Sombras da noite

10/9/2016

A noite estava fria e em sua cama dura e estreita Leandro tremia, pois a coberta furada e gasta não dava conta daquele ar estremecedor. Havia uma luz que vinha do poste que se localizava diante da janela, e se direcionava incauta aos olhos do garoto. Ele tossia bastante, e as crianças que estava a sua volta reclamavam, não tinham mais nada para jogar nele, mas jogaram tudo o que tinham antes. Chegava a meia noite, ele sabia que só terá terror para ele.

Uma voz sibilou próxima a sua orelha, chamando:

- Vem, vem, vem...

Ele cobriu a cabeça e os pés se descobriram. Ele tremeu mais de medo que de frio. Tossiu sob a coberta e algo úmido ficou incontido em sua boca. Ele tocou aquele líquido e observou a cor enegrecida em seus dedos, pela luz do poste, e sabia que era sangue, pelo sabor e pela cor.

Vultos passavam por ele, sobre ele, sob ele. Ele podia sentir o toque deles e ignorava o que lhe falavam, pois sempre o chamavam para ir morar com eles, e Leandro não queria morre, ele só queria ter uma família. Estava realmente com muito medo. Quando conseguiu dormir ele sonhou que estava em uma casa clara e iluminada, com outras crianças brincando no quintal. Pela porta dos fundos da casa uma mulher linda e gorda saiu e chamou a todos para o lanche da tarde e eles, incluindo Leandro, a chamavam de mãe.

No sonho ele se sentia completo, ele não era raquítico, não sofria daquilo que ele não sabia nomear, mas que posso afirmar a você que era tuberculose. No sonho as outras crianças estavam com ele e não longe dele, com medo, pois ele não via as coisas que apareciam para ele a noite, ele não via mais as pessoas mortas.

Ele sabia que era órfão, que foi deixado lá depois que nasceu por sua mãe ter morrido no parto, e não ter família. Ele sabia que os doze anos que já vivera poderiam ser um passado esquecido quando um futuro melhor chegasse, e ele sonhava com esse futuro quase toda noite, quase todo o dia, o tempo todo.

Durante o lanche da tarde, naquele sonho que estava vivendo, ele começou a tossir, e então se lembrou que estava doente e então acordou. O relógio grande e barulhento que se posicionava sobre a grande porta de duas folhas que acessava aquele quarto mostrava duas e cinquenta da madrugada, ele não sabia ler, mas aprendeu a ver a horas depois de muito pedir e treinar com as freiras e segurança daquela instituição.

Ele tossia mais, e as pessoas mortas estavam em trono da cama, como que formando um globo espectral frio, regelado, assustador, cheio de vozes em coro:

- Você está quase pronto, vem Leandro, vem Leandro, você está quase pronto.

Ele tossia mais alto e mais vezes, seu peito doía, parecia que havia uma faca trespassando-o do peito para as costas e quando ele respirava ou tossia aquela dor lancinante se propagava, o mutilava. Muito sangue escorria livremente pela boca que não se fechava em busca de ar, um ar que era espesso, duro, entrava rasgando as narinas e a garganta, e mesmo assim ele buscava mais. Ele não conseguia entender, mas as outras crianças gritavam com ele.

Ele tentou se levantar para respirar melhor, tossindo e tossindo, ficou de quatro sobre a cama, arcado e arfando desesperadamente, tossindo e tossindo... sangue, muito sangue, ele não conseguia respirar. Passou a tossir e vomitar sangue, até perder as forças e cair no chão.

Com a barriga exposta para o teto, o corpo se contorcendo sem que ele pudesse conter os espasmos, as crianças que ainda estavam vivas levantaram e o chutaram, e a dor parecia não indicar que era uma violência que não vinha da doença.

De repente as crianças foram projetadas e caíram no corredor das camas, e desesperadas começaram a gritar. As luzes se acenderam e Leandro já não tossia, só arfava, afogando-se no próprio sangue, ele viu vultos de pessoas vivas e vultos de pessoas mortas e era agora um vulto. Parou de sentir frio, dor e de tossir:

- Leandro! Agora você não está mais sozinho! – era a mãe, bela e gorda, envolta pelas crianças que brincavam com ele, abraçando-o com muito amor. – você tem uma família agora.

- Eu... eu... morri?

- Você tem uma família agora, Leandro.

Ele não podia ver as pessoas vivas, ele não via mais nada além do que vivia ali, naquele plano. Agora ele teria uma vida como sonhara por toda a sua outra vida.

Sinopse do livro Obra perturbadora

“Sempre do ponto de vista de crianças, suas protagonistas, os contos da Obra Perturbadora pretendem mexer com seu leitor, trazendo experiências de leitura com finais abertos e incongruências propositais, que podem até parecer em primeiro momento uma falha da autora, porém, o resultado no leitor é, em geral, atingido e previsto durante a produção deles.

Prepare-se para sentir estranheza, insegurança, suspense, violência, e principalmente a expectativa que traz a melhor sensação do suspense. A autora busca em alguns contos contextualizar o seu leitor para depois apresentar um desfecho incongruente ou violento, ou de uma forma muito distinta não contextualiza o leitor e dá toda a situação ocorrida e o que se espera é que a experiência do leitor trabalhe com as questões que surgem, de forma a trazer a tona a própria personalidade do leitor, seja instigando-o a buscar respostas que não terá, a se revoltar com a falta de informação desejada ou a lidar com o prazer da sensação atingida na leitura. Que tipo de leitor é você? Um detetive, que quanto mais instigado mais busca saber? Um frustrado que para a leitura por não aceitar o jogo da autora? Um imaginativo que complementa as histórias com as possibilidades e se delicia seja com o contexto que lhe é cobrado ou com o desfecho que é incongruente?

Descubra-se lendo a Obra Perturbadora, contos curtos e rápido de terror e suspense que trazem desde os mais clássicos terrores psicológicos até os mais modernos, influenciados pelo Edgar Alan Poe, Stephen King, Lovercraft, entre outro e o cinema do século XX e XXI.”

http://inquietacoesdelauralucy.blogspot.com.br/search/label/Obra%20Perturbadora

Laura Lucy Dias
Enviado por Laura Lucy Dias em 10/09/2016
Reeditado em 24/01/2017
Código do texto: T5756558
Classificação de conteúdo: seguro
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