7 PECADOS - UM BAQUE PARA ORGÈ (completo)

PRÓLOGO PRETEXTO

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_ Todo começo é gerado na dúvida, quem contará o que aconteceu na noite de 22 de setembro?

_ Pelo que vejo, o nó está na boca da primeira pessoa.

_ Também nas 'cordas vogais' que se misturam e no plano astral onde mora essa sensação de ter tido uma das pernas amputada.

_ É um pecado complicar assim.

_ Pecado é deixar inconsciente o poder nato.

_ O meu maior pecado é não admitir perda. Sou avarento, guardo insignificâncias. Tenho guardado palavras mordidas e sentidos ao meio, como se eu fosse o bicho e a palavra uma goiaba.

_ Para contar bastaria não linear a composição ao entendimento dos leitores?

_ Não é tão simples, nem fácil.

_ Passe então a escrever de corrido, sem pensar. Veja que ainda não tapamos os ouvidos. O ditado é popular: abaixe as orelhas, emudecido nas entrelinhas, para ouvir quantos burros falem.

_ A busca pelo narrador asfixiado é angustiante. Busca asfixiante. Quem conta se mostra e some.

_ Eu não me gabo de pecar,

_ Nem eu.

_ Nem eu.

_ De tudo que fiz me gabo. Eu só não matei. Isso é verdade. Mas se tivesse que escolher uma vítima, silenciaria um daqueles poetas imortais. Eles sopram na minha orelha como deve andar a carruagem.

_ Conto que quer ser poema é prosa poética?

_ Por isso esse relato manco é uma carroça.

_ É mesmo sobre os sete pecados capitais?

_ De certa forma é.

_ Tema desgraçado por si só. Toda a civilização calcada na fábula da desobediência no paraíso e temos mais uma narrativa procurando maneira de pôr a coisa toda de pé sem cair no desvão da estupidez.

_ A estupidez é considerada pecado?

_ Deveria.

_ A minha estupidez é.

_ Tudo já foi dito, desabamos sem prumo.

_ Desvende logo para quem não vai chegar ao clímax.

_ Omitiu a conclusão?

_ Conclusão é coisa fechada, tem pompa de juízo final.

_ Mas todos pecaram, está escrito.

_ Eu não li, então não pequei?

_ Basta.

_ Basta, precisa atender a necessidade de quem vive na certeza da imortalidade.

_ Então vamos aos fatos ocorridos na noite de 22 de setembro e narrados por nós. O corpo do baile avançava um passo para frente e dois para trás numa dança circular sagrada. Sacrifício, morte e ressurreição.

_ Mas a morte está em oferta, morre-se de graça.

_ Assim não conto.

_ Não deveria sentir medo, morrer é natural. Contar uma história é coisa natural.

_ O medo não é do narrar. Vem do apego ao descartável que vida de plástico promove como arte.

_ Lá vem o sociólogo...

_ É verdade que o amor acontece mas dura a eternidade de um suspiro nas histórias que são da mesma matéria de que o tempo é feito.

_ Lá vem o poeta romântico...

_ Se reparar bem dentro de qualquer pessoa verá que as histórias já estão escritas. Nem precisava colocar no papel.

_ Mas ai não teria graça porque não existiriam os livros.

_ O mistério todo fica meio xoxo assim colado tão perto na cara. Cada pessoa é a soma de todo o passado que veio antes dela? Não te parece?

_ Lá vem o hermeneuta...

_ Coitada de cada pessoa!

_ Sendo peso oculto, cada um de nós é poço de solidão e sede.

_ Não somos pessoas, não existimos fora daqui...

_ Grande novidade...!?!

_ Eu nem queria essa metafísica, dá trabalho isso de precisar um instante em treze bilhões de anos da vida sobre o planeta.

_ Exagerado!

_ Exagerei? A ciência não mente, pelo menos enquanto tem certeza.

_ Melhor tocar esse relato, já é tempo.

_ Você tinha dito que é a história desse rapaz, o Orgè.

_ Sim, tão comum ele. Sente muito, sente tudo apressado e tropeça nas emoções que não controla. Para tropeço, acredita que pode tudo.

_ Então...?

_ Tudo aconteceu numa única noite, em 22 de setembro. Mais precisamente quando o céu já quase enegrecido silenciava...

***

[IRA – por volta das 20h]

Quando o céu já quase enegrecido silencia, Orgè levanta do sofá. O sol se põe, o corpo ficara mais leve. As mãos acordadas, levemente trêmulas, abrem as gavetas de sempre. Às escuras, preciso de um baque.

Sem os analgésicos, Orgè passou da sala ao banheiro, do banheiro ao quarto da mãe, do quarto da mãe ao seu onde deveria esperar Beatriz.

(Uma descrição de Beatriz na voz da mãe de Orgè: o nome dessa mulher que o meu filho trouxe pra casa é Beatriz. É uma frouxa, mas trabalha. É enfermeira, chega muito tarde toda noite e diz que a criança na barriga dela é obra do meu filho. Imagina? Eu vó.)

O último tom púrpuro cai no horizonte da janela. Um baque, essa merda grita na veia.

Orgè entra no banho, sai molhado pela casa. A toalha branca na cintura abraça o volume das ancas. No quarto, despeja perfume no peito como se ali uma boca dragasse a essência de tudo. Mais uma gaveta, nada de comprimidos. Outra e mais uma. Pavio curto. Orgè possesso, sem fôlego mal respira. Algo de amargo sobe do estomago, bílis na garganta. A raiva obstrui a passagem do ar. A ira é um coágulo no esôfago.

Em outra realidade, o reflexo respira devagar no espelho (jurei que não ia interferir, mas aqui estou e vou ficar). Esquecido do embrulho no estômago, outro Orgè veste lentamente a calça mais justa. Cego para o resto, não aceita a vida como está. Sem emprego, a gravidez de Beatriz, sua mãe trazendo mais um namorado para dentro de casa. No espelho é mais forte e sereno porque calado. Como se dormindo parecesse o pai, de olhar perdido. Mas isso é no espelho, o pai dele está morto há cinco anos, três meses e dois dias. A cólera desfigura o semblante jovem e a doçura é esquecida no reflexo.

Orgè fecha a braguilha e num movimento preciso encerra o devaneio. Não usa cueca porque a dormência latejante nos testículos apertados causa uma dor agradável que o distrai.

- Vai sair de novo, filho?

- Cala a boca, mãe.

O celular toca, é o primo da Valéria. Quer saber quem tem da boa, parece que está numa festa. Não, não é festa. Estamos dentro de um carro a caminho da favela. No morro, quem tem? Quem? A Valéria está aqui, vai comigo. Quem mais? Tem duas amigas dela. Festa onde? Babaca, vem logo. Encontro vocês na casa do Diogo. Vou transar com todo mundo. Idiota, você é um babaca.

Orgè quase arremessa o celular na parede, mas engole também o gesto.

O primo da Valéria leva tudo na lábia. Ninguém sabe se ele é gay, o fato é que o cara sai com todo mundo e tem sempre as melhores drogas.

Orgè alcança a jaqueta na cadeira da sala, confere as chaves da Harley e sai. Bate a porta, por pouco não acerta a cara da mãe.

Aquelas vadias só pensam em sexo, preciso um baque agora.

- Vai sair de novo, filho?

- Merda, quem colocou esse vaso aqui?

[LUXURIA – 22h15]

Espreita. Na escadaria da rua apelidada favela, Valéria encena. Imiscui-se ladeira abaixo, exibe. No breu da noite, no bucho da cobra, tudo resplandece para os olhos de Orgè.

Os pontos de luz focam desde o alto do morro até a esquina onde está o carro, estratégicos personagens recostados na rotunda formada pela sequencia dos barracos.

Enquanto Orgè encosta a moto, Valéria desce quebrando os quadris, resplandecente. Pouco tempo antes deixara as amigas com o primo cheio de apetite no carro, subira a ladeira para buscar a alegria e está de volta.

Na circunferência projetada no chão, sob os postes, os corpos das sentinelas são olhos moluscos sem pálpebras, famintos. O corpo é essa coisa que desperta desejo e tem preço nas publicidades. Aqueles olhares são tentáculos prontos para o toque grudento na cambraia perolada e transparente do vestidinho de Valéria. Quando ela passa, incontida exuberante, arrasta consigo o brilho das estrelas deixando o alto do morro mais triste. Move-se e a tudo desperta. O punho gira, os dedos apontam, o joelho dobra. Tem os pés metidos no mais fino salto, covinha no rosto, olhar de imperatriz, queixo ditador, cabeleira negra em branquela atrevida. Não é uma mulher, é Valéria que agora é inspecionada pelo Contenção antes de deixar a escadaria. Ela suspira, ela geme.

O último no posto não precisa averiguar mas faz dessa oportunidade seu momento de glória. Ninguém sai do beco com drogas a mais, aprende-se isso na academia pública de detenção.

No carro, o primo antecipa a festa que teremos na casa do Diogo calando os seios das amigas em sua boca tagarela.

Orgè precisa de um baque, Valéria demora.

Demora porque o Contenção é bonito, forte que nem um homem de aço e preto que até some no escuro do muro. Ele ergue a barra da cambraia, desliza a mão corcovada e sente os pelos que seriam dourados à luz do dia.

A tensão só faz aumentar nossa pressa porque Orgè precisa.

No preto, o sangue sobe nas veias. O rapaz que faz a função de vigia oferece o lábio generoso, ela corresponde ao beijo. Enquanto a mão dele avança, as dela crucificam os braços impotentes dele no muro. Ele usa o joelho em dobra, a saia do vestido é apertada. Ela crava o salto na sua bota e escreve o nariz no pescoço dele. Ele abre guarda. Ela não recua. Um passo para trás, dois para frente. Esfregam-se.

(Porque essa atrevida dá de graça o que eu sempre quis comprar? Vagabunda, biscate, ordinária. Minha princesa, minha rainha, minha deusa).

Esfregam-se, é o quanto precisa ser dito. A sequencia da cena acaba no gesto surpreendente que agora se narra. Valéria tem os braços enlaçados, serpenteia a virilidade acentuada do moço e sobe uma das mãos até a cintura dele. Ali saca do revolver guardado apertado nos lombos. Atônito, de olhos arregalados e o canto da boca rasgado para a direita, o preto leva o tiro.

(Não sei o que está acontecendo)

O estalido do tambor faz girar o oco na cabeça de Orgé. A fornicação dentro do carro tem fim porque nossa continência pode esperar. Para fora da cabeça do preto forte como aço, a vida se projeta migalha. Nada molhado em carmim.

O morro para, em transe.

A absoluta ausência de regra para administrar o absurdo justifica o desembaraço de Valéria descendo, descendo, descendo os últimos degraus como se oferecesse o corpo na passarela da fama. Agora, sentada do lado do primo no carro, Valéria engatilha a falação satisfeita. Até que cheguemos à casa do Diogo teremos de ouvir CALA A BOCA O QUE VOCÊ FEZ CALA A MERDA NA SUA BOCA TÁ MALUCA SUA MOTO NÃO É SUA MAIS ERA SÓ PEGAR A ENCOMENDA VOCÊ TROCOU MINHA HARLEY PISA FUNDO SE NÃO O TEMPO FECHA MOSTRO DEPOIS SAI LOGO DAQUI PORQUE MATOU AQUELE CARA.

[AVAREZA – quase meia noite]

Tudo junto de uma vez. Já reparou, O campo onde brotam as emoções é um amontoado conflitante de percepções. A cada instante, as condições que possibilitaram compreender o que se passa já fazem o contrário. Algumas paixões dão-se à vista e são elas, ou antes, a impossibilidade do equilíbrio, o que nos leva a pecar.

No carro, a histeria torna impossível dizer quem fala e em que ordem estão falando as duas amigas que Orgè dissera “vadias”, o primo de Valéria que dirige sem saber para onde ir nesse momento, a própria Valéria e o marido de Beatriz que a essa altura estaria de plantão no hospital.

Quanto mais falam mais se repetem. Sem ouvir uns aos outros, aquele emaranhado fica sem explicação até que tenhamos certeza do sucesso da fuga.

O carro avança acelerado no escuro das avenidas. Cada esquina, colada no ângulo da próxima, torna a vertigem assustadora. A polícia ou os outros, alguém vem atrás de nós? Já podemos respirar do ar fresco, é meia noite.

_ Para esse carro.

O condutor sai cambaleando até o meio fio da calçada. No silêncio de túmulo abandonado ouvimos as contrações do seu vômito.

Valéria sai do carro em seguida, o suor escorrendo nuca abaixo. Só então ela tira de entre as pernas a droga que trouxera a mais, roubada.

Orgè salta do banco de trás, abre o semblante. As duas “vadias” ficam no acento.

- Heroína?

- Muito mais do que sua moto vale. Aquele preto recebeu o que merecia, roubou antes. Levou a minha juventude, minha vida. Nunca pôs nada no lugar.

No íntimo, Valeria busca uma lembrança que explicasse “vida roubada” quando queria ter dito “ele sequestrou minha subjetividade” mas não tem palavras para tanto requinte. Precisa culpar alguém, a lembrança é infantil demais para ser compartilhada. Uma impressão borrada sem contorno. A sensação de perder-se, de abandono. Como se sujando as fraldas pela primeira vez não tivesse o amparo da mãe que a limpasse.

Não sei o que se passou na cabeça dela, sei que sou igualmente avarento e por isso comparo. No corpo, a avareza, se vista como é em princípio, dá numa prisão de ventre. Patologia anal que se estende, mais tarde, pelas vias do caráter. Sem cuidados, Valeria sentiu-se suja muito cedo na vida. Valéria é tão comum quanto Orgè, cultua sua beleza como quem acumula riqueza. Sacia a sede nas gotas do orvalho sobre o vidro da existência sem notar a chuva. Ela caçou e matou, sente-se viva. Vai dopar-se para esquece de novo que ainda está viva.

Milhares de conexões neurais desarranjam o intestino dos eventos ligados à boca faminta que é a noite. No turbilhão das imagens alternadas de sombra e luz, os dentes dessa engrenagem trituram e fundem fogo e fezes.

Orgè dissimula a urgência do baque, a ira se foi com o susto ou cumula estrados de cólera que não percebemos porque agora ele pensa objetivamente. A opção mais segura ainda é a casa do Diogo. Avaro, conclui secretamente “Quero só a metade”.

Curiosa relação tem os opostos. O desejo de reter, de possuir a fonte que desperta o desejo, é contrário ao prazer de expurgar o que não pertence. Isso incomoda. Não tarda isso tudo evapora, as gotas do orvalho chovem noutro lugar.

Depois de exibir-se sentindo o poder na mão, Valéria guarda o produto do furto sob a pressão do lingerie mínimo enquanto uma das vadias (coisa feia, eu nem sei quem são essas duas para concordar com o juízo feito delas. Paciência.) enquanto uma das vadias gesticula eufórica e grita “para a casa do Diogo, Diogo, Diogo”.

Antes de entrarmos mais uma vez no carro, acho prudente notar o outro lado do jardim mal iluminado da praça. Atrás de uma árvore com aparência de ter sido atingida por um raio, um cão nos observa. Ele defeca no escuro. Uma sombra na sombra. Alonga as patas traseiras e cobre de terra o excremento. Parece pôr-se ereto, de pé. Cruz credo. Quando gira, retorcendo o corpo magro para depois sumir entre as árvores, um arrepio percorre a espinha dos cinco.

Ninguém fala uma só palavra.

[VAIDADE – logo depois da 1h]

Porque a superfície das coisas se revela e se transforma rapidamente, podemos aceitar que o passado seja aquele peso morto que torna o presente insuportável. Nesse retorno sádico e sombrio, a fuga mais doce é a entrega. Para mais dentro, a arte é enganar dizendo a verdade. Onde estão os fatos? Ah, sim! O próximo episódio desdobra pecado semelhante. Igual mas diferente.

Um travesti está saindo da casa do Diogo quando finalmente chegamos ao destino fatal. O destino será sempre fatalidade, quase tirei o clichê, é uma bobagem. O destino está e circula nas veias. Um travesti está saindo quando chegamos.

Tão bonito quanto exuberante. Uma falta de educação para não dizer sensual porque podem pensar que é perfeito. Perfeito só Deus que nunca foi visto. Nem Eva, nasceu sem umbigo. Que inveja, vir ao mundo sem pai ou mãe ou história que se conte. Só ânsia, pecar por saber-se no mundo. Esse travesti parece Eva mas tem umbigo, na sua história falta alguma coisa porque é também uma história de insatisfação.

A travesti sai da casa e Orgè entra conduzido pela raiva ou, como os outros, em busca do gozo. “A travesti”. Tudo no feminino, que no fim dá na mesma coisa.

A figura daquele homem vestido de mulher impressionou muito. Basta ver a pesada nuvem no semblante das duas vadias amigas de Valéria. (Pronto, já concordo delas serem vadias). Inveja mata, todo mundo sabe. Essas duas são despeitadas, literalmente têm as tetas caídas. Se pudessem, arrancariam do outro o que julgam ser postiço. Amargam tanto a inveja que dói sentir. Não suportam perceber que seus corpos foram usados e que tudo está bem gasto.

O corpo não é coisa mas é coisa para os sentidos desonestos. Quando o desejo aperta, o desonesto divide o corpo que deseja em pedaços. Depois de esquartejado, é coisa pronta para o consumo sem culpa. Mas isso também é comum, quem sabe cala. Eu falo porque conto, peco há mais tempo. Então reforço, aquelas duas são mesmo vadias, sem aspas, vagabundas mesmo. Ordinárias intrometidas que só estão aqui para dar simetria ao relato. Sabe como é, para dar em medidas a elegante saída da mulher que não é mulher quando finalmente entramos.

Mesmo afoito por um baque, Orgè é o único que diz boa noite. Olha dentro dos olhos do travesti para tocar no homem que está triste dentro dele mesmo.

Estamos doentes e o maligno do mundo se alegra nas sombras, isso foi um pastor de igreja que falou noutro caso.

Se o homem travestido fosse a personagem principal desse relato diria que tem visto gente viva infeliz assombrada esquecendo a vida de lado. Se fosse o tal pastor diria que aqui, no reino dos vícios, o pecado é o câncer da alma. Já eu penso que o pecado é aquilo que provoca a morte separando os liames que liga o semblante divino à semelhança desumana. Tudo isso são sintomas de uma doença terminal instalada onde começa o livre arbítrio, o pastor insiste, o pecado corrói a integridade. Ainda diria mais, o pastor inventado, diria que as pessoas levam tudo na flauta. Minha mãe falava isso e a mãe dela também. Minha mãe diria que esses que se encontram são pessoas mortas. Mas agora eu me confundi e não sei mais se quem fala é o pastor, o travesti ou minha mãe. O certo é que sem brilho que lhes escape, os cinco têm olhos de vidro e não enxergam. Têm lábios repuxados numa costura que leva acabamento discreto de botão cerzido.

Não deu tempo de ver muita coisa, a cena é rápida. O que de concreto acontece está diluído nos olhares. Só Orgé diz “Boa noite”.

Outro dia estava pensando, os mais fortes são crianças tolas. Crianças tolas que padecem da Síndrome de Francisco (não convém procurar nos manuais, não foi catalogada). Os mais fortes não podem resolver o problema das crianças mutiladas na guerra de Angola. Não podem saciar a fome dos velhos moribundos no deserto de Nairóbi. Os mais fortes são usados e os mais fracos esquecidos. As crianças angolanas, os moribundos de Naerobi e os dependentes químicos do mundo todo não cabem nessa história. Valéria dá o primeiro baque. Não devíamos estar com ela, a viagem é solitária. Quem quer que vá.

[SOBERBA – entre 2h e 3:30]

Algo se desprende para fora do corpo mas é no corpo, poço de solidão e sede, que tudo se dá. Para dentro daqueles treze bilhões de anos, para o alto de um Evereste em sete segundos. Tão rápido que Valéria parece perder o fôlego. O fôlego, mas não o prazer do alívio por estar de volta no tempo anterior à fundação do Éden.

Então, o anjo de luz aproxima-se do Criador e argumenta:

- Dissestes-me, vá e desvirtua o homem. Sabíeis que não haveria mais que cinzas onde apontavas retidão. Voltar ao barro o vaso quebrado, restituir a carne depois de fazê-la pele sobre ossos, fazer de Jó homem novo, era questão de saber qual de nós riria primeiro.

Sendo o Criador o que é, sombra absoluta e silêncio, fez ecoar sua voz sem que estivesse. O anjo, então, continuou.

- Por fim, nem virtude ou retidão. Se vós restituiríeis, e em dobro, as perdas do desgraçado, melhor teria sido que a danação dele fosse completa.

Nenhum movimento. O Criador é não sendo, escuta:

- E agora viestes pedir-me auxílio, depois de tanto. Já disse que não há, em nenhum dos mundos, homem que valha tal queda. Se para o mundo olhastes e não suportastes, respondei-me, por que eu deveria de novo rondar a terra para tão somente encontrar a iniquidade nela?

Uma nebulosa engolfa anjo e Aquele que não está. A língua de luz relampeja, o anjo completa:

- Encarnai vós, e senti. Ou permitirdes, se encontrarmos o sonhador de que falai, dele a erradicação concluir.

Nesse instante, pareceu que o sol tivesse inclinado três graus no seu eixo. A luz em torno do anjo rebelado arrefeceu e ele prosseguiu:

- Sim. É possível. Em qualquer tempo e em qualquer lugar é possível remendar a verdade e criar de novo. Sabeis que basta emendar na dúvida o germe da esperança.

E como antecipasse um eclipse, esclareceu.

- Não é isso. Ficai tranquilo, vossas mãos continuarão limpas. Quanto a mim, já não tenho asas. Não será o caso, se encontrá-lo, tocar-lhe o corpo. Ganho quanto mais minto, sabeis. Importa-me, tome nota, nesse contrato escuso, ganhar a alma no sonho e garantir que o sonhador faça-me eterna companhia.

Com esta presença de espírito, quando a alma quase ultrapassa, quase vence a gravidade, quase alcança a paz no átimo da suspensão, Valéria cai atraída pelo que há de ferro, cobre e zinco na Terra. Metais nobres em arcos filamentos dourados surgem aureolas nas pontas dos dedos dos pés e das mãos. Apertam e afrouxam. Apertam, afrouxam e avançam aumentando o diâmetro para incluir a polpa roliça e depois as coxas e, antes delas, os joelhos e os tornozelos. O ardor nesse movimento dourado comprime e dilata vasos sanguíneos esquecidos, ativa músculos sem uso. O sangue circula velocidade impensada. Os brônquios entram no espasmo, o pulmão se agiganta e a respiração é a respiração de uma mulher no primeiro orgasmo. Os pedaços reunidos alcançam sentido. E Orgè é o próximo.

Um baque para Orgè.

[GULA – entre 3:30 e 5h]

Mas não acontece.

E não acontece porque um bicho estranho, feito aquele cachorro cagando na praça, parece ter vindo de onde a alma de Valéria esteve. Vem junto e toma posse do semblante dela. Não é o diabo, mas é vesgo. Olha devorando. Um olhar assim, desses que tem peso. Talvez que tenha deixado o céu muito rápido e, na passagem pelo inferno, tenha trazido uma legião consigo. Em duas palavras, “quero mais”.

Valéria quer mais, quer tudo de uma vez. Desanda para o banheiro, leva o que se tinha preparado para Orgè e se tranca.

Aqui é limite, o resto é tamanha agonia.

Alguém disse que substâncias químicas abrem as portas da percepção e mantém a consciência imóvel. Que seja, todos precisamos de anestesia. A prática da yoga pede dedicação e tempo. Cerveja e televisão sai mais barato, dipirona também. Valéria morre para sair dessa história sem moral que chega ao último pecado.

[PREGUIÇA – ás sete horas da manhã]

O sol invade a área de serviço quando Orgé passa a chave na porta.

O apartamento está em silêncio.

Ele não se lembra de ter quebrado o vaso, não se lembra o que é girassol.

O vazo descontinua no mesmo lugar, a terra continua espalhada e a flor murcha continuará morta.

Noite perdida.

Nada redimido.

A certeza oprime tanto, pesa aquele pico não escalado nos ombros. Sem perdão, devedor em fuga. Paraíso mais uma vez para sempre perdido. Se meu pai estivesse aqui nada de mal teria acontecido, Orgé entra desconfiado.

A eternidade de plástico nos cerca.

Orgè evita o espelho mentiroso. Não suporta o julgamento, a injúria e o escárnio que são julgamentos que ele mesmo faz. Afinal, quem colocou esse vaso ali?

A contínua distração não desfez a raiva, o motivo primeiro e fio condutor desse relato. Só preciso esquecer o medo, o susto e a correria. Abandonar o corpo sem vida.

Poderíamos retornar ao banheiro na casa do Diogo para contemplar Valéria descansado sem vida, seria bonito descrever a calma estampada na face dormente mas teríamos uma ponta a mais nessa narrativa que chega ao fim. Das tantas pontas soltas, uma pede demora.

É que esquecemos algo para trás. Fio na trama que pode mudar o destino fatal. Recomeça o dia pelo fim.

O sofá acolhe o corpo cansado, é velho conhecido. Orgè escorrega lentamente e afunda nas marcas da camurça desbotada.

Nesse instante, recostado e pálido, cerrando os olhos para ensaiar a morte suportável, Orgè ouve o sinal de chamada no aparelho celular.

É mensagem de voz gravada por sua mãe no hospital em que Beatriz trabalha. É o choro do filho recém nascido. A mensagem tem legenda, “é menino”.

Treze bilhões de anos, a evolução aí está. Exagerei?

Dobrado como pinto no ovo, Orgè derrama o choro e abraça os lençóis. Mais uma criança nasceu.

*

*

Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 11/09/2016
Reeditado em 17/02/2018
Código do texto: T5757600
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