A Lista – DTRL28
"A dor é tão necessária quanto a morte."
Voltaire.
Formatura, turma de 2006.
Discurso do formando Ângelo Giovane Palmer:
— Boa tarde. É uma honra representar meus colegas e amigos nesta cerimônia tão especial. Finalmente chegamos ao fim desta primeira jornada, o fim de uma e início de outras tantas que virão. Temos um futuro desafiador e brilhante pela frente. Não posso entretanto começar meu discurso antes de agradecer às pessoas mais importantes para nós, aquelas que são as principais responsáveis por este momento de alegria, é claro que me refiro aos nossos pais.
Fez uma pausa e respirou fundo antes de continuar:
— Quando eu era criança, por volta de sete anos, eu costumava brincar embaixo da minha cama, fingia ser um explorador numa caverna antiga. De vez em quando minha mãe também ia pra de baixo da cama brincar comigo. Ela e meu pai me compraram uma lanterna e eu passava horas no escuro de meu quarto, apenas brincando em minha caverna de mentira, fingindo ser um aventureiro em busca de um tesouro escondido.
Risos na platéia. Ângelo, emocionado, continua:
— "A imaginação de uma criança é um dos mistérios mais inexplicáveis que há”, palavras de minha mãe, Maya. Sonhei com ela noite passada, sonhei que…
Ângelo se interrompe, olha para baixo e depois segue com o discurso.
— Fui uma criança feliz, tive uma infância fantástica e sei que devo isso aos maravilhosos pais que Deus me deu. Pessoas honestas, bondosas, atenciosas, que introduziram em meu mundo conhecimentos fundamentais, alimentaram minha imaginação com histórias e, o mais importante, o meu coração com amor. Nunca deixaram de acreditar em mim. Tudo o que sou hoje e o que serei amanhã devo a eles. Queria do fundo de minha alma que estivessem aqui hoje para poderem me ouvir, saberem o quanto os amo e quanta falta me fazem.
Fez uma pequena pausa enquanto retirava uma folha de papel do bolso da beca.
— Fiz uma lista com coisas que gostaria que eles soubessem, uma lista de tudo o que representaram e que seguem representando em minha vida. Eis a lista…
…
Lista de coisas inusitadas que falei enquanto dormia: com 4 anos de idade, dormindo na cadeirinha no banco de trás do carro: “Estão vindo, estão vindo, os anjos, estão vindo!"; antes de sair para ir na casa da vovó e do vovô: "Mamãe, papai, o resto está no vaso sanitário", não encontraram nada no vaso sanitário; com 5 anos de idade, enquanto dormia no colo de mamãe: "O corredor precisa ficar iluminado para eles poderem ver a luz. Estão vendo a luz? Ela está no corredor."; logo após dormir no sofá da sala enquanto assistia a desenhos animados na TV: "Pedra, papel e tesoura. Pedra, papel e tesoura. A moça de vermelho com a tesoura venceu"; com sete anos, segundos antes de desmaiar na cozinha: "Pai, tá tudo nos copos, taças e panelas”; no minuto em que fiquei desmaiado: “ajudem, ajudem, estão de baixo da cama no quarto, não me deixam em paz”.
O que acontecia debaixo da cama de Ângelo? Ninguém poderia imaginar...
Ângelo era um garoto muito esperto e diferente. Filho único, tinha sete anos, gostava de ler quadrinhos, gostava de dinossauros, de ficar embaixo da cama, de fazer listas, recortes e colagens, gostava bastante de falar. Como falava! Principalmente com os mais velhos. Falava horrores! Falava até dormindo. A mãe e o pai sofriam para acompanhar-lhe as ideias, estas pipocavam para todos os lados. Algum dia seria um grande comunicador, diziam, talvez um apresentador de programa famoso, desses que ficam quase todo o domingo no ar. Começou a falar cedo, com menos de um ano de idade, com três anos já conseguia se comunicar sem problema, falava coisas estranhas para uma criança tão pequena. Um garoto dotado de alma velha, espírito antigo, diziam. Quando crescer será um homem formidável. Um dos grandes!
Lista de itens divertidos: uma bicicleta, um pula-pula, uma ampulheta, uma colher de pau, uma barra de chocolate, revistinhas do Capitão Caverna, o desenho dos Flintstones, um boneco do T-Rex, o jogo jokenpô, uma luva, uma lupa, um microscópio, um Band-Aid, uma orelha, um óculos com nariz falso...
O pai, Leonel, orgulhava-se do filho. É um bom menino, não sei a quem puxou! Arrancava gargalhadas. Os familiares se alegravam com a presença de Ângelo, este sempre trazia assuntos interessantíssimos e escutava os adultos como se fosse gente grande.
Era importante escutar os outros. Ângelo sabia. A mãe, Maya, lhe ensinara bem. Quanto tempo teremos para escutar uns aos outros? Uma pergunta traiçoeira, filosófica. Ângelo se deslumbrava com ideias de gente antiga, gente morta, gente como Sócrates, Platão, Freud, Jung, Confúsio, Kafka, Kant, Shakespeare, Sartre, Sade, Amado, Machado…
Tem o QI alto, 160, um super dotado, um gênio, além de seu tempo! Trará descobertas importantes. Avanços para a ciência! Sim sim! Erradicará doenças, encontrará respostas para os mistérios escondidos na escuridão do universo! Diziam.
Continuação da lista de itens divertidos: o filme "Em Busca do Vale Encantado", um picolé de limão, um pacote de salgadinho Cheetos, figurinhas de dinossauros, uma régua, uma tesoura, um oftalmoscópio, um cinzel, um copo de suco de uva, um copo de leite quente, um copo de suco de laranja, um copo de groselha, uma garrafa de vinho, um copo cheio de arroz, uma panela de pipoca, um cálice…
Ângelo, como toda criança que se preze, adorava desenhos. Em especial "Os Flintstones", desenhos e revistinhas ambientados na pré-história, claro, com dinossauros. Também gostava daqueles desenhos enigmáticos que os primatas pintavam nas paredes de suas cavernas: imagens de caça, lanças espetadas em animais, feras e fogueiras. Gostava do episódio em que Fred arrastava Wilma pelos cabelos. Gostava de cabelos, olhos de diferentes cores, do arco-íris, do céu coberto de estrelas, da lua, da noite e dos morcegos. Um menino imaginativo, dizia o pai, dizia a mãe. Um comunicador nato! Será grande, um homem de renome, de caráter,
SERO
terá todos a seus pés, todos serão-lhe devotos,
DARU
como um santo, um anjo, um papa, um rei em trono de ossos,
TROT
sua pisada estraçalhará famílias inteiras, terá a própria igreja, gritos de morte e dor se perderão nos vazios das ruas. Cidades desertas, todas suas, cidades cheias de mortos.
Gosta de dinossauros e de homens das cavernas, heim!? Será um arqueólogo? Um historiador? Que desperdício tremendo, diziam. Mamãe, papai, não deixem isso acontecer!
— Meu filho será o que quiser ser — Maya colocava um ponto final na ladainha.
Os pais o enchiam com livros e Ângelo os devorava um a um.
Lista com livros de papai: "Uma Breve História do Tempo", "Cosmos", "O Universo em uma casca de noz", "Minhocas e Cordas no Espaço", "O Mundo Assombrado pelos Demônios", "As Grandes Vermelhas", "Incógnito", "Deus, um delírio"...
Lista com livros de mamãe: "Peter Pan", "Vinte Mil Léguas Submarinas", "Histórias da Pré-História", "Têm um Dinossauro na minha garagem!", "Crianças Talentosas", "Mais que Ossos, Arqueologia Hoje", "Como fazer Amigos"…
Com sete anos Ângelo teve sua primeira experiência fora de um sonho com uma das criaturas Sero Daru Trot. Já vinha conversando com elas há algum tempo, mas nunca as encontrara no chamado mundo real. Ângelo fora avisado que no dia 21 do mês corrente uma delas iria visitá-lo. O procedimento da visita fora bem explicado. Havia regras, sim, muitas regras, como: "a luz do corredor deve estar acesa"; e: "o vão debaixo da cama deve estar completamente coberto por um lençol vermelho"; e ainda: "chegaremos sempre às três horas da manhã"; mas a regra que melhor fixara-se em sua mente era: "nunca saia de baixo da cama, em hipótese alguma, enquanto permanecermos no quarto". Uma regra simples: ele não podia sair de baixo da cama e elas não podiam entrar. Caso esta regra não fosse respeitada as consequencias seriam terríveis. Mas Ângelo não era covarde, não via a hora das três badaladas do cuco soarem da sala. Esperara ansioso pelo dia 21 e agora encontrava-se escondido embaixo da cama, com o tecido translúcido do fino lençol vermelho tocando o chão e sendo a única coisa que o separava do mundo do lado de fora. Deixara a porta aberta e insistira para que o pai deixasse a luz do corredor acesa, conforme explicado nas regras. O primeiro encontro com um Sero Daru Trot era um evento singular, significativo, não podia dar errado.
Continuando com a lista de itens divertidos: flores, um boneco do Baby da série "Família Dinossauro", um caderno branco, um lápis bem apontado, um apontador, uma borracha, uma tesoura, adesivos, um cachorro, uma maçã, morangos, uma pílula, hóstias, uma túnica, um guardanapo, um balde, uma esponja, uma vassoura, uma cola, um liquidificador, uma espátula, um canudo, uma barata, um rato, um garfo, uma faca, uma colher…
Ângelo alimentava-se bem, garoto saudável, garoto forte, não deixava comida sobrar no prato. Orgulho da vovó e do vovô. Seu Ramiro, avô de Ângelo, morrera três dias após o primeiro encontro de Ângelo com um Sero Daru Trot. Ângelo não foi ao enterro, passou o dia em casa, com uma babá, Bia, não gostou da babá, ela tinha o rosto estranho, branco demais e com espinhas roxas nojentas, preferiu ficar lendo um dos livros que o Sero Daru Trot deixara. O Sero Daru Trot deixara muitos livros, uma infinidade deles, mas ele só podia lê-los debaixo da cama. Regras. Demorou para escolher qual dos livros leria primeiro…
Lista com livros debaixo da cama: "Formas de provocar Dor", "Tortura Através dos Tempos", "Seres Torturados", "Tortura como Arte de Guerra", "Experimentos terríveis da Segunda Guerra", "Ao Traidor a Tortura", "Os Mistérios da Tortura", "O Milagre, uma Falácia", "Negação de Deus", "Grandes Torturadores do Século", "Matar é Fácil", "Manual das Aflições, por Moloch", "Tormentos Medievais", "Santo Agostinho e a Autoflagelação", "A Cruz", "Torturadores Psíquicos", "A Criança Amarrada à Mesa de Evisceração", "Suicídio, a Única Saída".
No quarto dos pais, enquanto Ângelo dormia, às quatro e quinze da manhã, Leonel levantava-se. Ouviu-se um estrondo que despertou Ângelo de um sonho conturbado. A luz do corredor encontrava-se apagada, mas não havia problema, nada de visitas hoje. Então Ângelo viu na penumbra o pai passar diante da porta, caminhava com os olhos fechados, atrás dele, arrastada pelos cabelos, vinha a mãe, segurando o punho forte do marido e os próprios cabelos, a boca escancarada num grito mudo de terror, era como se estivesse debaixo d'água, imersa no fundo de um mar desconhecido, gelado. Ângelo não conseguiu voltar a dormir, só depois, quando resolveu ficar embaixo da cama, voltou a pegar no sono.
No dia seguinte a mãe fez um café da manhã reforçado, sorriu para o filho, com lágrimas nos olhos, disse, você será grande! Será o maior de todos, tem que comer, comer bem, para ser forte, meu querido. Ângelo concordou com a cabeça. O pai entrou na cozinha, de terno e gravata, pronto para o trabalho, deu um beijo na mulher, outro no filho e sentou-se à mesa abrindo um jornal. Suspirou com a notícia ruim. Maya o questionou e ele começou a ler em voz alta:
—Mais um caso de violência doméstica. Roberto, 52, matou a esposa, Mariana, 32, e o amigo, Tiago, 53, pegou os dois na cama ao voltar do trabalho. É lastimável o aumento de casos deste tipo.
SERO
— Ao traidor a tortura — sussurrou Ângelo.
— Parece que ele torturou os dois antes de matá-los, e pior, parece que não poupou nem os próprios filhos, Bianca, 16, e Bruno, 7, deu um tiro na cabeça de cada um antes de atirar contra si mesmo — complementou Leonel.
— Que horror! Não leia essas coisas na frente de nosso bebê — brigou Maya.
— Certo, ah, tem outra notícia aqui… Meu deus, porque colocariam isso no jornal? É uma lista contendo os últimos papas: João Paulo II, João Paulo I, Paulo VI, João XXIII, Pio XII…
— Continua, pai — pediu Ângelo.
— Pio XI, Bento XV, Pio X, Leão XIII, Pio IX, Gregório XVI, Pio VIII, Leão XII, Pio VII, Clemente XIV, Clemente XIII, Bento XIV, Clemente XII, Bento XIII, Inocêncio XIII… parece que estão todos aqui mesmo, não… espera, que brincadeira sem graça!
— O que foi?
— No fim da lista escreveram em letras capitais: "TODOS EMBAIXO DA TERRA".
— Não acredito!
— E têm mais, olha, colocaram logo em seguida a lista obituária de hoje.
— Que falta de respeito! — disse Maya, indignada.
— Ah, mas isso não vai ficar assim, vou ligar agora mesmo para a edição desse lugar. Cabeças vão rolar, querida, pode ter certeza disso.
— Pai, lê a lista dos falecidos.
— Por que o interesse nisso, meu bem? — perguntou a mãe.
— Gosto de listas.
— Mas essa é uma lista tão triste, por que não faz uma lista você mesmo? Uma lista com coisas boas, coisas que você gosta? Com os nomes dos seus desenhos preferidos ou nomes de dinossauros? Coisas divertidas! O que acha?
— Tá bom, é uma boa ideia, mãe, mas o pai não pode ler essa lista pra mim agora?
Leonel sorriu.
— Tudo bem — disse para a esposa — isso é natural, crianças são curiosas em relação à morte. Bom...
Lista com os óbitos de hoje, dia 12 de Agosto, 1999: Orlando Viscere Braga, 90 anos. Filiação: Adolfo Viscere e Odete Viscere. Sepultamento ontem; Roberta de Jesus Sventrare, 80 anos. Profissão: professora. Filiação: Júlio Sventrare e Marina Laura Sventrare. Sepultamento hoje, no Cemitério Municipal São Francisco de Paula, saindo da Capela Vaticano - Jade; Daniel de Oliveira Filho, 41 anos. Filiação: José de Oliveira e Guilhermina Oliveira. Sepultamento ontem; Giovane Fegato Caprone, 77 anos. Filiação: Lorenzo Fegato e Andréia Fegato. Sepultamento hoje, no Cemitério Municipal Santa Cândida, saindo da capela número 05 do Cemitério Municipal São Francisco de Paula; Lucas Correia de Castro, 21 anos. Profissão: estudante. Filiação: Márcio Ferreira de Castro e Raquel Vaz Correia. Sepultamento hoje, no cemitério municipal da cidade de origem, saindo da residência; Amanda Lopes Cordeiro, 17 anos. Profissão: estudante. Filiação: Jorge Cordeiro Lopes e Cátia Rodrigues. Sepultamento ontem; André Soares Filho, 11 horas. Filiação: Renato Quinsler e Ângela Cristina Soares Quinsler. Sepultamento hoje, no Cemitério Paroquial Abranches…
— … Abranches…
— 11 horas, o André só viveu por 11 horas? — interrompeu Ângelo.
— Sim, infelizmente — respondeu Leonel.
— Querido, você vai acabar se atrasando para o trabalho — avisou Maya.
— É verdade… vamos ter que parar por aqui, amigão!
DARU
— Trot — disse Ângelo.
— O que você disse, querido? — perguntou Maya.
— O papai está na cozinha.
— Claro que está, todos estamos.
— Ele está nos copos e nas taças e nas panelas.
— Como assim meu anjo?
TROT
Ângelo desabou da cadeira.
Continuando com a lista de itens divertidos: pincéis, uma fita métrica, uma lanterna, um relógio de cuco, caneleiras, uma bola de futebol, uma bola de voleibol, uma bola de basquete, uma bola de boliche, duas correntes, uma seringa, um desfibrilador, um estetoscópio, um otoscópio, uma vela, uma Bíblia, um crucifixo, pregos, uma tesoura, um estilete, um esparadrapo, uma corda, um fórceps, uma pá…
Debaixo da cama Ângelo viu a chegada do Sero Daru Trot. A criatura veio devagar pelo corredor, seus passos soavam gosmentos, como o som de carne crua lançada sobre uma tábua. Só era possível ver um vulto embaçado através do lençol vermelho. O vulto entrou no quarto e aproximou-se da cama. O vão embaixo da cama ficou quente, Ângelo preferia o frio, mas quente também era bom. A coisa subiu na cama. Ângelo sentiu o colchão acima ceder com o peso. Quão pesada seria a criatura? Poderia esmagá-lo? Ouviu gemidos estranhos, desagradáveis, mas então os livros começaram a chegar.
— Você disse que tem alguma coisa embaixo da sua cama? — perguntou a mãe.
— O quê? — Ângelo não entendeu. Estava no chão da cozinha, sendo aparado pelo pai.
— E que história é essa do seu pai estar nos copos e nas taças?
— Ele desmaiou querida, está desorientado, é normal… — disse Leonel.
Ângelo parecia assustado.
— O que tem embaixo da sua cama, filho? — Maya insistiu.
— Ele já fez isso antes, lembra, Ângelo fala até pelos cotovelos, ele…
— Não, o jeito que disse… Leonel, vá ver se tem alguma coisa embaixo da cama do nosso filho.
Mãe e filho esperaram pelo pai, Leonel não demorou em voltar.
— Não tem nada querida, nada.
— Certo, mas é melhor marcarmos uma consulta com o doutor Paulo, estes desmaios que ele anda tendo...
— Este foi só o segundo — disse Leonel — eu na idade dele desmaiava dia sim, dia não.
— Como você é exagerado.
— Querida, só estou tentando dizer…
— Eu sei querido, mas não faz mal, quero que o doutor dê uma olhada nele mesmo assim.
Depois que o Sero Daru Trot deixou os livros e foi embora, Ângelo saiu de baixo da cama. Observou o quarto. Tudo continuava como havia deixado. Nada mudara. Notou apenas uma diferença no travesseiro estampado com dinossauros. Estava úmido.
As visitas do Sero Daru Trot tornaram-se mais frequentes. A princípio Ângelo se divertira com as visitas e com os livros, mas as coisas pioravam. A temperatura debaixo da cama tornara-se quase que insuportável. Algumas vezes ficava um calor infernal que fazia Ângelo suar igual a um porco, outras ficava um frio glacial e Ângelo lamentava-se por não estar mais bem vestido. Independente disto às vezes ficava muito difícil de respirar, como se o Sero Daru Trot roubasse todo o oxigênio do quarto. E cada visita durava mais tempo do que a outra. Da última vez chegara a temer que a criatura nunca mais saísse de seu quarto. Precisava acabar com aquilo. Mas não sabia como. Não deram-lhe nenhuma instrução quanto a isso. Mas devia ter um meio, precisava haver um jeito de fazer parar! Ângelo estava disposto a tentar algo, tinha que encontrar uma solução.
Maya preparava o jantar. Mexia dentro da panela, com a colher de pau, o macarrão com a mistura. Ângelo entrou na cozinha trazendo papéis, revistas, canetas, cola e tesoura. Sentou-se à mesinha redonda.
— É para a escola? — perguntou Maya.
— Não, é pra mim mesmo.
Maya sorriu.
— O que você vai fazer?
— Você não iria acreditar.
— Anda, me conta.
— Vou fazer uma colagem para dar de presente ao Seru Daru Trot, uma criatura dos sonhos que vêm me visitar. Acho que descobri um jeito de fazer as visitas pararem. Ele sempre me traz presentes, coloca eles embaixo da minha cama. Acho que ele deve gostar de presentes também, então tive essa ideia. Vou fazer uma montagem bem bonita pra ele, pedindo que deixe de me visitar. Mas tem que ser uma montagem bem feita, com recortes e imagens coloridas. Algo bonito de verdade.
— Certo. Bem, você vai precisar caprichar bastante nessa colagem então para o seu amigo Zero Dado Trote gostar.
— É Sero Daru Trot, mãe.
Maya tornou a sorrir.
— A imaginação de uma criança é um dos mistérios mais inexplicáveis que há.
— Não é minha imaginação, mãe.
— Certo. E me diz, por que é que você quer que ele deixe de te visitar, já que sempre te trás presentes?
— Cansei dos presentes... eee...
— Eee..?
— Bom, eu tenho um pressentimento ruim, acho que caso ele siga aparecendo pode acabar fazendo coisas ruins pra você e pro papai.
— E por que você acha isso?
— Não sei dizer, é só uma sensação.
— Bem, então é melhor mandar ele embora mesmo, filho.
A noite chegara, a luz do corredor estava acesa, Ângelo aguardava temeroso debaixo da cama. O cuco soou a primeira badalada, depois a segunda e, enfim, a terceira. A criatura chegaria a qualquer momento. Silêncio. A qualquer momento. Silêncio. Talvez agora! Nada. O que podia ter acontecido? A coisa era sempre pontual. Talvez tenha acabado, talvez soubessem que ele não queria mais receber visitas? É, podia ser isso. Nem precisou usar a colagem, eles simplesmente… uma mão em carne viva, sem pele, seguida por um braço descarnado e podre invadiu o vão debaixo da cama, duas unhas pontudas e duras cravaram-se fortes no braço de Ângelo, queimando-o, querendo arrebatá-lo para fora, tirá-lo de sua caverna secreta. Ângelo berrou, debatendo-se em agonia, lutando para livrar-se da mão horrenda que apertava-lhe o braço. Se fosse arrastado para fora seria destruído, assim era a regra, não podia sair enquanto o Sero Daru Trot estivesse no quarto. Mas a criatura também não podia entrar em seu esconderijo, aquilo não estava certo, as regras, elas…
— Socorro! Alguém! Me ajude! Por favor!
A mente em pânico lhe trouxe uma imagem, um pensamento.
— Mamãe! Mamãe!
Lista com partes da mamãe no meu quarto: seis dedos, dois olhos, uma língua, duas pernas, dois braços chamuscados, uma mão inteira, um escalpo com cabelo, dois seios, um intestino, dois pulmões, um útero, um coração.
Lista com partes da mamãe no corredor: um crânio, muitas tripas, uma coluna vertebral, um estômago, sete costelas, alguns ossos, um feto.
Lista com partes do papai na cozinha: um jarro com cinco litros de sangue, dez copos cheios de sangue, uma panela de pressão cheia de sangue, três panelas com sangue e miolos, oito taças com sangue, um tronco aberto e seco.
Lista com…
SERO
Maya acordou assustada.
— Leonel, Leonel, tive um pesadelo horrível, eu… Leonel?
Leonel não estava no seu lado da cama. Olhou as horas no relógio ao lado no criado-mudo. 3h20. Maya vestiu um robe escarlate e foi até o corredor. A luz estava acesa. O corredor deserto.
— Leonel? — chamou tentando fazer o menor barulho possível, não queria acordar Ângelo. A porta do quarto do filho estava aberta. Ela foi até lá. O quarto estava escuro e Ângelo, como o marido, não estava na cama.
A angústia tomou seu coração. Teve certeza de que havia algo errado.
— Ângelo? Leonel?
Seguiu cautelosa pelo corredor. Chegou na sala escura e acendeu a luz. Vazia. Apenas os ruídos das engrenagens do relógio na parede preenchiam a noite.
— Ângelo? Leonel?
Foi até a cozinha. Acedeu a luz. Copos, taças e panelas, cheias de um líquido vermelho, denso. Sobre a mesinha redonda a cabeça de Leonel repousava sobre um prato.
Maya não conseguiu gritar, a visão era irreal. De repente Ângelo apareceu saltando por de trás da geladeira.
— Buuuu! — disse.
— Filho… o que…
— Peguei você mamãe! Peguei você! — disse Ângelo e apontou para baixo na direção das pernas da mãe.
DARU
Maya viu que sangrava. Sangue escorria por entre suas pernas. Olhou para trás e viu um rastro vermelho cruzar da sala até o corredor.
— Você deixou minha irmãzinha cair no corredor, mamãe.
Maya balançou a cabeça. Isso não podia estar acontecendo.
— Está acontecendo, mamãe, está acontecendo!
— Você não é meu filho! O que foi que fez com ele? Quem é você?
Ângelo sorriu, mas seu sorriso se tornou um esgar e, de súbito, sua face mudou e Maya reconheceu o rosto do filho.
— Mãe! Eles querem me levar, mãe eles…
Ângelo levou a mão à cabeça e uma força invisível o derrubou no chão e começou a arrastá-lo na direção de Maya. Maya tentou parar o filho, mas ele passou rápido por ela sendo levado por cima do caminho de sangue.
— Socorro, mãe! Socorro!
— Ângelo!
Maya correu atrás dele. Chegou no corredor, o corredor estava imundo de sangue e pedaços de carne, viu um feto rastejando em sua direção e, mais em frente, Ângelo entrando contra sua vontade no quarto.
Ignorou o cenário de horror e a coisa rastejante. O pensamento centrado no filho. Foi até o quarto de Ângelo.
Chegou a tempo de vê-lo segurando-se ao carpete para não ser arrastado para de baixo da cama.
Ela se jogou e conseguiu segurar o filho pelas mãos.
— Deixem ele! Deixem meu filho!
TROT
Leonel acordou com o som de um grito.
Maya não estava do seu lado da cama. O som vinha do quarto de Ângelo. Ele levantou rápido e correu para o quarto. Acendeu a luz e viu Maya debruçada embaixo da cama. Assim que Maya o viu pediu ajuda:
— Rápido, Leonel, rápido, estão levando nosso filho, eles, os SERO DARU TROT! Estão levando nosso bebê!
A visão da mulher debaixo da cama com uma tesoura afiada na mão era assustadora.
— Maya, amor, largue essa tesoura e saia de baixo da cama.
— Não está me escutando, Leonel!? Estou dizendo que estão levando nosso filho!
— Maya, essas criaturas não existem, elas não existem. O que levou nosso filho foi a doença, você sabe, foi a doença! Já conversamos com o doutor Paulo sobre isso, você inventou essas criaturas, elas não são reais.
— Não! Não! Não! Elas são reais, sim! Elas existem e estão com ele! Olha aqui, olha o que encontrei embaixo da cama.
Várias folhas de sulfite saíram debaixo da cama e se espalharam em amontoados pelo chão do quarto. Eram listas. Listas intermináveis em cada uma das folhas.
— Você fez essas listas, amor? Pensei que tinha parado com isso.
— Não fui eu, foi nosso filho, foi o Ângelo. Foi ele papai, seu filho. Ângelo. Papai, acredita em mim, papai, acredita? Tenho saudades de você e da mamãe. Papai…
— Para com isso, Maya, para! Por favor! Já chega! Largue essa tesoura, vai acabar se machucando!
— Leonel, eu, desculpe, me desculpe…
Maya largou a tesoura e começou a chorar.
Leonel foi até ela e a ajudou a sair de baixo da cama.
— Você precisa de ajuda, querida, vou marcar uma consulta amanhã com o doutor, precisamos encontrar uma solução, isso não pode continuar deste jeito, ainda mais agora, nas atuais condições.
— O que você quer dizer?
— Me refiro à gravidez, amor… você está grávida, não se lembra?
Maya balançou a cabeça, atônita.
Leonel notou uma folha diferente no chão. Agachou-se para apanhá-la.
— O que é isto?
A folha trazia uma colagem, com diversos recortes de desenhos e imagens. No centro, escrito em letras coloridas e capitais, um nome.
...
Discurso de Maya Palmer no vigésimo sétimo encontro de “Mães que Perderam os Filhos”:
— Olá. Faz dez anos que meu filho se foi. Foi muito duro, na época cheguei a amaldiçoar Deus por o ter tirado de mim. Mas então fui agraciada com minha filha, Luiza, e as coisas melhoraram.
Suspirou, tomou um gole de água e continuou.
— Não existe objeto de tortura mais terrível do que a imaginação de uma mãe que perdeu o filho. É como morrer e ir direto para o inferno, é como estar viva e se ver obrigada a respirar de baixo d'água. Sonhei com Ângelo hoje, é o sonho recorrente que tenho, ele está na formatura do colégio ou da faculdade, eu e meu marido não estamos, nós morremos. Ele está alto, grande, está bonito… ele… ele fez uma lista, uma lista sobre coisas que gostaria de nos dizer…
Fez uma curta pausa antes de prosseguir.
— Ás vezes penso: ninguém sabe o que acontece quando morremos, a morte é um grande mistério, talvez exista um lugar em que meu filho esteja vivo, um lugar em que eu e meu marido estejamos mortos. Eu trouxe uma lista hoje, escrevi tudo aquilo que desejava que ele fosse, todos os sonhos que tive, todas as alegrias que ele nunca terá, e, apesar de termos tido tão pouco tempo, o quanto sou agradecida por tê-lo conhecido, por ter tido a honra de ter sido sua mãe.
Respirou fundo e seguiu.
— Eis a lista…
…
TEMA: Mistérios inexplicáveis, tortura e crianças más.