A HORA DA STRIGA - DTRL 28

Paulo parou diante da nova casa e sorriu. Sentia que valeu a pena cada ano de trabalho e poupança para realizar aquela compra. O sol da manhã de sábado, nascendo por trás da residência, enfeitava-lhe o contorno e aumentava sua sensação de triunfo, externada em um suspiro de satisfação. O quintal era cheio de árvores, quase todas grandes e frondosas, ocupando mais a parte que ficava atrás da construção.

Ipês, acerolas, mangueiras, e outras árvores que ele não conhecia, espalhavam-se pelo extenso gramado, oferecendo o abrigo de suas sombras e perfumando o ambiente. “_ Esse lugar vai ficar ainda mais lindo quando Elizabeth e os trigêmeos chegarem!” -pensou. Elizabeth, sua esposa, estava no fim da gestação e o ultrassom tinha revelado que eram três meninos.

O susto inicial foi grande, afinal, com trigêmeos a responsabilidade é triplicada instantaneamente, sem possibilidade de parcelamento. Mas como seu pai disse: “_ Melhor três a mais na família do que três a menos! Vamos comemorar a chegada dos piás!” A frase tosca, porém sensata, de seu pai, fez com que o assombro cedesse lugar à expectativa e ele passou a acalentar devaneios sobre um futuro cercado de suas três crianças. Já imaginava até mesmo os três balanços num galho longo e forte da robusta árvore na entrada da casa.

O conforto financeiro garantia que os gêmeos chegariam a um lar estruturado e sem maiores problemas materiais.

Enquanto admirava a casa, sua mente viajou nas lembranças do passado recente. Nos últimos anos, tudo vinha dando certo em sua vida. A começar pelo casamento com Elizabeth, sua vizinha desde a infância e sua grande paixão desde a adolescência. Jamais deixaria de se emocionar ao relembrar o dia em que ela, no recreio do segundo ano, aceitou seu pedido de namoro. Aquele foi um momento tão radioso que, mesmo passados alguns anos, ele ainda o relembrava como se tivesse ocorrido no dia anterior.

O sorriso amplo e brilhante da menina amada e o olhar fascinado encantaram-no a tal ponto que seu coração parecia querer sair do peito.

Ele não resistiu, abraçou-a e levantou-a no ar ali mesmo, na quadra do colégio diante dos demais estudantes que, como é próprio da idade, entoaram em uníssono:

“Huuummmm!!T-ã-o-n-a-m-o-r-a-n-d-o-ô!”

Encostando seu rosto no dela, enquanto a trazia para junto de si, ele murmurou sorridente:

“_É... Estamos namorando!”

Ao fim do ensino médio, a aprovação no vestibular para o desejado curso de Direito da universidade federal, que cursaram juntos, foi comemorada com uma festa patrocinada pelas duas famílias.

Isso era outra coisa que o enchia de alegria. O amor que lhe era devotado pela família de Elizabeth. Todos o conheciam desde a infância, e o namoro entre os dois, embora parecesse inesperado, era de pleno agrado dos familiares dela.

Terminada a faculdade, Paulo logrou ser aprovado no concurso para promotor de Justiça do estado, o que lhes garantiria uma estabilidade econômica, além de prestígio profissional. Elizabeth, mais afeita aos fundamentos básicos e filosóficos da ciência do Direito, continuou seus estudos matriculando-se no curso de mestrado.

A carreira acadêmica se afigurava de portas abetas para ela. Contando com a admiração e a confiança de sua orientadora, logo ingressou no doutorado. Mas o grande dom de sua vida, o que lhe fazia bater forte o coração e tremer os lábios de emoção, era Paulo. O casamento aconteceu em clima romanesco. Os noivos derramavam-se em longos olhares e pequenos sorrisos de admiração e cumplicidade. As mãos dadas, mãos que já se conheciam bem, pois que já há muito tempo se tocavam, centelhavam de felicidade.

O leve calor daquele inicio de noite banhava as flores decorativas numa infusão de ar quente que lhes roubava o perfume inundando a igreja. Uma cantora entoava “Insieme” de Mina Mazzini. Romântica e sensual ao mesmo tempo, como era o amor daquele casal.

O fogaréu dos recém-casados se traduzia na pressa de voltar para casa, nas risadas que lembravam as brincadeiras do início do namoro, no cuidado para que o outro não pegasse chuva, no roçar de mãos e no sexo vulcânico que a juventude do casal exigia.

***

O parto dos gêmeos foi tranquilo, apesar da aflição do pai de primeira viagem. A ansiedade de Paulo foi tamanha que os médicos consideraram a hipótese de injetar-lhe um calmante para que ele parasse de andar pelos corredores ou de descer e subir as escadas entre uma andar e outro. A cabeça estava para explodir, afinal estavam com apenas vinte e oito semanas de gestação, e um parto prematuro de três bebês envolvia muitos riscos.

A idéia de perder os bebês o apavorava, mas também era assombrado pelo risco de perder Elizabeth na mesa de parto.

A bolsa de um dos gêmeos tinha estourado de madrugada e, em consequência, a barriga da esposa aumentou muito. Finalmente, às seis e dezessete da manhã, Davi nasceu. Em seguida, às seis e dezoito foi a vez de Artur e, por último, às seis e dezenove, nasceu Carlos Magno. Paulo gritou e pulou de alegria ao receber a notícia de que tudo havia corrido normalmente. Entretanto os gêmeos foram para a UTI, como é prudente fazer com bebês prematuros. O obstetra surgiu no corredor andando em direção a Paulo. O homem grisalho tinha uma expressão tranqüila que inspirava confiança:

_ Senhor Paulo, a internação na UTI é um cuidado rotineiro. O fato de irem para lá não significa que eles tenham algum problema de saúde. É que, como são, prematuros, podem precisar de uma assistência maior. Além disso, a incubadora ajudará a maturar a parte respiratória. – explicou o obstetra.

_ E minha mulher? Ela está bem? – perguntou.

_ Sim – respondeu o médico com um sorriso condescendente. _ Está tudo bem. Sua esposa passa bem. Mas tanto ela quanto os bebês só sairão daqui entre vinte e trinta dias. E compre sapatos novos. A sola destes, o senhor já gastou só aqui nos corredores do hospital. – acrescentou, com um tapinha de leve nas costas do pai aflito.

***

A volta para casa se deu após um mês de internação. A rotina era intensa, pois não era nada fácil dar conta de três bebês chorando e precisando de cuidados higiênicos e alimentação. Os avós ajudaram muito neste momento e tanto os pais de Paulo, seu Jairo e Dona Marta, quanto os pais de Elizabeth, seu Osmar e Dona Catarina, revezaram-se vivendo com eles na casa durante os seis primeiros meses, para cuidarem dos bebês e da vida doméstica.

Entretanto, perceberam que os avós estavam tendo dificuldades para acompanhar o ritmo. O amor e a boa vontade dos “nonos” eram evidentes, mas a idade e a saúde deles já não permitiam que o corpo seguisse a mesma disposição da alma. Principalmente para os pais de Paulo, já que seu Jairo já tinha passado pelo tratamento de um tumor na próstata e também sofrera uma redução na cartilagem do joelho direito.

_ Precisamos contratar uma babá. – disse Paulo.

_ Olha, amor, eu também estava pensando nisso. Dá uma peninha ver nossos velhinhos tentando ajudar... Minha mãe estava cochilando ontem, tadinha. Dormindo sentada... Parecia um bichinho de desenho animado. - riu.

Paulo acrescentou:

_ Amanhã mesmo, vou a uma agência de baby sitters. Vamos procurar uma que possa dormir no trabalho.

_ Ai, meu bem, vai ser um alívio. Boa noite! – disse, Elizabeth, virando-se para dormir.

Elizabeth estava muito sonolenta desde o quarto mês da gestação, e a vida sexual do casal estava extremamente deficitária. Paulo sofria os efeitos dos últimos dez meses sem sexo. Em seus pensamentos mais recônditos, duvidava de que realmente estivesse passando por um período de quase um ano de abstinência. Nesta situação, ele acabou reativando sua coleção de vídeos eróticos e revistas “suecas”... Mas até quando suportaria a provação? O amor pela esposa era imenso. Ele era forte e iria esperar até a completa recuperação da amada.

***

Realizada a visita à agência, a espera durou dois dias. No anoitecer do segundo dia, o telefone tocou, e quando Paulo atendeu, ouviu uma voz feminina firme, porém muito bonita:

_ Boa noite, Sr, Paulo! Eu sou Beatriz, a babá designada para trabalhar em sua casa. Fui informada pela agência, e instruída a ligar para os senhores para marcar minha apresentação para o momento mais breve possível, como foi seu pedido.

_ Boa noite, Beatriz! Nossa! Você não tem idéia de como eu estou contente com a sua ligação! Sim, eu preciso de sua presença o mais rápido possível!

_ Posso chegar amanhã de manhã. – disse Beatriz.

_ Na verdade, eu preciso que você venha ainda nesta noite. Está sendo difícil cuidar de quatro ao mesmo tempo. Já perdi a conta das horas sem sono. Se você não puder, não tem problema, não tem mesmo! Mas se puder.... – choramingou

_ Bem, eu posso, sim! Mas preciso de umas três horas até chegar, pois preciso cuidar de algumas coisas da casa e moro um pouco distante.

_ Não tem problema. Eu mando um táxi te buscar. Certo?

_ Certinho! – respondeu musicalmente a mulher. –

***

Nove e meia da noite. Apenas Paulo estava acordado quando a campainha soou. Olhou pela janela do quarto e viu a mulher esguia parada em frente ao portão. Banhada pelo cone de luz que saía da janela, ela tinha uma mala em uma das mãos, e vestia um agasalho longo. Ele apressou-se em descer para recebê-la e ao abrir a porta da sala foi surpreendido pelo belo e jovial sorriso da babá, que ele esperava que já fosse uma senhora, pelo tom de voz ao telefone.

_ Olá! Sou Beatriz, a babá que o senhor contratou! - disse a mulher.

_ Entre, Beatriz, seja bem vinda! Confesso que estou surpreso. Não achava que você fosse tão... – a mulher interrompeu: _ Feia? – disse acabrunhada.

_ Não! De forma alguma! Eu ia dizer que não achava que você fosse tão jovem, por causa da sua... – ela o interrompeu novamente: _ Voz? – perguntou Beatriz , colocando o indicador direito no queixo enquanto levantava uma das sobrancelhas e voltava o olhar para cima.

_ Sim, isso mesmo! Pensei que já era uma senhora.

_ Todo mundo me diz isso. Que eu tenho voz de velha. – riu.

Enquanto entravam, Paulo agradecia a Deus pela chegada da babá. Pelo menos naquela noite ele dormiria bem. Pela primeira vez desde o nascimento dos reizinhos, ele não dormiria preocupado nem com os bebês, nem com quem estava cuidando deles. Os velhos avós também inspiravam cuidados, e isso não o deixou dormir sossegado no período em que ficaram lá tomando conta dos netinhos. Agora ele teria paz.

Naquela noite, a família toda dormiu profundamente. Elizabeth ressonava como uma criança que adormeceu feliz após um dia de brincadeiras. Paulo dormiu um sono restaurador, como em meses ele não tinha, mas com uma novidade: teve um sonho erótico vívido em sensações e consequências. Algo que não lhe acontecia desde o fim da adolescência. Pelo menos, não com a mesma intensidade.

Sonhou que fazia sexo na numa cadeira da sala com uma mulher ruiva de cabelos curtos.

Pela manhã, Elizabeth foi apresentada à babá, que diligentemente já havia providenciado as mamadeiras dos pequenos e estava embalando Davi, que chorava. Ela sentiu um alívio imenso em ver as crianças bem cuidadas já de manhã cedo, e além da satisfação deixada pela noite bem dormida, também sentiu uma ponta de incômodo se imiscuindo em sua mente. A babá era jovem e linda. Entretanto, procurou afastar este pensamento.

_ Bem, amor, preciso sair. Tenho vários documentos para analisar hoje. Ainda bem que estou descansado. – disse Paulo. – Conversem, troquem idéias, receitas de chás... Estarei de volta à tarde. – despediu-se, beijando a esposa e os bebês. Mas ao despedir-se da babá, apertando-lhe a mão, percebeu um detalhe. Beatriz era ruiva, e seus cabelos eram curtos como os da mulher do sonho. Sorriu e dirigiu-se à porta.

O dia de trabalho transcorreu normalmente, mas ele notava que a disposição matutina esvaía-se rapidamente ao correr das horas. Enquanto dirigia de volta à casa, pensava no sonho que tivera na noite anterior. Será que ficou tão impressionado com a jovem babá a ponto de ter um sonho inspirado por ela? Afinal, ela era muito bonita, e ele já estava com um bom tempo de abstinência sexual.

_ Deve ser isso – pensou.

Ao chegar e entrar em casa, ouviu as risadas das duas mulheres, que pareciam ter se afinizado bastante.

_ Amor, ela é ótima! Conta cada piada! Conta cada“causo”! E essa voz de aeroporto? Como é que alguém tão nova tem uma voz assim? – Disse Elizabeth, rindo.

_ Puxa! Que bom que se deram tão bem! Eu confesso que temia que acontecesse algum problema de convívio entre vocês. Ainda bem que não houve. _ Disse, enquanto beijava a esposa.

_ E você, Beatriz, o que achou do seu primeiro dia conosco? – perguntou ele à babá.

_Achei sua casa linda! As árvores do quintal, então... Barbaridade de lindas! E sua esposa é muito gentil. E os seus bebês são tão fofinhos! Dá vontade de morder de tão fofos. E calminhos, uma maravilha!

_ Mas amor, eu acho que ela gostou mesmo foi daquela cadeira ali. – interrompeu Elizabeth- Qualquer folguinha ela sentava ali. Para ler, para conversar, para acertar o relógio...

Beatriz sorriu, enrubescida.

Paulo olhou para a cadeira e lembrou-se do sonho. Sorriu desconcertado, e foi ver suas crianças. Os três estavam com os olhinhos bem abertos e acompanhando o movimento do pai. Receberam-no com três lindos sorrisos banguelos que só os bebês conseguem ter. Ele pegou cada um no colo, beijando-os e aspirando o cheirinho gostoso dos bebêzinhos.

Naquela noite, o casal assistia tv no quarto, quando de repente, Elizabeth deu uma gargalhada, como se tivesse acabado de assistir uma cena de uma excelente comédia. Mas não havia motivo aparente, afinal assistiam ao noticiário policial. Paulo olhou-a intrigado, esperando que a mulher lhe dissesse o motivo da gargalhada deslocada. E enquanto olhava para ela, percebeu que a expressão de riso estava se transformado numa carinha de choro.

_ O que foi meu amor? - disse ele, enquanto abraçava a mulher.

_ Eu não sei! Eu estou com uma sensação estranha!

_ Como assim?

_Deixa, não é nada!

Paulo já conhecia os “Não é nada!” da esposa, e insistiu delicadamente, passando uma das mãos pelo cabelo dela.

_ Betinha, você pode falar o que é. A gente cresceu junto. A gente namorou, casou... Tivemos nossos reizinhos... – disse sorrindo, enquanto acariciava ponta do nariz de Elizabeth com o indicador da mão direita.

O toque leve de sua mão, e o tom de voz acolhedor, abriram o coração da mulher:

_ Sabe, eu comecei a ter uma sensação de tristeza. E também um medo que eu não sei de onde vem. Tenho muito medo de que aconteça algo aos nossos filhos. –disse ela.

_ Amor eles ainda são recém-nascidos. Estão sob nossa total proteção, você mesma disse que gostou da babá, que ela é atenciosa e bem preparada para cuidar dos pequenos. Tenha calma. O que você acha de destrancar sua matrícula no mestrado?

Talvez você precise voltar a circular pela cidade, ver as pessoas, voltar a sua vida normal. Vamos esperar uns dois meses, para ver se podemos realmente confiar na Beatriz, afinal, hoje foi só o primeiro dia dela. Tá bem? Ficamos combinadinhos assim, o que você acha?

_ Acho que você tá certo. Tô até me sentindo aliviada, Paulo. Parece que tirei um peso do meu coração com esse desabafo. – disse a mulher.

_ Então, lindinha, calma! Deixa para ficarmos nervosos quando eles forem adolescentes.

Elizabeth adormeceu sob o olhar atencioso do marido, que imaginava que já era hora de ela voltar à vida mais ativa fora de casa. Talvez fosse o tédio, e por que não dizer, uma ponta de depressão se anunciando na alma da esposa.

O sono da tarde voltou com toda a força, e Paulo resolveu que não iria resistir, afinal ainda estava cedo. E resistir ao sono, só no trabalho. Além do mais, que mal teria em ter mais um sonho erótico como o da noite anterior?

Elizabeth moveu-se na cama e percebeu a ausência de Paulo. Sentiu que o quarto estava muito frio e desligou o condicionador de ar pelo controle remoto. Mas percebeu que a temperatura não aumentava, mesmo alguns minutos após o desligamento do aparelho. Olhou em volta e não viu ninguém. Virou-se e resolveu voltar a dormir, afinal Paulo deveria ter ido ao banheiro ou estava terminando alguma estória para mandar para o “Desafio Literário” de que sempre participava.

Mas o frio a incomodava. Com mais de cinco minutos após o condicionador de ar ter sido desligado, o quarto ainda estava gelado. Mal pensou em se levantar para verificar a situação, e sentiu o colchão ao seu lado afundar lentamente. Havia alguém se sentando na cama. E não era Paulo, pois não havia ninguém além dela no quarto. O espanto a paralisou e ela prendeu a respiração, enquanto alguém se deitava ao seu lado.

O intruso puxou o cobertor para abrigar-se e pelos movimentos que fazia, deitando-se lentamente enquanto se cobria, ela teve a certeza de que não era o marido que estava ali. Começou tremer. Tentou gritar pelo esposo, mas a voz não saiu. Então, reunindo sua coragem, resolveu virar-se para ver o que era. A cabeça do intruso estava coberta.

Elizabeth puxou o cobertor e ao ver a face do intruso, gritou com todo o seu fôlego, enquanto era tomada por uma sensação mista de náusea e desmaio. Embaixo das cobertas, uma velha de rosto cadavérico com enormes e brilhantes olhos brancos, desproporcionais ao tamanho da face, encarava-a com uma enorme boca entreaberta à guisa de sorriso. A boca, que mais parecia um corte de orelha a orelha, deixava ver dentes grandes, acinzentados e cheios de sulcos como ossos velhos e desgastados. Os cabelos semelhantes a palha de mato seco espalhavam-se vermelhos e abundantes ao redor daquela cabeça.

Então, Elizabeth acordou. Ao ouvir o grito da esposa, Paulo entrou correndo no quarto, acendeu a luz e tentou acordar a mulher que resistia a despertar. Como as crianças que sofrem de terror noturno, estava presa em seu sonho. Paulo desesperou-se diante do estado da mulher. Após alguns minutos, Elizabeth acordou, e contou-lhe seu pesadelo. Ele a confortou e convenceu-a a voltar a dormir, prometendo que não se ausentaria mais dali.

Na verdade, Paulo estivera dormindo na cadeira da sala. Tinha se levantado ao perceber que a mulher havia adormecido e sentou-se na cadeira da sala que aparecera em seu sonho. Lá sentado, entregou-se a devaneios e fantasias sexuais e novamente, presa de um sono muito forte, adormeceu. Seus sonhos eróticos foram intensos e dotados de tal realismo que ele poderia descrever detalhes minuciosos.

Desta vez, a imagem de Beatriz era clara em seu sonho. Não era apenas uma ruiva de cabelos curtos de cuja face mal poderia se lembrar ao acordar. Era Beatriz.

Beatriz e suas pernas longas, Beatriz e seus trejeitos graciosos, Beatriz e sua voz antiga. Uma voz antiga que saía de lábios tão jovens, e tão excepcionalmente vermelhos que conseguiam superar o rubro dos cabelos. Entretanto em certo momento do sonho, a mulher mudara de aparência. Tornou-se outra, também ruiva e muito bela, porém mais agressiva e de olhar mais malicioso, quase cruel.

Mas o grito agudo e longo de Elizabeth interrompeu seu sonho e retirou-o do estado de torpor em que se encontrava, fazendo-o despertar e correr para o quarto. Na manhã seguinte, Paulo avisou aos seus chefes que chegaria mais tarde porque resolveria um problema em família e conversou longamente com a esposa. Discutiram o motivo da sua fragilidade emocional e os episódios de destempero da noite e madrugada. Paulo, por sua vez, omitiu seus sonhos com a babá e a outra ruiva.

Compreendeu que Elizabeth se sentia ameaçada com a presença de Beatriz e que tinha medo de ser traída. Sentiu que ela estava insegura do seu papel como esposa. Temores que ele julgava injustificados. Afinal, não tinha a menor intenção de se envolver com babá, ou qualquer outra mulher. Achava que estava ficando louco, mas sua ânsia pela hora de dormir só aumentava.

Que mal há em sonhar com mulheres bonitas? Isso não é traição. Ninguém domina seus sonhos. Então, o sonho era benigno, pois não trairia a esposa e não se envolveria com a funcionária. Ficava tudo certo até sua vida com Elizabeth voltar ao normal.

***

Naquela madrugada, Paulo fugiu novamente para sua “cadeira erótica”. Enquanto isso, Elizabeth acordou ao ter suas cobertas puxadas. Viu o vulto de uma ruiva pálida, de lábios de rubi, andar pelo quarto e atravessar a parede. Ficou paralisada. O choro dos bebês irrompeu estridentemente.

“Meus bebês” - ela pensou –

Vencendo a paralisia imposta pelo medo, dirigiu-se ao quarto dos bebês e ao abrir a porta, viu seus filhos envolvidos por uma névoa que se condensava numa forma humana próximo à cabecinha do pequeno Carlos Magno. Os mesmos olhos brilhantes e sem íris da noite anterior. Dedos repugnantes, que mais pareciam ser gravetos escuros, roçavam no cobertor do menino. Elizabeth avançou em defesa de sua cria.

Neste momento, Beatriz apareceu correndo e entrou no quarto.

_ A senhora está bem, Dona Beth? Que nevoeiro é esse?

A velha de cabelos de palha vermelha sibilou ante a chegada das duas mulheres e precipitou-se janela afora. A aparição ainda deslizava através da vidraça, quando as duas mulheres chegaram a uma terrível constatação: Carlinhos estava morto!

Elizabeth quedou-se no chão. As mãos trêmulas, apertando o corpinho morto junto ao colo. Suas lágrimas ensopavam as roupinhas do pequeno morto. Paulo surgiu na porta, repentinamente liberto de seu sono doentio. Abaixou-se, pressentindo a desgraça pelo lamento da mulher. Passou a mão pela cabeça da criança e chorou convulsivamente. Sem saber o que fazer, Beatriz escondia o rosto com as mãos.

***

O enterro de Carlos Magno foi triste. Nada no mundo é mais triste que o enterro de um bebê. Paulo sentia culpa. Elizabeth sentia dor. Os familiares sentiam pena. Beatriz sentia-se terrivelmente chocada e ao mesmo tempo deslocada. Colocada repentinamente no meio de um momento tão grave de uma família que mal acabara de conhecer.

Mas havia algo que não saía de suas mentes: a presença do Mal naquela casa. As visões, os sonhos, o ataque aos bebês... Paulo ouviu o relato das mulheres sobre o que acontecera no quarto antes de sua chegada. Como não era um homem cético, logo intuiu que foram atacados por um tipo de obsessor. Durante a noite, o monstro roubava sua energia sexual pelos sonhos, a sanidade de Elizabeth com suas aparições, e sorvia o fôlego dos pequeninos.

Em meio à sua dor e à sua culpa, decidiu enfrentar aquele ser sobrenatural.

Sua primeira providência foi levar todos para casa de seu pai deixando a casa vazia. Depois, o mais importante: procurar o turco Farid, velho conhecido da família. O velho já tinha sido dono de uma loja de artigos místicos e livros sobre ocultismo. Ele não frustrou as expectativas de Paulo.

_ Vocês foram vítimas de uma striga... Uma striga é um espírito que se alimenta de energia vital dos vivos. Quando viva era uma mulher cruel e gananciosa que morreu em situação violenta causada por ela mesma. Geralmente crimes passionais. Alimentam-se de emoções negativas, energias sexuais e ... Bem, do fluido vital das criancinhas. Desculpe por falar nisso.

_ Não se desculpe, Farid! No momento, meu coração não tem espaço para pudores emocionais. Preciso que você me ensine como acabar com essa amaldiçoada. – disse com rancor.

_Entendo. Mas não é como nos filmes de vampiro. É real. E seu ódio e sua tristeza vão trazê-la para perto de você. – preveniu Farid – Ela lê suas emoções. Sabe por que todos a viam como uma mulher ruiva? Por que você desejava a babá ruiva e Elizabeth sentia-se ameaçada por ela. A striga percebeu que a moça gerava sentimentos ruins e fortes em vocês dois. E aproveitou-se. – disse com o dedo em riste.

Paulo olhava para o velho barbudo, de cabelos grandes presos em um rabo de cavalo. Farid parecia um hippie envelhecido. Respirou fundo e tomou uma decisão

_Eu vou destruí-la. Você vem comigo? – perguntou resoluto.

_Sim, irei. Mais para te proteger do que para outra coisa. Alguém tem de estar lúcido nessa estória. Temos de achar onde o corpo dela repousa e queimar-lhe os restos. Diferente dos vampiros, seu corpo nunca sai de onde foi enterrado, apenas o seu espírito é que se desprende e vaga pela noite. Mas nunca muito longe de sua sepultura. Aproveite os arquivos da Justiça e pesquise se algum crime passional ocorreu naquela casa.

Despediram-se. Paulo passou os próximos dois dias procurando nos arquivos do tribunal. Sim. Tinha havido um crime passional violento no local há 23 anos. O corpo da mulher nunca foi encontrado. A casa era muito diferente e foi praticamente reconstruída.

Na manhã seguinte, estavam na casa, agora desabitada, procurando por pisos frouxos ou paredes ocas. Mas nada acharam.

_Entre as árvores, Farid! É lá que ela deve estar! – disse Paulo num súbito acesso de vivacidade. – na foto antiga, a casa era muito diferente, mas estas árvores do quintal, não!

Farid assentiu com um movimento de cabeça, e começaram a cavar a terra do quintal. Foi ele que achou um esqueleto vestido com trapos do que já havia sido um vestido, enterrado ao lado do ipê. _Ei-la! – disse com um tom ameaçador na voz.

_ Vamos acabar logo com isso! – sugeriu Paulo – Chegou a sua hora, maldita!

O turco tirou uma cruz de ferro da maleta, encaixou entre as costelas da morta e acendeu querosene sobre ela. Sob o sol da tarde, os restos se contorceram e sibilaram como nenhuma coisa morta poderia fazer. Uma névoa desprendeu-se dos restos e adensou-se tomando a forma da segunda mulher dos sonhos. Logo desfez-se no ar, e restou apenas a cruz de ferro onde estava o cadáver. A striga estava destruída.

***

A vida nunca mais foi a mesma para nenhum dos três. Elizabeth nunca recuperou o equilíbrio emocional. Paulo tornou-se um homem seco e amargo. Beatriz foi babá dos reizinhos sobreviventes até falecer, aos 35 anos, quinze após conhecê-los.

***

Pelo resto de sua vida Paulo compareceu ao túmulo de seu bebê, na data de sua morte, e após longos e contemplativos silêncios, fazia sempre o mesmo pedido:

_ Perdoa o pai, filho! Me perdoa...

FIM

Agnaldo Souza
Enviado por Agnaldo Souza em 23/08/2016
Reeditado em 22/09/2016
Código do texto: T5737786
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