Vale dos Suicidas

Há muitos anos ouço historias sobre o vale dos suicidas, que na verdade ele não é um vale, é apenas uma reserva natural com muitas lendas. Quando aquele local foi cercado e chamado de reserva, muitas pessoas ainda caçavam lá – o que é proibido por lei- então surgiram lendas para que essas pessoas se afastassem daquele “vale”. Porém, as pessoas ignoraram essas lendas, demonstrando suas descrenças tanto no sobrenatural quanto nas leis. Anos se passaram e as caças continuaram até uma nova “lenda” surgiu, essa dizia que as pessoas que adentrassem o vale seriam condenadas a morte voluntária, e inexplicavelmente centenas de caçadores desapareceram. Os então responsáveis pela “reserva” se mobilizaram a procura dos caçadores e os encontraram pendurados em arvores por cordas em seus pescoços. Mesmo que naquela época a ciência não era assim tão evoluída, as autoridades poderiam afirmar que não foram homicídios e sim suicídios. Muitas suposições surgiram, desde atividade paranormal até tramoia dos responsáveis pelo “vale”, mas nunca houve uma explicação plausível para essa situação. Hoje, cerca de 50 anos após as primeiras mortes, ninguém mais se atreve a entrar no vale, apenas uma pequena equipe composta por funcionários de hospitais e cemitérios que ganham horas extras para entrar no vale e procurar corpos, e eles nunca voltam de mãos vazias. Eu sou enfermeira, me graduei em outra cidade, mas retornei para cuidar da minha já idosa mãe. Como eu não poderia ficar desempregada, pois os medicamentos da minha mãe são caros, comecei a trabalhar no hospital St. Louis que ficava literalmente no centro daquela pequena cidade. O hospital tinha este nome por causa de uma lenda – o que não é de se estranhar a essa altura- sobre um antigo e poderoso homem que dedicou sua vida a curar pessoas, mas que desapareceu no vale. Depois de alguns anos de trabalho recebi uma proposta do governo, uma vez por semana eu me juntaria à equipe e adentraria o vale em busca de corpos, e receberia o dobro do meu salário, obvio que aceitei, pensei em dar uma vida melhor para minha mãe e também a mim. Recebi um treinamento de alguns dias, que se resumia em atividade física – já que eu carregaria corpos por terrenos um tanto difíceis de caminhar – e psicológicos. Fiz diversos juramentos sobre nunca dizer nada do que eu veria, e confesso que isso me assustou. O primeiro dia de “busca” começou com orações.

- Deus, nos proteja e nos guie por entre a mata. Nos leve aos corpos, e faça suas almas descansar em paz. Amem. – sussurrou o líder do grupo, um homem grande e forte, cabelos curtos e loiros, olhos claros e pequenos, vestia um uniforme da funerária e parecia estar desconfortável.

Alguns pensamentos invadiram minha mente, por que um homem que trabalha em uma funerária, que vê a morte todos os dias, estaria desconfortável por procurar corpos mortos? E por que precisaríamos de tanta proteção já que nem os animais queriam entrar no vale? E por que parece que só eu me pergunto essas coisas?

Dividimos-nos em três grupos, no meu estava mais uma enfermeira, um policial, um funcionário da funerária e outra garota que eu não sei ao certo o que ela faz da vida. Eu estava com uma mochila com comida e água, o funcionário da funerária levava uma maca, as outras duas garotas levavam material de primeiro socorros e outras ferramentas tanto para arrancar um corpo de diversos lugares como para nossa defesa caso precisássemos. Entramos por entre os matos em uma pequena trilha, caminhamos por algumas horas sem ninguém dizer absolutamente nada, até que chegamos a uma clareira, todos olharam para cima, eu o fiz também, não havia nada. Ouvi suas respirações aliviadas, e seus suspiros tensos ao longo das observações.

- Certo – disse o funcionário da funerária, homem de estatura baixa, porém forte, calvo, com barba por fazer e aparentava estar na meia idade – vamos descansar e nos alimentar, daqui a 30 minutos desceremos em direção ao riacho.

- Aquele é o Antony – disse à garota que eu não sabia com o que trabalhava me apresentando o funcionário da funerária - A enfermeira é a Clara, o policial é o Doug e eu Sou Hellena.

- Prazer, sou Dany.

- Primeira vez?

-O que denunciou? – sussurrei sorrindo – minha cara de medo?

- Esta com medo de que? As pessoas que morrem aqui, o fazem para fugir de seus problemas, não para voltar e nos matar.

Ela riu debochando da minha feição assustada.

-Acredita que são suicidas?

- E o que mais seriam? – me questionou atravessado minhas palavras – Foi comprovado que são suicidas, digo, cientificamente.

Levantei os ombros e apertei os lábios, eu não tinha certeza se todos os corpos encontrados são suicidas, seria possível que tantas pessoas desistiram da vida desta forma?

- Eu acho que tem algo a mais acontecendo aqui – comentei ainda pensativa.

- Como o que?

- Não sei algo a mais do que podemos ver.

Ela não discordou, apenas sorriu e ficou em pé.

- Finalmente alguém que não acredita em tudo que falam você deveria seguir seus instintos, talvez eles te levem a respostas.

Ela se afastou deixando suas palavras desaparecerem no ar, e eu a ignorei, o que eu deveria fazer investigar algo tão antigo e que me dava dinheiro? Doug me cutucou com a ponta de um galho e com o susto eu saltei diante de suas gargalhadas escandalosas.

-Cuidado mocinha, não vai se assustar.

- E você não vai aparecer em uma arvore, não quero te carregar.

- Nossa – ele murmurou – que gatinha brava.

Virei os olhos e segui o restante do grupo o deixando para trás, sua investida ridícula apenas me mostrou que devo tomar cuidado com os vivos e não com os mortos. Descemos uma difícil ribanceira nos agarrando em pedaços de galhos e pedras, muitas arvores marcadas por facões e sangue surgiram em nosso caminho. Até que chegamos a uma cabana, antiga e aberta. Não tinha nada lá dentro, mas disseram que eles acumulam os corpos na cabana e no outro dia voltam só para buscar. Demos a volta na cabana e continuamos descendo, pulamos pedaços de corda, roupas rasgadas, cruzes, alguns vasos usados para rituais, alguns corpos de animais abertos e aparentemente devorados. Comecei a me questionar o que exatamente estamos procurando. No final da trilha chegamos a uma grade muito grande, no chão havia uma abertura feita por alguém que não sabia o que estava fazendo, seguindo o portão mais adiante tinha uma porta fechada com corrente e cadeado.

- Vê aquela abertura?- Hellen me questionou – Foi um suicida.

Ela começou a apontar para outras partes do portão que estavam remendadas com correntes e cadeados dizendo que cada abertura é um suicida. Passamos pela porta e agora nós finalmente estávamos no vale. E parecia que desse lado da grade o clima era outro, estava frio, mais escuro, ouvíamos sons de correntes e sussurros, galhos quebrando, respirações cansadas e desesperadas. Hellen gritou.

-Calma, viemos buscar seus corpos para que descansem em paz.

Eu arregalei os olhos e senti um frio subir pela espinha, todos pareciam estar incomodados com aquele lugar, mas ninguém se incomodou com os gritos de Hellen. Continuamos a descida e um barulho de água batendo na rocha surgiu bem distante, nos caminhamos em direção a ele, dizem que o suicidas não querem morrer no completo silencio, querem que as águas os acalmem e os levem para longe desse mundo.

- Historia ridícula – disse Doug cuspindo sobre uma cruz no chão – vocês vem toda semana aqui e ainda acreditam nessa besteira.

Não houve discussão, pareciam suportar o Doug. Chegamos ao riacho, pequeno, barulhento, mal cheiroso. Antony apontou para cima, segui seu dedo com os olhos e ao longe avistei um corpo, pendurado pelo pescoço por uma corda, estava em estagio avançado de decomposição, não tinha como dizermos se era mulher ou homem. Antony cortou a corda e trouxe o corpo lentamente até o chão, o colocamos sobre a maca, o cheiro era tão forte que quase não conseguíamos respirar. O corpo já estava se desfazendo, deixando seus órgãos internos expostos. Senti nos olhos de Antony que não era comum encontrar um corpo naquele estado.

- Desistiram dele – Antony sussurrou – Desistiram de todos eles.

Sua expressão clara de tristeza me calou, girei o rosto e olhei para cima, e então pude entender as palavras de Antony, tinham centenas de corpos pendurados, a maioria muito decompostos, homens, mulheres, todos com expressão de dor e desespero.

- Por que não tiraram eles daqui? – questionei sentindo meu corpo tremulo, estava quase perdendo a firmeza das pernas.

- Porque somos o único grupo que ainda vem a essa parte do vale.

Dei um passo para trás e me encostei a uma arvore, deixei meu corpo descer até me sentar ao chão, àquela visão me enojava e ao mesmo tempo me entristecia. Centena de corpos apodrecendo e sendo esquecidos, centenas de almas abandonadas, centenas de historias que terminaram drasticamente, foram pessoas, e agora não são nada. Clara me questionou se eu estava bem, e me ajudou a ficar em pé. Antony jogou o corpo no rio.

-O que você esta fazendo? – gritei

- Escolhendo um corpo que não esteja tão decomposto para levar.

- E os outros? – reagi

- Os outros não existem para a cidade, ninguém sabe sobre eles e vai continuar assim. – Antony fez uma pausa- Lembra-se do seu juramento, não pode dizer a ninguém o que você vê aqui.

Eu corri por entre as arvores e retornei a trilha deixando Antony e Clara para trás, subi em direção à grade quando me deparei com o corpo de uma mulher pendurado, eu arregalei os olhos e senti um toque no ombro.

- Por que correu? – disse Clara.

- Essa é a Hellena?

- Você a conhecia? – Antony me questionou ofegante

- Ela estava aqui com a gente, e tinha um policial também.

-Dany do que você esta falando? – clara se aproximou e verificou se eu estava com febre.

- Dos outros dois componentes do grupo – gritei apontando para o corpo.

-Nos somos três esse é nosso grupo. Não tem nenhuma Hellena e não tem nenhum policial. Somos apenas nós.

-Impossível, eles estavam aqui. Devem ter ido com o outro grupo.

- Que outro grupo Dany? – Clara reagiu – Somos apenas nos.

De repente vieram às imagens em minha cabeça de todas as pessoas que estavam nos treinamentos, do funcionário da funerária que fez a oração, as roupas deles, eram iguais aos suicidas pendurados nas arvores. Eu estava sem voz, tremula, não conseguia respirar, e ouvia vozes que vinham do riacho e gritavam por socorro sobre meu rosto. Senti cheiro de sangue, carne podre e ferro. Esfriou tanto que meu corpo estremeceu e quando eu abria a boca saia uma fumaça de ar quente, de repente as vozes se juntaram em uníssono e disseram “reserva” e me jogaram contra uma arvore, bati a cabeça e me choquei contra o chão, senti gosto de sangue e uma dor forte na cabeça, a terra do chão levantou girando e ficou no formato do corpo humano, aquele corpo apontou para mim e me levantou.

-Reserva – disse na voz da Hellena – Não é reserva.

O corpo me soltou e quando cheguei ao chão perdi a consciência. Acordei no hospital onde trabalhava, estava com dores de cabeça e ainda tremula, eu não sabia como explicar o que eu tinha visto. Clara foi me visitar no hospital, e disse que vira a mesma coisa, mas que não poderíamos contar a ninguém, primeiro porque ninguém acreditaria e segundo porque fizemos o tal juramento. Quando sai do hospital fiz algumas pesquisas e descobri que a “reserva natural” pertencia a um homem chamado Victor Lee, um Médico psiquiatra Coreano que estava afastado por matar um paciente psicótico. Ele comprou a reserva e desapareceu. Aprofundando-me nas pesquisas conheci sobre uma sociedade secreta chamada ”bloodthirsty” – sanguinário- composta por diversos homens do poder, basicamente eles sequestravam pessoas, as torturavam de muitas formas as deixando completamente descontroladas e as soltavam no vale. A maioria não se matava e elas eram comidas por animais fora da reserva, e aquelas que se enforcavam recebiam o nome de suicidas, sem que ninguém se importasse com o que as levaram aquele ato. Fizemos denuncias e não nos calamos até que Lee e seus amigos fossem presos e julgados. No dia em que Lee foi morto por seus crimes eu voltei ao vale, tinham tirado todos os corpos, o lugar estava mais iluminado e não tinha mais cheiro de podridão. Eu fui até a arvore onde Hellena estava e sorri ao ver a arvore limpa, senti uma brisa na nuca e fechei os olhos, pude ouvir o uníssono bem distante dizendo “paz”. Naquele momento eu sabia que todos eles encontraram a paz e o descanso eterno. A partir daquele dia a reserva deixou de ser chamada de “vale dos suicidas” e passou a ser um cemitério chamado “reserva das almas”, no centro entalharam uma arvore de pedra, abaixo dela colocaram a seguinte descrição “Deus, nos proteja e nos guie por entre a mata. Nos leve aos corpos, e faça suas almas descansar em paz. Amem”. Em baixo da descrição estava o nome de quem disse aquilo “St. Louis- O protetor dos mortos e dos vivos”.

Ashira
Enviado por Ashira em 06/08/2016
Reeditado em 16/08/2016
Código do texto: T5720309
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