forma ou de outra, em aventuras místicas. Uns pelo sincero amor ao conhecimento, outros pelo desejo cúpido da fama, do dinheiro, ou do poder puro e simples. O Século XV e as primeiras décadas do XVI foi a época de Paracelso (1493-1541) e Rabellais (1494-1553), verdadeiros cientistas e humanistas, mas também viu nascer Heinrich Kraemer e James Sprenger, dois padres dominicanos, autores do bizarro tratado denominado Maleus Maleficarum (O Martelo das Feiticeiras), obra sinistra que tinha por objetivo ensinar aos piedosos padres e príncipes da época como identificar e exterminar o grande mal do século, ou sejam, os bruxos, os magos e as feiticeiras.
Aliás, para esses dois grandes defensores da fé, o mundo estava povoado por esses agentes de Satanás, e entre eles, a grande maioria eram mulheres. Não foram poucas as mulheres que pagaram por suas superstições nas fogueiras e nos tachos da Inquisição, cujas águas eram fervidas para que os reis e padres provassem os caldos e pelo gosto pudessem identificar se as pobres coitadas eram ou não feiticeiras.
O século XV também viu nascer Joana D’Arc e Gilles de Rais, dois nomes cujas vidas e aventuras espirituais, vividas por ambos na mesma época e com igual intensidade, jamais serão devidamente explicadas de forma racional. Eles deixaram marcas indeléveis no espirito do povo francês, e por um estranho destino, os dois nomes estão ligados de maneira tão estreita e paradoxal, que é difícil desvincular uma experiência da outra. E principalmente não pensar que ambas não foram fruto da mesma inspiração, ou seja, o ambiente místico e supersticioso da época em que os dois viveram.
À luz de uma análise fática e racional, hoje dificilmente se escaparia de concluir que Joana D’arc era uma menina esquizofrênica que sofrera um grande trauma em sua infância, provavelmente em consequência de algum episódio da Guerra dos Cem Anos. Afinal, sua aldeia, a pequena Donremy estava na rota dos combates travados entre franceses e ingleses pela posse da principal cidade da região, a fortificada Orleans.
Não é impossível que muitas barbaridades tenham sido praticadas ali pelos soldados ingleses, que queimavam, chacinavam e cometiam todo tipo de brutalidades com as populações das aldeias invadidas. Isso era praxe em todas as guerras medievais. Não é difícil imaginar que alguma pessoa da família de Joana D’Arc, ou até ela própria, tivesse sido vítima de tais agressões. Daí o ódio que ela votava aos invasores ingleses e o caráter francamente icônico que se deu á sua qualidade de virgem, marca da simbologia religiosa que foi chumbada à sua figura.
Joana, de certo, acreditava na sua missão messiânica, mas as autoridades francesas, que a usaram para seus propósitos, certamente só viram nela um grande trunfo político. E souberam usá-lo muito bem. Isso está patente no comportamento deles, pois Joana acabou sendo julgada e condenada como bruxa e feiticeira. Foi morta na fogueira, embora tenha sido levantada depois como santa e conquistado um lugar no panteão dos eleitos para o Paraíso. Mas Gilles de Rais, que foi um dos seus mais competentes generais, e um amigo dos mais leais,embora acusado de práticas satânicas e outras barbaridades rituais, que foram muito além da romântica esquizofrenia da donzela de Orleans, acabou escapando da fogueira e foi até perdoado pela igreja, embora os tribunais civis o tenham condenado à forca.
Gilles De Rais foi o maior serial killer que se tem notícia na História da humanidade. Conhecido como o Senhor das Trevas, ele nasceu em 1404 em Machecoul, uma aldeia próxima à fronteira com a Bretanha. Seus pais se chamavam Guy de Montmorency-Laval e Marie de Craon. Feito cavaleiro aos quatorze anos de idade, aos quinze ele já havia feito sua primeira vítima na pessoa de um amigo de infância, a quem ele convidara para um duelo simulado, onde ele pretendia demonstrar as habilidades que havia adquirido em seus treinamentos de cavaleiro. Era para ser um duelo de brincadeira, mas Gilles o levou a sério, matando o colega com uma estocada certeira de sua espada.
Desde criança, entretanto,ele já mostrara a sua perversidade matando e esquartejando animais. Dizem que ele fazia isso com uma fúria e uma frieza quase ritualística, e já nessa época demonstrava possuir um espírito místico e uma personalidade sinistra e demoníaca, que assustava os seus parentes e amigos.
Agressivo por natureza e perverso por instinto, logo foi atraído pela carreira militar e entrou para o exército do pretendente ao trono francês, o Delfim Charles. Mais tarde, ele se tornaria Charles VII, rei da França, coroado por obra e graça de Joana D’Arc, que com suas vitórias no campo de batalha garantiu a sua coroação. A posição de Gilles como general das tropas francesas o levou a conhecer a jovem donzela guerreira, com quem estabeleceu uma sólida e fiel amizade que durou até a prisão e morte dela na fogueira.
Aliás, Gilles de Rais e Joana tinham personalidades muito parecidas. Ambos eram místicos e fanáticos. Ambos acreditavam que uma orientação de ordem superior informava suas ações. Por isso lutavam com denodo, atacando os inimigos sem medo e sem piedade, fazendo das batalhas em que participavam, mais do que uma ação militar, uma missão verdadeiramente religiosa.
Joana D’Arc acreditava que Deus havia escolhido a ela para libertar a França do domínio inglês. Gilles de Rais acreditava que poderia conquistar um poder ilimitado e transcendental através de práticas ritualísticas que envolviam, principalmente, o derramamento de sangue humano.
Enquanto houve guerra e ele pode derramar o sangue dos seus inimigos no campo de batalha, Gilles de Rais aplicou nas ações militares toda a sua habilidade para matar. Com isso tornou-se um herói para os franceses e um respeitado soldado, temido pelos inimigos. Ganhou prestígio, fama e riqueza após as vitórias que ajudou Joana D’Arc a conquistar. Enquanto ela era capturada e julgada pelos ingleses (com a conivência do rei francês a quem ela ajudara a conquistar o trono), Gilles de Rais se tornava um dos maiores barões de França.
Após a morte da sua grande inspiradora Joana D’arc e a derrota dos ingleses, a paz entre os dois reinos foi selada e Gilles se viu sem o seu principal esporte, que era a guerra. Casou-se, mas logo viu que esse tipo de vida não fazia o seu gênero. Informações sobre o seu caráter homossexual logo começaram a ser veiculadas. E também logo começaram a ser comentadas as estranhas práticas às quais ele se entregava, no segredo dos seus soturnos e misteriosos castelos de Tiffauges e Machecoul.
Na região da Bretanha, onde ficavam seus domínios, um grande e terrível mistério começou a preocupar os habitantes daquela localidade. Num período de oito anos, cerca de mil garotos, com idades variáveis entre 7 e 11 anos desapareceram sem deixar rastros. Logo se espalhou pela região a notícia de que eram demônios que surgiam à noite e levavam os meninos. Outra versão dizia que era a própria Igreja que raptava os garotos e os trancafiava em conventos para serem transformarem em padres, já que na época a Igreja passava por um momento de crise e ninguém queria ser padre.
Todavia, em seu castelo Gilles havia fundado uma estranha Confraria que cultuava todo tipo de magia e superstição que havia na época. Lá havia laboratórios de alquimia, onde os adeptos trabalhavam em busca da pedra filosofal, usando sangue humano como matéria prima; havia salões e locais preparados especialmente para bruxos e feiticeiras praticarem seus rituais, e salas especialmente preparadas para ele e os sádicos membros da sua sinistra fraternidade executarem os próprios rituais.
Suas reuniões eram verdadeiros banquetes orgíacos nos quais se praticavam a sodomia e os mais aberrantes comportamentos sexuais. Mas os momentos culminantes eram aqueles em que os meninos raptados pelos membros da estranha Confraria eram torturados, violentados e assassinados no cumprimento de um estranho e satânico ritual, que segundo seus acusadores, tinha por objetivo obter a vida eterna.
No começo do ano de 1440 uma investigação feita por ordem da Igreja acabou descobrindo as atividades de Gilles de Rais e sua estranha seita. E logo ficou patente que o desaparecimento dos meninos da Bretanha tinha a ver com os macabros rituais que eram praticados em seus castelos. E assim teve início um dos mais emblemáticos processos da História da luta do homem contra os males que assolam sua mente nas épocas em que a escuridão e a ignorância se tornam dominantes.
Gilles de Rais, o principal acusado é um homem que se diz temente a Deus. Ostenta os títulos de primeiro barão da Bretanha, marechal de França, grande senhor feudal, companheiro de armas de Joana d’Arc, a maior heroína da nação francesa, com quem compartilhava da sua fé e das vozes que a inspirava.
Cometer crimes contra a fé foi exatamente a acusação que lhe foi feita. O libelo de acusação, redigido pelo Bispo de Nantes, fala em pactos demoníacos, prática de sodomia com caráter sacrílego, violação de privilégios eclesiásticos, assassinatos rituais, no curso dos quais se contabilizavam mais de 600 vítimas, todas ela, crianças entre 7 e 11 anos.
Gilles de Rais tinha na época 34 anos. Nas atas do processo que o condenou, o que mais impressiona são suas próprias confissões dos crimes que cometeu e os motivos pelos quais os cometia. Não os negou, nem às circunstâncias em que foram cometidos. “Eram lindas crianças,” diz ele. “Eu as estrangulava. Quando elas desfaleciam, praticava neles o vício da sodomia. Quando estavam mortas, beijava nos lábios alguns dos rostos mais bonitos”.
Inquirido dos motivos pelos quais fazia coisas tão horrendas, respondeu calmamente: “Não procurava senão o mais puro e completo deleite carnal. O único sentimento capaz de levar um espírito ao que chamais de paraíso.”
“Por que razão”, prossegue ele em seu depoimento, “nesta hora em que já estou desligado de tudo quanto é terrestre, vos ocultaria que ao praticar sodomia, ao matar e reduzir a pó tantas belas crianças, não fiz mais do que procurar a alegria que me davam os seus corpos quentes primeiro, depois gelados entre meus braços? Por que razão vos ocultaria eu que essa alegria se prolongava ainda quando, com as minhas mãos esquartejava, como animais no matadouro, aqueles que acabava de amar? Como negar que sentir o odor de sua carne queimada me lançava numa forma de desmaio, de prazer indizível, que se assemelhava ao ingresso no paraíso?”
Gilles de Rais foi condenado e excomungado no tribunal da Inquisição, mas sendo um barão da corte francesa, escapou da fogueira, sentença ritual que era praxe para todo condenado por heresia, bruxaria, satanismo e práticas afins. A única coisa que parecia incomodá-lo era a excomunhão. Não obstante o caráter perverso que tinha, e a monstruosidade de seus crimes, a idéia de que os fazia com espírito religioso o levava a justificar tudo.
Não temia a morte, mas tinha receio de perder o beneplácito das potências luciferinas que cultivou, por que, segundo confessou aos seus inquisidores, essa era também uma forma de cumprir os desígnios de Deus e honrar a sua amada Santa Madre Igreja. Assim como sua santa e dileta amiga Joana D!arc, ele também ouvia suas vozes. As vozes de Joana a mandava matar ingleses para libertar a França. As de Gilles o incitava a sacrificar e violentar crianças para libertar a suas almas. Dessa forma tudo se justificava.
Diferentemente de Joana, cuja condenação foi orquestrada por motivos puramente políticos, já que ela foi julgada justamente pelos ingleses, os inimigos a quem combateu, o sádico satanista e serial killer Gilles de Rais foi indultado pela Igreja após pedir perdão e confessar todos os seus crimes. O bispo de Nantes, presidente do Tribunal, fez então a clássica pergunta que o tribunal da Inquisição fazia a todos os criminosos desse tipo: “Queres agora, abominando teus erros, tuas evocações e teus outros crimes, que te fizeram sair da fé católica, ser reincorporado na Igreja, tua Mãe, entregando-te de novo a ela?”
Essas mesmas perguntas haviam sido feitas a Jacques de Molay e seus companheiros templários cerca de um século e meio antes; fora feita também a Joana D’Arc, momentos antes de ser levada à fogueira. A que se saiba, nem os templários nem Joana responderam afirmativamente, mas Gilles de Rais disse sim.
E assim, caído de joelhos, o maior serial killler de todos os tempos mal consegue acreditar no que ouve. Está absolvido. Seu espírito não irá sofrer as penas do inferno. Ele chora e suspira. E ante tais demonstrações de arrependimento, o tribunal eclesiástico decide readmiti-lo nas hostes católicas, retirando a acusação de heresia. Com toda a contrição e fervor com que praticara seus crimes Gilles pede humildemente a anulação de sua excomunhão. Jean de Malestroit, o bispo de Nantes, presidente do tribunal, o absolve e o reintegra na congregação dos fiéis católicos, admitindo a sua participação dos sacramentos. Dessa forma o trabalho do tribunal eclesiástico está encerrado e o espírito do Senhor das Trevas, como era chamado o perverso barão da Bretanha, estava em paz. “Vai em paz, Monsenhor de Rais”, diz o bispo. “Daqui pela frente, a Igreja nada mais pode fazer por ti nem contra ti. A decisão agora cabe ao braço secular”.
Mas isso, para Gilles, é o de menos. Morrer ele já sabe que irá. Deus, através da Igreja, perdoa, mas a sociedade não. A sociedade exige o seu sangue por conta do sangue inocente das centenas de crianças que ele matou no curso das suas práticas satânicas. Deus pode fazer acordo com o Diabo para salvar almas, mas a sociedade precisa ser implacável na defesa dos seus valores porque se trata da sua própria sobrevivência.
Do tribunal civil ele sabe que não escapará. Mas para ele isso pouco importa. Já conquistou o seu objetivo, que era tomar o céu de assalto. Daí que venha a tortura e a forca. O seu espírito ganhara a prerrogativa de viver eternamente.
Ele foi enforcado no final do ano de 1440. Não foram poucos os que defenderam as práticas de Gilles de Rais. Houve quem dissesse que as crianças que ele assassinou se tornaram anjos graças ao caráter sacrificial de suas mortes. Também não faltou quem cultuasse sua memória fazendo dele um verdadeiro santo.
Em 1793 sua tumba foi profanada e seus ossos foram roubados. Diz-se que nunca mais foram encontrados e se tornaram relíquia de uma determinada seita secreta. No lugar do seu túmulo admiradores do terrível mago das trevas ergueram um santuário, onde durante muito tempo mulheres grávidas costumavam peregrinar para orar pedindo uma gravidez tranquila e leite abundante. Esse santuário foi demolido por ordem da Igreja, mas consta que até os primeiros anos do século XX, no lugar onde ele se erguia ainda se cultuava a Virgem do Bom Parto e do Cria-Leite.
Isso nos mostra que a loucura humana não tem limites. A mesma fé pode produzir santos e demônios. Só nos resta mesmo contar com a benevolência de Deus e com o seu justo julgamento para que o equilíbrio da nossa razão, muitas vezes perdido em virtude da nossa própria ignorância e perfídia, seja mantido para herança e salvaguarda dos nossos descendentes.
SANTOS E DEMÔNIOS
Esta é a história de Gilles de Rais, o maior assassino de todos os tempos. Ninguém foi mais perverso e cruel que ele. O curioso é que ele não cometeu seus crimes por dinheiro nem por desejo de poder. Isso ele já tinha de sobra. Era um dos maiores barões da França. Seus crimes foram cometidos pela fé. Aliás, a fé sempre é invocada como razão dos maiores crimes. As Cruzadas continuam a ser um bom exemplo disso e os fanáticos do Estado Islâmico é uma prova indiscutível dessa loucura que se apropria da mente humana em certos períodos da História.
Dizem que a luz só pode ser gerada a partir da escuridão. Por isso a Bíblia ensina que o mundo foi feito de luz, luz que Deus tirou das trevas. “Exista luz, disse Deus. E a luz existiu. E Deus viu que luz era boa” O Evangelista João também começa a sua crônica do Novo Testamento com um discurso que fala de trevas e luz.
Convencionalmente se costuma dizer que o século XVI foi “o século da luz”. A cultura ressurgiu através do chamado Renascimento. A Reforma religiosa rompeu os nós com que um clero corrupto, supersticioso e ignorante havia amarrado o espírito humano durante mais de um milênio.
Entretanto, para que a luz possa brilhar, é preciso que antes experimentemos as trevas. Assim, o período que precedeu o século das luzes, ou seja, o século XV, foi talvez o período em que a ignorância, a credulidade e a superstição atingiu o mais alto patamar na história da cultura ocidental. Contribuíram para isso as guerras dinásticas, a cupidez dos bispos e papas da Igreja e uma espiritualidade de caráter extremamente duvidoso, canalizada principalmente para finalidades egoísticas e ávidas de poder.
O século XV foi a época em que as dinastias reais começaram a se afirmar e as monarquias locais davam os primeiros passos para criar os estados nacionais. No Ocidente, França e Inglaterra lutaram uma Guerra de mais de Cem Anos para ver quem dominaria aquela parte da Europa. Na Europa central, as lutas eram para definir quem herdaria os restos do esfacelado Sacro Império Romano Germânico, que as guerras papais, especialmente, haviam contribuído para destruir. Uma multidão de príncipes, barões e prelados religiosos disputavam esse butim, em meio a guerras e conflitos étnicos, que até hoje ainda não foram devidamente solucionados.
Do Oriente vinham os turcos otomanos, povo guerreiro que havia liquidado o Império Romano do Oriente em 1453 e voltava seus olhos para a Europa Ocidental na esperança de ampliar seus domínios e levar mais longe a glória de seus sultões.
Foi o reflexo desse ambiente de pobreza e ignorância, fermentado pelas guerras de conquista e por um clero mais corrupto que piedoso, mais supersticioso que religioso, que levaram rapidamente à população ocidental à degradação intelectual e ao nascimento da cultura da superstição e da falsa ciência.
Na Europa Central nascia a lenda do príncipe Vlad Dracul, que inspiraria o mito do Conde Drácula. Sua fúria na defesa da fé cristã, na luta contra os muçulmanos, o transformaria em um monstro sanguinário. Na Europa Ocidental, começava a se desenvolver uma cultura mística e transcendental, que fazia dos magos, feiticeiras, bruxos e alquimistas, a verdadeira oposição para uma Igreja corrupta e vazia de espiritualidade, que caminhava a passos largos para uma derradeira e definitiva cisão.
Esse foi o caldo do Renascimento, pois como se já se viu, a luz habita nas trevas, e não há luz sem as trevas que a antecede. O Século XV foi a época em que o delírio alquímico atingiu o seu auge. Uma multidão de sopradores e charlatães vendiam seus falsos conhecimentos aos barões, príncipes e autoridades eclesiásticas, prometendo a realização de um sonho quimérico, que era a sinterização da pedra filosofal e o elixir da longa vida. Esses eram os dois produtos, que segundo o sonho alquímico, surgiam como corolários dessa estranha ciência que produziu alguns homens de gênio e uma imensa legião de falsários.
Viver muito e se possível rico. Essa era a principal meta de quem podia contratar um mago, ou um feiticeiro, ou até um verdadeiro cientista para trabalhar para ele na procura da tão sonhada pedra filosofal. Por isso, reis, príncipes, barões e bispos, todos tinham o seu alquimista, ou o seu mago. Uns desenvolvendo a sua estranha prática em laboratórios equipados com fornos, foles, pipetas, astrolábios e balanças, outros em templos ornamentados com sinistras decorações.
Cada corte europeia tinha o seu adivinho. Nada se fazia sem consultá-lo. Por isso, o século XV e as primeiras décadas do século XVI foi a época de ouro dos alquimistas, dos magos, das bruxas, dos feiticeiros, dos videntes e de toda superstição que ainda hoje impressiona a mente humana.
Todos os homens de espírito se envolviam, de uma forma ou de outra, em aventuras místicas. Uns pelo sincero amor ao conhecimento, outros pelo desejo cúpido da fama, do dinheiro, ou do poder puro e simples. O Século XV e as primeiras décadas do XVI foi a época de Paracelso (1493-1541) e Rabellais (1494-1553), verdadeiros cientistas e humanistas, mas também viu nascer Heinrich Kraemer e James Sprenger, dois padres dominicanos, autores do bizarro tratado denominado Maleus Maleficarum (O Martelo das Feiticeiras), obra sinistra que tinha por objetivo ensinar aos piedosos padres e príncipes da época como identificar e exterminar o grande mal do século, ou sejam, os bruxos, os magos e as feiticeiras.
Aliás, para esses dois grandes defensores da fé, o mundo estava povoado por esses agentes de Satanás, e entre eles, a grande maioria eram mulheres. Não foram poucas as mulheres que pagaram por suas superstições nas fogueiras e nos tachos da Inquisição, cujas águas eram fervidas para que os reis e padres provassem os caldos e pelo gosto pudessem identificar se as pobres coitadas eram ou não feiticeiras.
O século XV também viu nascer Joana D’Arc e Gilles de Rais, dois nomes cujas vidas e aventuras espirituais, vividas por ambos na mesma época e com igual intensidade, jamais serão devidamente explicadas de forma racional. Eles deixaram marcas indeléveis no espirito do povo francês, e por um estranho destino, os dois nomes estão ligados de maneira tão estreita e paradoxal, que é difícil desvincular uma experiência da outra. E principalmente não pensar que ambas não foram fruto da mesma inspiração, ou seja, o ambiente místico e supersticioso da época em que os dois viveram.
À luz de uma análise fática e racional, hoje dificilmente se escaparia de concluir que Joana D’arc era uma menina esquizofrênica que sofrera um grande trauma em sua infância, provavelmente em consequência de algum episódio da Guerra dos Cem Anos. Afinal, sua aldeia, a pequena Donremy estava na rota dos combates travados entre franceses e ingleses pela posse da principal cidade da região, a fortificada Orleans.
Não é impossível que muitas barbaridades tenham sido praticadas ali pelos soldados ingleses, que queimavam, chacinavam e cometiam todo tipo de brutalidades com as populações das aldeias invadidas. Isso era praxe em todas as guerras medievais. Não é difícil imaginar que alguma pessoa da família de Joana D’Arc, ou até ela própria, tivesse sido vítima de tais agressões. Daí o ódio que ela votava aos invasores ingleses e o caráter francamente icônico que se deu á sua qualidade de virgem, marca da simbologia religiosa que foi chumbada à sua figura.
Joana, de certo, acreditava na sua missão messiânica, mas as autoridades francesas, que a usaram para seus propósitos, certamente só viram nela um grande trunfo político. E souberam usá-lo muito bem. Isso está patente no comportamento deles, pois Joana acabou sendo julgada e condenada como bruxa e feiticeira. Foi morta na fogueira, embora tenha sido levantada depois como santa e conquistado um lugar no panteão dos eleitos para o Paraíso. Mas Gilles de Rais, que foi um dos seus mais competentes generais, e um amigo dos mais leais,embora acusado de práticas satânicas e outras barbaridades rituais, que foram muito além da romântica esquizofrenia da donzela de Orleans, acabou escapando da fogueira e foi até perdoado pela igreja, embora os tribunais civis o tenham condenado à forca.
Gilles De Rais foi o maior serial killer que se tem notícia na História da humanidade. Conhecido como o Senhor das Trevas, ele nasceu em 1404 em Machecoul, uma aldeia próxima à fronteira com a Bretanha. Seus pais se chamavam Guy de Montmorency-Laval e Marie de Craon. Feito cavaleiro aos quatorze anos de idade, aos quinze ele já havia feito sua primeira vítima na pessoa de um amigo de infância, a quem ele convidara para um duelo simulado, onde ele pretendia demonstrar as habilidades que havia adquirido em seus treinamentos de cavaleiro. Era para ser um duelo de brincadeira, mas Gilles o levou a sério, matando o colega com uma estocada certeira de sua espada.
Desde criança, entretanto,ele já mostrara a sua perversidade matando e esquartejando animais. Dizem que ele fazia isso com uma fúria e uma frieza quase ritualística, e já nessa época demonstrava possuir um espírito místico e uma personalidade sinistra e demoníaca, que assustava os seus parentes e amigos.
Agressivo por natureza e perverso por instinto, logo foi atraído pela carreira militar e entrou para o exército do pretendente ao trono francês, o Delfim Charles. Mais tarde, ele se tornaria Charles VII, rei da França, coroado por obra e graça de Joana D’Arc, que com suas vitórias no campo de batalha garantiu a sua coroação. A posição de Gilles como general das tropas francesas o levou a conhecer a jovem donzela guerreira, com quem estabeleceu uma sólida e fiel amizade que durou até a prisão e morte dela na fogueira.
Aliás, Gilles de Rais e Joana tinham personalidades muito parecidas. Ambos eram místicos e fanáticos. Ambos acreditavam que uma orientação de ordem superior informava suas ações. Por isso lutavam com denodo, atacando os inimigos sem medo e sem piedade, fazendo das batalhas em que participavam, mais do que uma ação militar, uma missão verdadeiramente religiosa.
Joana D’Arc acreditava que Deus havia escolhido a ela para libertar a França do domínio inglês. Gilles de Rais acreditava que poderia conquistar um poder ilimitado e transcendental através de práticas ritualísticas que envolviam, principalmente, o derramamento de sangue humano.
Enquanto houve guerra e ele pode derramar o sangue dos seus inimigos no campo de batalha, Gilles de Rais aplicou nas ações militares toda a sua habilidade para matar. Com isso tornou-se um herói para os franceses e um respeitado soldado, temido pelos inimigos. Ganhou prestígio, fama e riqueza após as vitórias que ajudou Joana D’Arc a conquistar. Enquanto ela era capturada e julgada pelos ingleses (com a conivência do rei francês a quem ela ajudara a conquistar o trono), Gilles de Rais se tornava um dos maiores barões de França.
Após a morte da sua grande inspiradora Joana D’arc e a derrota dos ingleses, a paz entre os dois reinos foi selada e Gilles se viu sem o seu principal esporte, que era a guerra. Casou-se, mas logo viu que esse tipo de vida não fazia o seu gênero. Informações sobre o seu caráter homossexual logo começaram a ser veiculadas. E também logo começaram a ser comentadas as estranhas práticas às quais ele se entregava, no segredo dos seus soturnos e misteriosos castelos de Tiffauges e Machecoul.
Na região da Bretanha, onde ficavam seus domínios, um grande e terrível mistério começou a preocupar os habitantes daquela localidade. Num período de oito anos, cerca de mil garotos, com idades variáveis entre 7 e 11 anos desapareceram sem deixar rastros. Logo se espalhou pela região a notícia de que eram demônios que surgiam à noite e levavam os meninos. Outra versão dizia que era a própria Igreja que raptava os garotos e os trancafiava em conventos para serem transformarem em padres, já que na época a Igreja passava por um momento de crise e ninguém queria ser padre.
Todavia, em seu castelo Gilles havia fundado uma estranha Confraria que cultuava todo tipo de magia e superstição que havia na época. Lá havia laboratórios de alquimia, onde os adeptos trabalhavam em busca da pedra filosofal, usando sangue humano como matéria prima; havia salões e locais preparados especialmente para bruxos e feiticeiras praticarem seus rituais, e salas especialmente preparadas para ele e os sádicos membros da sua sinistra fraternidade executarem os próprios rituais.
Suas reuniões eram verdadeiros banquetes orgíacos nos quais se praticavam a sodomia e os mais aberrantes comportamentos sexuais. Mas os momentos culminantes eram aqueles em que os meninos raptados pelos membros da estranha Confraria eram torturados, violentados e assassinados no cumprimento de um estranho e satânico ritual, que segundo seus acusadores, tinha por objetivo obter a vida eterna.
No começo do ano de 1440 uma investigação feita por ordem da Igreja acabou descobrindo as atividades de Gilles de Rais e sua estranha seita. E logo ficou patente que o desaparecimento dos meninos da Bretanha tinha a ver com os macabros rituais que eram praticados em seus castelos. E assim teve início um dos mais emblemáticos processos da História da luta do homem contra os males que assolam sua mente nas épocas em que a escuridão e a ignorância se tornam dominantes.
Gilles de Rais, o principal acusado é um homem que se diz temente a Deus. Ostenta os títulos de primeiro barão da Bretanha, marechal de França, grande senhor feudal, companheiro de armas de Joana d’Arc, a maior heroína da nação francesa, com quem compartilhava da sua fé e das vozes que a inspirava.
Cometer crimes contra a fé foi exatamente a acusação que lhe foi feita. O libelo de acusação, redigido pelo Bispo de Nantes, fala em pactos demoníacos, prática de sodomia com caráter sacrílego, violação de privilégios eclesiásticos, assassinatos rituais, no curso dos quais se contabilizavam mais de 600 vítimas, todas ela, crianças entre 7 e 11 anos.
Gilles de Rais tinha na época 34 anos. Nas atas do processo que o condenou, o que mais impressiona são suas próprias confissões dos crimes que cometeu e os motivos pelos quais os cometia. Não os negou, nem às circunstâncias em que foram cometidos. “Eram lindas crianças,” diz ele. “Eu as estrangulava. Quando elas desfaleciam, praticava neles o vício da sodomia. Quando estavam mortas, beijava nos lábios alguns dos rostos mais bonitos”.
Inquirido dos motivos pelos quais fazia coisas tão horrendas, respondeu calmamente: “Não procurava senão o mais puro e completo deleite carnal. O único sentimento capaz de levar um espírito ao que chamais de paraíso.”
“Por que razão”, prossegue ele em seu depoimento, “nesta hora em que já estou desligado de tudo quanto é terrestre, vos ocultaria que ao praticar sodomia, ao matar e reduzir a pó tantas belas crianças, não fiz mais do que procurar a alegria que me davam os seus corpos quentes primeiro, depois gelados entre meus braços? Por que razão vos ocultaria eu que essa alegria se prolongava ainda quando, com as minhas mãos esquartejava, como animais no matadouro, aqueles que acabava de amar? Como negar que sentir o odor de sua carne queimada me lançava numa forma de desmaio, de prazer indizível, que se assemelhava ao ingresso no paraíso?”
Gilles de Rais foi condenado e excomungado no tribunal da Inquisição, mas sendo um barão da corte francesa, escapou da fogueira, sentença ritual que era praxe para todo condenado por heresia, bruxaria, satanismo e práticas afins. A única coisa que parecia incomodá-lo era a excomunhão. Não obstante o caráter perverso que tinha, e a monstruosidade de seus crimes, a idéia de que os fazia com espírito religioso o levava a justificar tudo.
Não temia a morte, mas tinha receio de perder o beneplácito das potências luciferinas que cultivou, por que, segundo confessou aos seus inquisidores, essa era também uma forma de cumprir os desígnios de Deus e honrar a sua amada Santa Madre Igreja. Assim como sua santa e dileta amiga Joana D!arc, ele também ouvia suas vozes. As vozes de Joana a mandava matar ingleses para libertar a França. As de Gilles o incitava a sacrificar e violentar crianças para libertar a suas almas. Dessa forma tudo se justificava.
Diferentemente de Joana, cuja condenação foi orquestrada por motivos puramente políticos, já que ela foi julgada justamente pelos ingleses, os inimigos a quem combateu, o sádico satanista e serial killer Gilles de Rais foi indultado pela Igreja após pedir perdão e confessar todos os seus crimes. O bispo de Nantes, presidente do Tribunal, fez então a clássica pergunta que o tribunal da Inquisição fazia a todos os criminosos desse tipo: “Queres agora, abominando teus erros, tuas evocações e teus outros crimes, que te fizeram sair da fé católica, ser reincorporado na Igreja, tua Mãe, entregando-te de novo a ela?”
Essas mesmas perguntas haviam sido feitas a Jacques de Molay e seus companheiros templários cerca de um século e meio antes; fora feita também a Joana D’Arc, momentos antes de ser levada à fogueira. A que se saiba, nem os templários nem Joana responderam afirmativamente, mas Gilles de Rais disse sim.
E assim, caído de joelhos, o maior serial killler de todos os tempos mal consegue acreditar no que ouve. Está absolvido. Seu espírito não irá sofrer as penas do inferno. Ele chora e suspira. E ante tais demonstrações de arrependimento, o tribunal eclesiástico decide readmiti-lo nas hostes católicas, retirando a acusação de heresia. Com toda a contrição e fervor com que praticara seus crimes Gilles pede humildemente a anulação de sua excomunhão. Jean de Malestroit, o bispo de Nantes, presidente do tribunal, o absolve e o reintegra na congregação dos fiéis católicos, admitindo a sua participação dos sacramentos. Dessa forma o trabalho do tribunal eclesiástico está encerrado e o espírito do Senhor das Trevas, como era chamado o perverso barão da Bretanha, estava em paz. “Vai em paz, Monsenhor de Rais”, diz o bispo. “Daqui pela frente, a Igreja nada mais pode fazer por ti nem contra ti. A decisão agora cabe ao braço secular”.
Mas isso, para Gilles, é o de menos. Morrer ele já sabe que irá. Deus, através da Igreja, perdoa, mas a sociedade não. A sociedade exige o seu sangue por conta do sangue inocente das centenas de crianças que ele matou no curso das suas práticas satânicas. Deus pode fazer acordo com o Diabo para salvar almas, mas a sociedade precisa ser implacável na defesa dos seus valores porque se trata da sua própria sobrevivência.
Do tribunal civil ele sabe que não escapará. Mas para ele isso pouco importa. Já conquistou o seu objetivo, que era tomar o céu de assalto. Daí que venha a tortura e a forca. O seu espírito ganhara a prerrogativa de viver eternamente.
Ele foi enforcado no final do ano de 1440. Não foram poucos os que defenderam as práticas de Gilles de Rais. Houve quem dissesse que as crianças que ele assassinou se tornaram anjos graças ao caráter sacrificial de suas mortes. Também não faltou quem cultuasse sua memória fazendo dele um verdadeiro santo.
Em 1793 sua tumba foi profanada e seus ossos foram roubados. Diz-se que nunca mais foram encontrados e se tornaram relíquia de uma determinada seita secreta. No lugar do seu túmulo admiradores do terrível mago das trevas ergueram um santuário, onde durante muito tempo mulheres grávidas costumavam peregrinar para orar pedindo uma gravidez tranquila e leite abundante. Esse santuário foi demolido por ordem da Igreja, mas consta que até os primeiros anos do século XX, no lugar onde ele se erguia ainda se cultuava a Virgem do Bom Parto e do Cria-Leite.
Isso nos mostra que a loucura humana não tem limites. A mesma fé pode produzir santos e demônios. Só nos resta mesmo contar com a benevolência de Deus e com o seu justo julgamento para que o equilíbrio da nossa razão, muitas vezes perdido em virtude da nossa própria ignorância e perfídia, seja mantido para herança e salvaguarda dos nossos descendentes.