Fome - DTRL 28
Um dia ela se olhou e não se reconheceu naquele velho espelho. Algo que nunca havia notado brilhava sem parar, de algum ponto invisível, profundo e secreto dentro dela. Nada se moveu do lado de fora, mas todo o universo interior estava prestes a ruir, num implosão avassaladora. Disfarçou. Nem sequer olhou para pessoa qualquer. Atravessou o espaço do apartamento ao restaurante, caminhando silenciosa e calmamente pela pracinha repleta de pessoas ao sol da manhã de domingo. Sentou-se e esperou que seu desjejum, como de costume, fosse servido na mesma mesa de canto, bem escondida, já bem perto da porta da cozinha. O sanduiche estava apetitoso, o queijo derretido, do jeito que gostava, dentro de duas fatias de pão, crocantes e douradas da chapa. Do leite não gostava, mas precisava alcançar o peso certo, segundo a médica do posto de saúde. Comeu tudo. Depois limpou primeiro os óculos e depois as mãos e a boca engorduradas no guardanapo de papel. Levantou-se e agradeceu timidamente a D. Antônia, que a observava por detrás do balcão.
Não era a primeira vez que ia sozinha até lá. A conta era anotada numa caderneta e deveria ser paga sempre no dia 5 de cada mês. Quando atrasava o pagamento, a mãe a mandava sozinha, pois a menina sempre causava uma certa comoção nas pessoas, com sua magreza excessiva e seus enormes olhos míopes, que pareciam diminutos por trás das lentes grossas.
Evanira, ou Eva, como gostava de ser chamada, trabalhava num cabaré. Não era puta. Servia bebidas – as falsas para as raparigas e as falsificadas, mas alcoólicas, para os clientes. Não era puta porque era muito magra e sem nenhum atrativo físico que levasse alguém a pagar para trepar com ela. Mesmo assim, teve muitos homens. O pai de Mariele entrava e saía da sua vida. Marinheiro, alto e forte, um dia entrou muito bêbado no prostibulo, socando as mesas e causando prejuízo com a queda, e consequentemente quebra, de copos e garrafas. Eva, juntava os vidros quebrados quando ele a agarrou, beijou, levou para um quarto e fez dela mulher. Da primeira engravidou logo. Passou anos sem ver o marinheiro. Tampouco tirou a criança, como muitos aconselharam. Pariu no puteiro mesmo, com a ajuda das mulheres que viviam ali.
Mariele não chorou. Era um bebê estranho. Abaixo do peso, com uma pele branca, quase translúcida, com todas aquelas veiazinhas azuis aparentes. Muito quieta e sem apetite. Todas apostaram na morte prematura do bebê, mas Mariele chegou aos 13 anos, tão sem atrativos como a mãe.
Sempre que estava na cidade, Inácio, o pai, marinheiro, ia vê-las. E sempre se embriagava, arrumava confusão e acabava indo passar as noites na cama da mãe, naquele apartamento minúsculo. Não dizia pra ninguém, mas os hematomas que ficavam por semanas no corpo de sua mãe a faziam odiar aquele homem com uma intensidade tão grande, que chegou a trincar um dente de tanta força que fez ao ouvir os gritos abafados da mãe, durante uma das muitas surras. Também odiava a mãe e a vida que levavam. Odiava a escola, a misericórdia dos adultos e a maldade dos colegas, que sempre punham apelidos irritantes nela. Muitos não pegaram, pois fingia não se importar, mas por dentro ficava imaginando os mais diversos tipos de morte para aqueles nojentos.
Gostava de inventar doenças. Primeiro por não querer ir à escola, depois porque era bom ter algum tipo de cuidado especial naquela vidinha medíocre que levava. Também era assídua frequentadora da enfermaria do colégio. Ninguém duvidava quando colocava a mão trêmula na boca do estômago e fingia uma ânsia de vômito. Por vezes até vomitava mesmo. Deitada na maca, deixava que cuidassem dela. A mãe, não chamavam mais. Estava sempre bêbada ou drogada, ou ainda com algum tipo mal apessoado que a acompanhava e causava cenas constrangedoras.
Quando começou a praticar pequenos furtos, levaram ao psicólogo infantil. Mas ela se recusava a falar. Sentava-se lá e parecia se distanciar e divagar. Chegaram a pensar que havia algum problema neurológico com ela.
Mas ela sabia que não havia nada em sua mente. Era perfeitamente lúcida. Sabia exatamente o que estava fazendo. Todos os seus passos era cuidadosamente calculados. Planejava, esperava e depois agia, sempre nas sombras.
Depois de apanhar muito quando a mãe localizou pelo cheiro sua coleção de bichinhos mortos, começou a enterrá-los. Não sem antes vê-los se contorcer na ponta do laço de arame que aprendeu a fazer e aperfeiçoar. Começou com os ratos, que eram facilmente apanhados em meio ao lixo acumulado em sua morada. Dava veneno e os prendia em vidros que tampava com retalhos de roupas velhas e elásticos. Achava fascinante assisti-los morrer em lenta agonia. Depois os via ressecar e os guardava. Depois começou a apanhar os gatos e até o poodle de latido estridente da vizinha. Passava muito tempo em casa sozinha. Chegava da escola e a mãe já estava se arrumando com suas roupas vulgares e o perfume ativo demais.
Uma coisa era verdade, Mariele sentia fortes crises de enxaqueca. Os perfumes que sua mãe usava, geralmente desencadeavam uma crise. Por isso, às vezes, as náuseas e vômitos eram legítimos e ela fingia muito bem quando queria, pois sabia muito bem como era.
Um dia, do nada, Eva anunciou: - vou casar. Conheci um homem bom, que vai cuidar da gente.
O tal do homem bom, era um vagabundo com gel no cabelo e cara de fuinha, chamado Aluísio. Nunca tinha dinheiro e passava o dia inteiro deitado no sofá, vendo tv. Começou a irritar Eva logo de cara. Mandava varrer o chão, arrumar a casa, buscar bebida na geladeira. Fumava horrores dentro de casa, empesteando tudo de fumaça e bitucas amassadas. Pouco depois da lua de mel - passada ali mesmo, no quarto vizinho - quando Eva saía para trabalhar e ele achava de Mariele dormia, começou a levar mulheres e deitar com elas na cama do casal. Mariele não tinha a menor empatia pela mãe. A considerava uma pessoa burra e merecedora daquele castigo. Mas ela não conseguia dormir com aqueles gemidos fingidos, nem tinha mais privacidade para se dedicar ao seu maior prazer – torturar seres vivos até a morte.
Já havia um mês que aquele verme morava com elas. Fingia procurar emprego nos jornais, mas jamais o viu sair para qualquer entrevista de emprego. Dividia o minguado salário da mãe com elas e só de vez em quando, batia uma carteira para comprar drogas e se picar na frente de Mariele, sem a menor cerimônia.
Com o dinheiro escasso, Mariele se viu obrigada a abandonar alguns hábitos. Desde que casou com esse traste, o café da manhã no restaurante em frente ficou proibido. Como a mãe nunca chegava em casa para a tempo de preparar um lanche para ela, e sem permissão para continuar comendo seu amado sanduiche no restaurante em frente – até do leite sentia falta – Mariele ia para a escola com um copo d’água e algum biscoito já com prazo de validade vencido e que Aluísio dizia ainda estarem bons para consumo.
Fingir alguma doença para ficar em casa já não era uma opção. Preferia ir comer a intragável merenda escolar e aguentar aqueles malditos colegas e professores imbecis, do que ficar sob o olhar drogado e as ordens daquele maldito marido da sua detestável mãe.
Dentro dela, o desejo crescia. Precisava liberar a pressão que sentia.
Tudo se passou na noite em que sua mãe exagerou no perfume. O cheiro penetrou todas as células sensíveis do seu cérebro. Uma dor pungente, atravessou a sua cabeça. Fazia exatamente 31 dias que aquele cretino estirado no sofá tornava sua vida ainda mais insuportável e sua mãe ainda mais infeliz e miserável.
Ouviu a porta se fechar, o barulho da chave rodando no ferrolho velho.
- Mariele, trás minha bebida. Anda logo, sua bostinha. Você só está aqui porque sua mãe é uma vaca imbecil. Já deveria estar trabalhando em uma casa de família.
- A voz arrastada do Aluísio mostrava o quão bêbado já estava. O veneno de rato foi bebido sem reclamações. Notei uma leve desconfiança em seus olhos ao me ver encarando, observando, saindo da minha posição de submissão. Não queria perder nada. A face arroxeando, a musculatura se afrouxando, o olhar apavorado com a falta de ar. Não sei quantas horas levou até que finalmente deixou de respirar. Só sei que os primeiros raios de sol já despontavam. Não preguei o olho. Esperei, contemplando o meu feito, até a hora de ir tomar o meu café no restaurante da frente, como era de costume.
Pequenos psicopatas/ crianças más
O hospedeiro desse conto fora desclassificado, então estamos dando abrigo, porque entre escritores, ninguém fica sem teto!