Noites de Caça - Parte IV: Aliança
De onde estava, na capela, Hélder podia ouvir as badaladas em meio à chuva, os sinos disputando com os ventos quem era capaz de chamar mais atenção. Ele não precisava de nenhum dos dois para se manter alerta, os ouvidos aguçados como se fosse ser atacado a qualquer momento. O noivo olhava para o vitral acima da porta lateral, as cores claras tinham um aspecto de labaredas em uma lareira redonda com a água escorrendo no lado de fora, tremulando a luz que entrava.
Não era apenas o caro terno preto que o deixava duro, aprisionando a tensão que insistia para sair com mais teimosia que um pássaro agarrado entre as mãos. Não tinha dormido nem um minutinho na última noite, o que deixaria a noiva ainda mais irritada. Ela já tinha dado uma bronca por ele ter saído sem avisar e voltado só tarde, todo molhado. Depois de aceitar as reclamações, ele a observou dormir, certo de que não contaria nada para ela, nem para os parentes e amigos que chegaram ao longo do dia, e torcia para que ninguém percebesse o menor abatimento ou perturbação em seu semblante.
Hélder se virou e mais uma vez encarou o confessionário vazio, se perguntando se ainda podia confessar a culpa que carregava, se ainda era tempo de admitir a carga que levava para a vida a dois com Dora, um fardo que nenhum daqueles convidados na nave central desconfiaria. Ele procurou o padre Ademilton naquele burburinho, embora já tivesse visto o sacerdote várias vezes durante o tempo em que esteve na igreja.
Em todas as ocasiões, não tinha conseguido expressar em alto e bom som o desejo de uma confissão. Acumular coragem estava se mostrando um serviço semelhante a construir um castelo de areia no quebrar das ondas, tentativa após tentativa sem sair da estaca zero. Os pecados eram espíritos com vontade própria e se recusavam a sair. Ele estava prestes a se virar com um novo bufo de desistência, quando viu uma pessoa vestida com um lindo vestido verde se aproximando.
- Recebi o telefonema de sua cunhada, querido – disse a mulher, deslizando a barra do vestido pelo piso. – A noiva está a caminho.
- Obrigado, titia – Hélder falou. – Espero que esse temporal não prejudique.
- Daqui a pouco o clima melhora. – Marjorie o olhou. Era a pessoa mais próxima dele desde a morte do pai. – Não é só a chuva e o penteado da noiva que o preocupam, não é?
O noivo fitou os olhos claros da tia.
- Você me conhece desde que nasci. Acredita que eu possa mudar?
- Mudar? Para melhor ou pior?
- Só mudar.
- Você está prestes a dar o passo mais importante da sua vida – disse ela, passando a mão na manga do terno do sobrinho. – Não há como ficar ileso. A mudança faz parte.
- Sim, mas nem sempre estamos preparados.
- Há alguma coisa perturbando você?
Hélder suspirou. Dora não tinha contado a ninguém sobre os surtos noturnos dele, o que era o melhor a se fazer. O dia era de celebração e, certamente, não passar o que aconteceu para os outros, espalhando tudo como penas ao vento, era uma forma de não agravar o problema.
- Crise de ansiedade de noivo. É isso. Ficamos assustados quando percebemos que não somos mais um solteirão com o controle da vida.
Marjorie sorriu.
- Quero ver quanto tiver filhos.
- Ah, por favor – disse Hélder. Por algum motivo, o assunto o fazia ficar vermelho.
- Qual o problema? Como disse, conheço você desde que nasceu e posso falar que será um ótimo pai. Eu sei que algumas coisas assustam, mas você é uma pessoa maravilhosa e vai aprender rápido a lidar com tudo e aproveitar o melhor.
- Espero que esteja certa.
- Geralmente estou. – Marjorie deu uma piscadela. – Outra coisa em que estou certa é quanto à noiva estar chegando. Precisamos ir logo para nossos lugares. Pronto?
- Pronto – disse Hélder. – Estão todos à nossa espera e não vamos decepcionar – falou ele, seguindo de mãos dadas com a tia para a entrada da nave principal, onde os convidados cochichavam e se abanavam, todos ansiosos para o início.
Ele ficou em pé, no altar. As mãos juntas, de tão brancas e geladas, se confundiriam com água congelada se ele estivesse tocando sem luvas em alguma geleira. Atrás dele, o padre aguardava a noiva. Hélder podia ouvir o tamborilar de dedos sobre a toalha que cobria o mármore negro. Os padrinhos estavam à direita e à esquerda, entre eles sua tia. Ele tinha vontade de ficar mais próximo dela. Certamente, ter companhia faria com que aquele intervalo de minutos ficasse menos sufocante, com a platéia de olhares o encarando, avaliando suas roupas, seus gestos e sua face evidentemente pouco relaxada, cada rosto ali esperando um desmaio ou briga para ter uma história para contar quando voltasse para casa. A possibilidade de a maioria deles ser barrada pelas estradas destruídas pelas chuvas não parecia tão ruim no final das contas.
Hélder afastou o pensamento e lançou o olhar para longe, observando fixamente as portas duplas fechadas. Estava encarando a madeira envernizada de ambas com tanta força que achou que conseguiria movê-las. A concentração foi interrompida pela marcha nupcial. As notas ressoaram pela capela como um sinal dos tempos, abafando burburinhos e alastrando um efeito que não se resumia à audição. Ele sentiu uma onda estremecê-lo exatamente no momento em que as portas abriram, revelando uma barreira luminosa que o ofuscou um instante.
O noivo focou a visão e reparou em duas silhuetas banhadas com a claridade diurna. As duas começaram a andar e ele viu Dora caminhar de mãos dadas com o irmão pelo corredor entre as duas fileiras de bancos enfeitadas com flores e correntes de fitas brancas e amarelas. A longa cauda arrastava por cima das pétalas jogadas pela daminha de honra que andava do lado de um garotinho carregando uma almofada. Rostos viraram atentos, acompanhando o cortejo até o altar. Saulo largou delicadamente a mão da irmã e moveu os lábios, dizendo alguma coisa que Hélder não prestou atenção. Com um sorriso radiante, o casal se virou para o padre.
- Irmãos e irmãs, estamos aqui reunidos para celebrar a união de duas almas em uma aliança de amor, fortificada nas bênçãos do Senhor. Oremos... – O sacerdote se virou para o livro no altar, com os braços um pouco levantados. Depois, leitores se revezaram no ambão, proclamando as leituras bíblicas, dentre elas o salmo, o que culminou na leitura do evangelho e no sermão de Ademilton, que falou sobre as dificuldades inerentes à vida conjugal e nas virtudes necessárias para que o matrimônio fique protegido das adversidades. – Vós viestes aqui para sacramentar vossa união. – O padre se dirigiu diretamente para os noivos, após a homilia. – É de livre e espontânea vontade que pretendes fazê-lo?
- Sim – respondeu o casal, em uníssono.
- Estão dispostos a respeitar-se e a confiar um no outro mutuamente por toda a vida?
- Sim – respondeu Dora, seguida por Hélder, cuja resposta saiu bem menos rápida que a última.
- Estão dispostos a receber os filhos caridosamente e educá-los na fé?
- Sim – disseram.
- Dêem as mãos e expressem vosso consentimento.
Os dois se viraram e estenderam as mãos.
- Eu, Hélder Fernandes Filho, recebo-te, Dora Sampaio, como minha esposa, e prometo ser fiel... – Ele parou. Os olhos passearam pela grinalda e pela maquiagem impecável da noiva, as palavras ensaiadas se esgueirando pela boca. – Prometo te amar e te respeitar na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por toda a minha vida – terminou. Na assembléia, alguém soluçou, e ele evitou olhar para o lado para ver quem estaria chorando.
- Eu, Dora Sampaio, recebo-te, Hélder Fernandes Filho, como meu esposo, e prometo amar-te e respeitar-te, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por toda a minha vida. – Um sorriso acompanhou as palavras suaves, ditas com uma musicalidade que os presentes definiriam como encantadora.
- Senhor, confirme o consentimento apresentado diante de vossa Igreja. Não separe o homem o que Deus uniu. – Com um gestou, o padre chamou o menininho com a almofada e traçou uma cruz no ar com a mão quando a criança se aproximou.
- Abençoai, Senhor, o amor destes teus filhos representado por estas alianças.
A almofada foi estendida para frente e Hélder soltou as mãos da noiva para pegar o primeiro anel. O metal era frio, mesmo para os dedos gelados do noivo. Ele se voltou para a noiva e ficou parado, a boca entreaberta e os olhos vidrados. A mulher fez uma expressão ligeiramente interrogativa, sentindo a atenção irradiando dos convidados nos bancos como o calor de uma fogueira.
- Dora, receba esta aliança como sinal do meu amor e da minha fidelidade – falou o noivo, e teve a impressão de notar um sutil suspiro de alívio ao redor, depois da demora. Ele pôs o anel no dedo anelar da mulher e ela sorriu antes de pegar a segunda aliança.
- Hélder, receba esta aliança como sinal do meu amor e da minha fidelidade – disse, e ambos, marido e mulher, se olharam, contemplando na face um do outro a consumação do encontro de duas vidas.
Ao final da cerimônia, os convidados formaram duas filas que partiam da entrada da capela, de onde os noivos saíram e foram saudados com uma chuva de arroz e pétalas que caiu sobre os dois junto com os resquícios de sereno. Dora se encostou ao corpo de Hélder, rindo com a saudação, e ambos caminharam de mãos dadas para o carro preto com uma placa escrito “recém-casados” no vidro traseiro, agradecendo a todos com acenos. Antes de entrar, o noivo olhou para cima, pensando, ao ver o céu atrás do arroz que caía sobre ele, se o tempo podia mudar.
No salão, uma música suave os recebeu para a festa decorada com cortinas e balões brancos e dourados, inaugurada com a partilha do bolo de cinco camadas. Segurando a espátula com a mulher, Hélder posou para o fotógrafo junto com a noiva e os padrinhos atrás da mesa enfeitada de doces e guloseimas. Ele piscou com o flash na primeira vez e também quando bebia o champanhe, segurando a taça com o braço cruzado com o de Dora.
- Obrigada – ela cochichou no ouvido dele. O noivo tirou a concentração dos pés bem trabalhados para não errar a valsa e pisar nas sandálias da parceira.
- Pelo quê? – Ele a olhou. Ao redor, pontos multicoloridos de luz acompanhavam a dança em movimentos circulares pela pista.
- Por este dia. Está tudo perfeito. Eu andava insegura com as enchentes e depois com seu acidente na serra, mas ocorreu tudo melhor do que eu imaginava.
- Não precisa me agradecer. Eu só não atrapalhei, não muito. Você que teve a coragem e a força para assumir a maior parte do trabalho.
- É... Confesso que fui mandona e obsessiva em um momento.
- Quer saber? Eu precisava de uma mandona por esses dias – Hélder falou. – Precisei mais do que nunca da sua segurança, e sempre vou precisar.
Alguém pigarreou atrás.
- Se não for pedir muito, é minha vez de dançar com a noiva – falou Saulo, estendendo o braço para a irmã como uma reverência. Hélder soltou Dora e se virou, encontrando a tia pronta para a dança.
- Está melhor? – ela perguntou. – É impressão minha ou está menos amedrontado que quando o encontrei na igreja?
- Estive refletindo sobre o que disse. – Ele pensou na noiva e no que acabara de falar para ela. – Mudanças assustam, mas agora tenho alguém para me dar apoio – Hélder falou e viu sinceridade nas próprias palavras. Por mais que não quisesse envolver Dora completamente no que passava, ela era o motivo pelo qual ele lutava, e isso era o bastante.
- Sempre achei que o casamento iria lhe fazer bem – falou Marjorie, se movendo lentamente pela pista. Outras parceiras vieram. Hélder dançou com as madrinhas e cunhadas, Lorena e Bia, os vestidos combinando como se fossem irmãs gêmeas, e ensaiou alguns passos até com Dona Dirce. O corpo foi reivindicar um preço mais tarde, cobrando uma noite inteira sem dormir e um dia de abraços e sorrisos.
Poucas pessoas ainda restavam no salão, depois do aprofundar das horas. Saindo pouco a pouco após o arremesso do buquê, restavam apenas algumas mulheres contando as últimas novidades umas para as outras e tirando discretamente a enésima taça de champanhe das mãos dos maridos que riam exageradamente de piadas sobre sogras. Conforme iam cumprimentando os noivos, os convidados se dispersavam, indo para as pousadas e hotéis onde passariam a noite, carregando lembrancinhas e – uns e outros – volumes açucarados dentro das bolsas.
Hélder não dava a mínima para as baixas na quantidade de doces e do resto do Buffet. Ele transitava entre os remanescentes, cada um com seu voto de felicidade, a qual ele agradecia de forma automática e continuava andando, chutando balões que se soltavam dos arcos nas paredes. Os balões quicavam vagarosamente pelo piso com movimentos tão sonolentos quanto os do homem que chutava.
- Hélder! – Um aperto no ombro o puxou e o fez olhar para o cunhado. – Ela está ali. – Saulo fez um gesto com a mão que segurava uma taça de vinho pela metade e indicou Dora, que estava de costas para eles, não muito longe, o vestido branco sendo colorido pelas luzes do salão de festas.
- O que tem?
- Não era quem você procurava? Achei que estivesse procurando alguém.
- Por quê?
- Você estava andando em círculos pelo salão. Olhando de vez em quando para o teto. Achei que iria esbarrar em alguém.
Hélder parou e desviou o rosto, tentando lembrar o que estava fazendo nos minutos anteriores e percebendo que não conseguia. Era como olhar por uma lente embaçada.
- Ah, não... Deve ser por causa da noite.
- O que tem a noite?
- Como? – O noivo olhou para o cunhado, notando que havia falado em voz alta sem querer.
- Você falou que era por causa da noite. O que tem a ver?
- É tarde, não? Não fale nada para Dora, mas não dormi nada de ontem para hoje.
- Tem certeza de que não é a bebida que está deixando você desorientado? – Saulo contemplou a taça. – Abasteci a festa com o melhor do bar, embora eu não tenha bebido muito. Essa é a minha segunda taça, juro. Deixei mais para os convidados.
- Eu também não bebi muito. É o sono que está me deixando meio aéreo.
- Pelo que estou vendo, aéreo é pouco. Está cochilando em pé. Vou chamar a maninha. É melhor ir.
- Não é melhor esperar um pouco? Ela pode estar se divertindo.
- Está brincando? Passar metade da noite em cima daqueles saltos e dentro daquele vestido não deve ser mole. Você estava distraído e não percebeu que a festa acabou faz tempo. Vou falar com ela. – Saulo saiu à frente, sendo acompanhado por Hélder. – Cansada, maninha? – ele perguntou.
Interrompendo a conversa com a irmã mais velha, Dora se virou, sacudindo a barra do vestido ao redor dos tornozelos. Ele estava menor, com a remoção da cauda, ainda que não estivesse tão prático quanto as outras roupas.
- Pois é. Mamãe acabou de sair. Lorena foi deixá-la em casa.
- Não sei vocês, mas não acho que seria má hora para se recolher. Hélder está tendo dificuldades para manter os olhos abertos.
- Estou bem – disse o noivo, não gostando de se sentir infantilizado, por mais que o cunhado estivesse certo. – Posso ficar o quanto quiser, querida.
- Mas concordo. É melhor nos retirarmos. Meus pés estão me matando.
- Posso assumir tudo daqui – Bia falou. – A maioria já foi embora, de qualquer modo.
- Já agradeci quantas vezes a você por tudo? – Dora se virou para ela
- Muitas – disse a irmã, sorrindo. – Mas nunca é demais. – Ela abraçou a noiva, indo depois para o cunhado. – Descanse bem. – Bia olhou para Dora. – Amanhã temos outro compromisso, você sabe. Boa noite.
- Boa noite. – Dora se virou para os dois homens. – Vamos?
- Vamos. – Hélder pegou na mão dela. Os dois se afastaram rumo à saída, se despedindo dos convidados que também se preparavam para irem embora. Fora do salão de festas, ele abriu a porta traseira do sedã de porte grande alugado por Saulo e Dora levantou a parte da frente do vestido para subir no veículo e se sentar.
- Para casa, pombinhos? – perguntou Saulo, ligando o automóvel e pondo as mãos no volante.
- Sim. – Dora entrelaçou os dedos com os do marido que se juntava a ela no banco traseiro. Havia um tom de interrogação que Hélder notou, como se ela pedisse permissão para irem para a casa deles. Antes, estavam na casa de Dirce para que ele se recuperasse de pesadelos e surtos noturnos, mas com a chegada de mais familiares para o casamento, o jeito era passarem a noite de núpcias a sós como manda a tradição.
- Para casa – ele disse. – Vamos embora. – O noivo relaxou sobre o banco e sentiu a máquina dentro da qual estava se deslocar sobre a pista com a suavidade de uma nuvem negra no meio da noite.
Na tintura polida da lataria, os reflexos das luzes urbanas da avenida escorregavam, cristalinas, durante o trajeto pela cidade. Na esquina, o sinal abriu poucos instantes antes de passarem e virarem em uma rua praticamente deserta.
- Que lindinhos! – Saulo encarou os noivos pelo retrovisor. – Vendo vocês assim deu até vontade de casar.
- Por falar nisso, por que nunca se casou? – perguntou Hélder.
- Rapaz, eu não sei. É uma daquelas coisas que não tem como explicar. Você vai deixando o tempo passar e, de repente, seus colegas de escola estão tendo filhos e você não – respondeu Saulo, vendo os faróis iluminando a enxurrada que escorria pelo asfalto. – Depois da morte de papai, eu me concentrei no bar e na família como um todo. O tempo passou e aqui estamos nós.
- Não é um detalhe que você simplesmente esquece – disse Dora.
- Pode ser. Mas cuidei dos interesses dos Sampaio nesses anos todos. Isso me faz um homem de família, não?
Hélder deixou de fitar o retrovisor e olhou a água escorrendo pelo meio-fio. Parecia que navegavam por um rio, com Saulo como capitão.
- Devia ter pegado o buquê, maninho – falou Dora, divertida. – Teria muitas pretendentes.
- Não! – o irmão exclamou, parando atrás de outro carro.
- Foi só uma brincadeira.
- Não é isso. – Ele buzinou e os veículos em frente pouco se moveram. – Não é um sinal vermelho.
Um microônibus deu ré e Saulo virou para o lugar dele, vendo a água inundar o resto da rua e o cruzamento, arrastando automóveis parcialmente submersos como icebergs à deriva.
- É um alagamento.
- E agora? – perguntou Dora.
- Não tem outra rua? – inquiriu o noivo, se erguendo sobre o banco.
- Não só aqui está alagado. Toda a Rua Quinze de Agosto é mais baixa a partir daqui. Esse bairro deve estar todo debaixo d’água. – Saulo voltou, dando marcha à ré, virou a esquina e seguiu pela rua.
- Estamos presos desse lado de Santa Regina? – Hélder olhou as casas passando, até avistar uma segunda esquina através da qual era possível ver mais carros encalhados e um motoqueiro lutando inutilmente contra a enxurrada.
- Por enquanto. Não dá para atravessar, a menos que tenhamos uma lancha ou um animal para montarmos.
- Um animal? – Dora estranhou.
- Foi uma coisa que vi agora. – Saulo inspecionou o retrovisor esquerdo. – Não é importante. O que quero dizer é que estamos presos na cidade e... – Ele desacelerou. – Cidade! É isso! Podemos contornar.
- Contornar por outro lado? – perguntou a irmã. Eles passaram por mais uma esquina e viram uma árvore caída, os galhos bloqueando a visão da rua alagada como as cortinas de uma janela.
- Não vai demorar. – Saulo acelerou e o carro percorreu mais quadras, virando em cruzamentos até chegar a uma rodovia. Ele dirigiu em silêncio alguns minutos e virou em uma estrada ao lado de um posto de gasolina, fazendo as grossas rodas girarem sobre um novo atrito. O asfalto tinha ficado para trás e a estrada de terra parecia querer engoli-los a cada poça em que o carro passava por cima, espirrando lama para os lados. Árvores ladeavam o caminho silencioso, deixando entrever a silhueta da serra quase indiscernível das nuvens acima. Em uma bifurcação, Saulo virou à esquerda e dirigiu por um trecho esburacado de terra antes de dobrar e seguir ao lado de uma cerca de madeira que os separava do território entre a serra e Santa Regina.
- Queiroz – Hélder apertou a mão da esposa. Estava revisitando aquele lugar, vendo o cenário que viu quando saiu para tentar procurar o vale dos ossos e que devia ter visto nas noites de assassinato. Toda a escuridão era mais que um pesadelo cheio de significados e lembranças. Nunca tinha olhado para as sombras noturnas e visto tanto.
- Sim – disse Saulo. – Está especialmente calmo aqui.
- Tínhamos mesmo que passar por este lugar? – perguntou Dora.
- Precisamos cortar caminho, não lembra? Não tenho culpa se meu pai deixou uma propriedade que fica ao lado das terras dessa gente. – O irmão sorriu. – Rivais e vizinhos. O velho Salomão não abriu mão do terreno. Adoro o papai.
Diferente do cunhado, Hélder não sorriu. Ele estremeceu como se os ventos frios do lado de fora atravessassem o metal e agarrassem seu pescoço. Fugindo das presenças fantasmagóricas dos antigos donos da fazenda nas trevas ao lado, ele olhou para a mistura de barro e água que calçava o caminho revelado pelos faróis.
- Já contei que encontrei Ruivinho? – perguntou Saulo, como se os pensamentos do cunhado sobre os irmãos Queiroz fossem música soando dentro do veículo e o fazendo lembrar-se do cavalo.
- Sério? Como foi? – perguntou Hélder, olhando para o espelho retangular do retrovisor, onde a expressão do cunhado era um recorte enigmático.
- Eu tinha esperanças de que seria um dia feliz o dia em que tivesse notícias dele. Uma pena que não foi – disse Saulo. – Era um belo animal. As pessoas não deixaram de reparar na beleza dele, mesmo quando ele não passava de um cadáver na lama.
- Sinto muito – Hélder falou.
- Eu que sinto – o cunhado frisou. – Deixa pra lá. Nenhum de nós teve culpa. – Ele não desviou o olhar da frente. Não dava para afirmar se ele já teria culpado alguém pela perda.
- Compre outro – disse a irmã, olhando pela janela.
- Um melhor – completou Hélder, esperando alguma resposta sobre não poder substituir o que era perfeito, mas encontrando apenas o silêncio pensativo de Saulo.
O sacolejar do automóvel era um especial fundo musical para a calma. A lama depois do final da cerca era particularmente escorregadia, sujando com um manto tudo a partir das rodas.
- Estamos chegando? – Dora perscrutou a escuridão em volta, principalmente à frente, levantando-se um pouco do banco para ver melhor. O carro deu um solavanco em uma poça e os faróis, ao subirem, revelaram a aproximação cuidadosa de outro viajante da noite, percorrendo o caminho com suas quatro patas. Seus cascos estavam mergulhados na lama e sua crina balançava com os movimentos da cabeça, de onde dois círculos atentos refletiam a luz e os observavam. Em cima, outra figura permanecia parada, cobrindo o rosto com o capuz do casaco.
- Quem é esse? – Dora perguntou, quando o carro parou. – Ai, Meu Deus! Será que é quem estou pensando? – ela completou, e não precisava ser mais específica para se referir ao medo que todos tinham ao passar por ali depois da morte dos irmãos Queiroz.
- Não deve ser nada demais – falou Saulo, tranqüilizando a irmã. – Pode ser só alguém perdido.
O cavaleiro encapuzado puxou as rédeas e fez o animal se aproximar dois passos do veículo. Ele levantou o braço direito, como se apontasse, e um estalo alto seguido de um pequeno clarão fez o retrovisor ao lado do motorista se estilhaçar. O barulho se misturou ao grito de Dora, que se agarrou ao marido, enquanto que Saulo se contraiu no banco como se levasse um choque.
- Se voltar ou tentar me atropelar, o estrago é maior – disse ele. Hélder elevou o rosto dos cabelos bem penteados da noiva e o olhou pelo pára-brisa.
- Marlon?
- Não é o filho do Raimundo? – Saulo cochichou, levantando as mãos ao tirá-las do volante.
Hélder não confirmou, permanecendo calado, e sentiu o corpo trêmulo de Dora se agitar em seus braços quando ouviu o barulho da maçaneta da porta sendo aberta.
- Saulo, por favor!
- Calma! – disse o irmão. – É só um garoto. – Ele empurrou a porta e pôs o pé na lama, saindo sem movimentos bruscos, tanto por estar sob a mira de uma arma, quanto por medo de escorregar. – Rapaz, eu não sei o que houve, mas apontar esse negócio para nós não é o melhor jeito de resolver.
- E facas? – Marlon tirou o capuz. – É um bom jeito de resolver os problemas?
- O que isso quer dizer?
- Pergunte para o homem ali dentro.
Saulo virou o rosto para o carro, onde o noivo de terno preto empalidecia. Hélder se sentia agarrado por tentáculos prontos para puxá-lo para o fundo do mar.
- Meu amigo, minha irmã acabou de se casar. Foi um dia puxado. Se você descer e guardar a pistola, podemos conversar.
Marlon se aproximou, sendo possível ver melhor seu rosto na luz dos faróis.
- Não sou amigo de ninguém aqui – disse ele. – E se é para conversar, quero que o cara lá atrás fale primeiro. Pode começar repetindo a oração que ouvi na igreja.
- Garoto... – Saulo começou e se calou com um novo disparo para o alto.
- Estou esperando! – Marlon gritou. – Não finja que não sabe do que estou falando. Eu sei que você matou meu pai e meus tios.
Embalada pelo abraço do marido, Dora enrijeceu o corpo e se afastou um pouco, encarando o homem com quem havia acabado de se casar.
- Que loucura é essa? – Saulo bufou.
- Devia perguntar isso à outra pessoa, uma que costuma sair à noite para destruir vidas e famílias. O Lima me contou que encontrou você na última noite, perambulando pela fazenda. Está me ouvindo?
Hélder largou a esposa e se arrastou pelo banco traseiro.
- O que está fazendo? – Dora tentou agarrá-lo.
- Preciso resolver isso. – Ele abriu a porta, firmou os sapatos novos e meticulosamente engraxados na sujeira molhada e caminhou para a área mais iluminada.
- Marlon, se seu problema for comigo, podemos resolver. É só ficar calmo.
- Você! – O rapaz apontou a arma para ele. – Como se sente quando é você que é caçado à noite? Eu estou seguindo vocês desde a cidade, depois que saíram da festa.
- Você nos seguiu até aqui?
- Não diretamente. Quando percebi que viriam para cá, peguei um atalho. Cavalos se dão melhor com ruelas estreitas e alagados do que carros.
- Por que tudo isso?
- Passei um dia e uma noite pensando em você, desde que o ouvi no sacrário, pedindo para que Deus o livrasse de um espírito assassino. No começo, eu não entendi e me recusava a aceitar que fosse você o responsável por tudo. Não acreditava que o assassino estava bem ali, do meu lado. Mas conheço Lima e ele não deixou de comentar comigo que encontrou um estranho rondando a fazendo à noite quando levava um carregamento para fora da fazenda. Pedi para que ele o descrevesse e não foi difícil reconhecê-lo. Tive que ir atrás de você para ouvir de sua boca.
- Não sei do que está falando, mas precisa mesmo dessa arma? – perguntou Saulo.
- Gostou dela? É do meu pai. Saí da casa onde minha família está hospedada e fugi para a fazenda para pegar o cavalo e ela. – Marlon se voltou para o noivo. – Eu queria abordar você antes que sumisse depois do casório e precisava de uma forma persuasiva.
- O que você realmente quer?
- Quero que confesse! – O cavalo deu mais dois passos, aparentemente se movendo com o mero pensamento do cavaleiro, e Marlon se impôs sobre Hélder do alto da montaria. – Na igreja, falei sobre meu pai e meus tios, e vi sua reação incômoda. Por que destruiu minha família? – perguntou ele, os fios loiros mais claros com a luz do carro. – O que aconteceu naquela noite, na serra, e por que os matou?
Mesmo acuado, com o cano da pistola apontado para ele, Hélder levantou o rosto e fitou o filho de Raimundo. Não eram apenas os cabelos do rapaz que pareciam queimar na noite. O corte se fez sentir na área do peito sob a lapela do terno, como se a menção às montanhas o revitalizasse. Ele podia perceber o cunhado o olhando, atento, e não precisava se virar de costas para saber que a noiva também o observava, os dois Sampaio concentrados na conversa, calados, na expectativa de uma resposta ou de uma tragédia.
Hélder fitou com mais intensidade o olhar do jovem Queiroz, avaliando uma diminuta série de alternativas de ação que poderiam trazer poucas conseqüências. Ele quase pediu para que o rapaz o levasse dali, para que pudessem conversar sozinhos, ou que ele atirasse logo de uma vez. Certamente, Dora estaria melhor como viúva do que como mulher de um assassino. Estava para abrir a boca, quando o cavalo recuou com um relincho, afastando a dureza do olhar de Marlon, que apontou a arma para outras direções. O cavalo sapateou pela lama, espirrando terra molhada. Ele cavou, arrastando a pata dianteira direita no chão mole, e empinou, socando as duas patas dianteiras sobre o capô preto e liso do automóvel, deixando sujeira e um amassado.
- O que você está fazendo? – Saulo gritou, indo para a beira da estrada.
- Não sou eu! – respondeu Marlon, sendo sacolejado na sela pelo animal que se contorcia e se balançava com o intuito de se livrar do cavaleiro, como se estar montado, de repente, se tornasse o maior dos insultos. – Quieto! – O rapaz gritava, levando a mão com a arma para as rédeas a fim de tentar se segurar. O cavalo continuava jogando o corpo, lutando contra os comandos que recebia do dono. Com um salto, se lançou sobre Hélder, que mergulhou entre as árvores antes do coice. Em um trote ensandecido, girou diversas vezes na lama e empinou, atingindo a grade frontal prateada do carro.
Os dedos de Marlon, divididos entre agarrar as rédeas e segurar a arma, não garantiram a sustentação necessária naquele rodeio improvisado. O jovem se agarrou ao pescoço do animal, a crina roçando no rosto, e, na movimentação, os pés saíram dos estribos, lançando-se no ar. O corpo pendeu para o lado e caiu junto com o cavalo. Marlon sentiu o frio envolver suas costas com a dor do impacto. Quando abriu os olhos, viu o animal se levantando e começando a galopar ao redor dele, agitando as patas em uma dança frenética. Esquivando-se dos golpes de cascos, o rapaz chafurdou pela lama e viu que tinha perdido a arma, chutada pelo cavalo. Ele rolou pelo solo e se arrastou até ela, sendo detido por outra pessoa quando esticou o braço.
- Solta! – gritou, tentando se livrar de Hélder.
- Esquece isso! – disse o noivo, que escorregou e se engalfinhou com o jovem em busca da pistola. Atrás, o cavalo distribuía coices, patinando na estrada. Ele se aproximou e empinou pronto para pisotear os dois. Em um reflexo, Hélder levou o braço ao rosto para se proteger, mas antes que tampasse os olhos, um vulto tirou o cavalo da frente com um único e preciso golpe. Ofuscado com os faróis do carro, tudo o que o homem viu foi um amontoado de silhuetas bestiais lançando sombras no rastro de luz que o veículo projetava sobre o caminho. Uma cauda se erigiu em contraste com a claridade e a ponta cintilou, riscando o ar ao perfurar a carne peluda em beliscadas rápidas como uma seqüência de botes de uma naja.
- Hélder! – Uma voz masculina aterrorizada chamou, mas o noivo pouco deu importância. Ele ouvia os relinchos se extinguirem pouco a pouco como que sugados pelo rosnado feito pela criatura em cima do cavalo. A cauda interrompeu as estocadas e ficou em riste, a ponta afiada apontada para cima. O contorno sombrio se afastou do mordido e perfurado corpo equino, o sangue manchando a terra sob as garras, e se aproximou de Hélder com as passadas charmosas iguais às de um grande felino.
O hálito quente foi o primeiro a chegar. A aproximação transformou a silhueta em algo mais distinguível, a começar pelos olhos claros, parecidos com estrelas, depois veio todo o rosto achatado, que lembrava mais o de uma pantera do que o de um lagarto, embora a criatura possuísse pelo corpo grossas escamas que se avolumavam no pescoço, formando uma juba. Ela encarou o homem de terno preto parcialmente enterrado na lama e bufou. O focinho passou fungando por ele com a tranqüilidade de quem tinha a presa em mãos e se voltou para o rapaz ao lado. As narinas abriram e fecharam, farejando Marlon, e um rosnado irritado saiu da boca dentuça.
As patas afundaram no solo e os olhos ficaram mais amarelos. Em seguida, a cauda foi levantada em posição de ataque, o ferrão na ponta a postos para a execução, mas antes que consumasse a intenção homicida, disparos a afastaram. Marlon levantou os dois braços, segurando a arma e atirando sem conseguir mirar direito. A criatura reagiu com uma chicotada errônea de cauda e se ocultou entre as árvores.
- Pare! – Hélder agarrou o garoto que continuava descarregando a munição nas sombras. O gatilho deixou de ser apertado e o jovem foi arrastado até o veículo.
- Vem, Hélder! – gritou Saulo, sentando no banco do motorista enquanto o cunhado se dirigia para o lado. O noivo se atrapalhou com a maçaneta um instante como se tivesse se esquecido de usar e abriu a porta. Ele se jogou para dentro com Marlon e os pneus derraparam, fazendo o carro retroceder na estrada. A luz dos faróis saiu do alcance da carcaça do cavalo e Saulo continuou dando ré. No banco traseiro, pálida igual ao vestido que usava, Dora olhou o noivo, mantendo distância no assento. Mal podia reconhecê-lo com a camada de sujeira, com a penumbra do veículo e com tudo o que se passou nos últimos minutos. O que viu e ouviu era demais para digerir.
Hélder se virou e tentou pegar a mão da esposa, mas ela se afastou. A noiva só conseguia agir instintivamente diante de tudo. Ela abriu a boca para falar com uma voz rouca de gritos e um baque forte a interrompeu. No teto, uma lâmina despontou, se projetando ameaçadoramente para o interior do veículo. Os três gritaram, as vozes em uníssono com o rosnado alto que vinha do lado de fora. Uma pata apareceu no pára-brisa e Saulo girou o volante com violência, fazendo o movimento semicircular quase jogar o peso em cima do carro para longe. A criatura se firmou com as garras, arranhando a tintura do capô. O motorista acelerou, afundando o pé no pedal e deixando o vento se encarregar de expulsar o passageiro externo. Amassados apareceram na carroceria e um golpe fez rachar o vidro traseiro com o cartaz de “recém-casados”.
O ponteiro do velocímetro flertava com o limite, o ronco do motor disputando com o rugido da fera acima deles. Saulo apertou os dedos ao redor do volante com uma força que o fez sentir dor. Na frente, a pata mudou de lugar e tentou se fixar em cima do pára-brisa, as unhas por pouco não perfurando o vidro. Ele avistou as cercas que delimitavam a propriedade dos Queiroz e sem a menor cerimônia virou. O carro deixou a estrada, percorreu um trecho de grama, depois de algumas árvores, e o motorista prendeu a respiração, se preparando para o impacto que veio logo em seguida.
O veículo atingiu a cerca como um meteoro e lançou lascas de madeira para todas as direções. Com a batida, os passageiros foram chacoalhados em um balanço impetuoso. Saulo retomou o controle e, em ziguezague pelo campo, notou o baque de uma carga indesejada caindo e ficando para trás. Um aclive fez o carro dar um salto e as rodas pousaram no chão, fazendo-os estremecer novamente.
- O que... O que é isso? – perguntou Marlon, ofegando como se tivesse corrido toda a distância até ali.
- Nem imagino. – Saulo dirigia, reduzindo sensivelmente a velocidade. – Nunca tinha visto uma onça daquele tamanho. – Ele olhou para o retrovisor esquerdo, querendo ver se ainda tinham companhia, e lembrou que o espelho tinha sido destruído com o primeiro tiro dado pelo rapaz.
- Não – falou o jovem, olhando para o corte no teto. – Onças não saltam sobre carros desse jeito e, com certeza, onças não têm ferrão.
- Ferrão – Hélder repetiu. Levantou a mão trêmula e tocou no ombro, no corte sob camadas de tecido fino e terra. Entorpecido, se lembrou dos olhos que tinham acabado de encará-lo na estrada, os mesmos olhos penetrantes que viu no rio antes de ser transpassado e afundar. – Ferrões têm veneno – disse ele, em transe. – Diabo dos ossos.
- O quê? – O cunhado olhou pelo retrovisor. – Que diabo?
- Isso que nos atacou. Eu achei que fosse um demônio e pus esse nome. Ele me envenenou.
Dora se virou, alarmada.
- Você está ferido? – perguntou Saulo. – Está sangrando?
- Não... Não foi hoje. Não foi agora. Foi nas montanhas. Essa coisa me atacou e eu fui arrastado pelo rio. – Hélder se calou com um solavanco do carro que desceu um declive. – Dr. Santos havia dito que o corte no meu ombro estava muito sarado para ser algo recente. Acho que deve ser devido à ação de alguma toxina com propriedade de cicatrização, um veneno que também me faz ter distúrbios do sono. – Ele fechou os olhos e se lembrou dos pesadelos, de misturar sonhos e realidade.
- Se aquilo estava na serra, deve ter sido ele que atacou meu pai e tio Jonas – completou Marlon, com a cara de quem estava prestes a vomitar. – Deve ter voltado para terminar o que começou.
Hélder olhou para o jovem ao lado, igualmente coberto de lama, e se lembrou de estar com ele no chão da estrada, e como a fera farejou os dois, se encrespando ao aproximar o focinho de Marlon. “Seja quem for, sabia o que queria.” As palavras do caminhoneiro ecoaram na mente dele. Os irmãos e os filhos tinham um cheiro parecido.
- É você! – O homem de terno maltrapilho anunciou como o oráculo do desastre. – Ele não estava atrás do cavalo, nem de nós. Ele estava atrás de você, como estava atrás do seu pai, dos seus tios e do seu primo. – Não havia ameaça na voz de Hélder, nem mesmo contentamento por se ver inocente das mortes. Havia apenas uma estranha frieza.
Marlon o olhou, as feições duras rachando a crosta de terra no rosto, embora tivesse sumido a maior parte da hostilidade que ele apresentava quando encontrou Saulo e os outros.
- Pare o carro! – Dora bateu na porta, aos soluços. – Pare o carro!
- Querida! – Hélder levantou os braços para a esposa e ela se esquivou.
- Eu quero sair daqui!
- Amor, por favor, sou eu. Vou tentar explicar melhor quando estivermos a salvo.
- E não dá para parar – disse Saulo. – Aquela coisa pode nos alcançar.
- Não pode ir para a estrada? – perguntou Marlon.
- Podemos atolar.
- Pelo menos poderíamos chegar à cidade. Minha família e eu andamos pelas ruas e ele não nos ataca.
Saulo ficou calado. Parecia ponderar sobre a alternativa, guiando o veículo pelos campos abertos. Não dava para avistar praticamente nada que não fosse grama, plantas rasteiras e protuberâncias rochosas.
- Policiais! – disse Hélder. – O caminhoneiro disse que policiais freqüentam a fazenda em busca de pistas. Pode ter alguma viatura. – Ele virou para a esposa. – Vamos ficar bem, querida. Vamos encontrar ajuda e sair daqui.
Dora pareceu aliviar o pânico ligeiramente, os olhos lagrimejando ao olhar para o marido.
- Não estou vendo ninguém. – Marlon perscrutou pela janela, contemplando a escuridão com uma pontada de vontade de perguntar o que Hélder fazia andando por ali na última noite, já que ele não era o assassino. Não vendo nada, se arrastou pelo banco, chegando perto do casal, e observou através do pára-brisa. Não encontrou nada que lembrasse uma viatura ou uma presença humana, a não ser um brilho fraco ao longe. Estreitando os olhos, viu que eram reflexos da luz dos faróis.
- Cuidado!
Percebendo o mesmo que o rapaz, Saulo freou bruscamente e o veículo derrapou, girando em círculos perfeitos pela grama. O carro subiu em um relevo e as rodas laterais direitas levantaram em uma promessa de capotagem. Quando repousou os pneus na grama, os ocupantes abriram os olhos, seus músculos doendo após se segurarem onde podiam para não serem sacolejados como bonecos.
- Estão todos bem? – perguntou Hélder. – Você está bem, querida? – Ele tocou no rosto de Dora, que assentiu.
- Precisamos nos apressar. – Saulo dobrou para a direita, descendo a elevação de terra, e sentiu o carro pender para outra direção. O automóvel deslizou mais para a esquerda e foi direto para o alagamento, afundando a parte frontal na água. O motorista tentou dar ré, mas a enchente parecia piche, segurando-os. Sem conseguir ir para trás, virou e seguiu devagar na margem. Saulo abriu a janela e pôs a cabeça para fora, vendo a água bater na metade da porta. À frente, os faróis deixavam rastros ondulados.
- Não! Não agora! – Ele acelerou e avançou poucos centímetros. – Atolamos.
- Estamos presos? – Marlon arregalou os olhos.
- Vou dar um jeito. Fiquem calmos. – Saulo forçou, apertando o pedal. Ele girou o volante em direção à terra firme e novamente pouco progrediu na margem. – Droga! – Buzinou seguidas vezes, o som estridente vibrando pela carroceria.
- Pare com isso! – esbravejou Marlon.
- Estou pedindo ajuda.
- Aquele bicho também pode ouvir.
- Duvido que tenha nos alcançado. – Saulo dobrou, adentrando mais na água, e fez uma nova curva. – Acho que nos livramos do banco de areia que nos prendia – disse ele, e o carro se arrastou como um anfíbio pelo alagamento.
- Não pode ir mais rápido?
- Estou fazendo o melhor que posso – respondeu o motorista. A água escoou ao redor e chegaram perto da parte mais rasa da margem, conquistando mais liberdade, mas qualquer sentimento de comemoração foi abafado pelo rugido. Os quatros se viraram e, de algum modo, perceberam a aproximação de uma força selvagem. O próximo som a explodir foi o grito de Dora. Saulo virou para o sentido contrário e o impacto terminou o que a pouca tração das rodas tinha começado. Eles foram empurrados mais para o fundo, com a fera que cercava o carro por trás espirrando água através das janelas entreabertas.
Patas poderosas se dividiram entre nadar e arranhar o metal, e os ocupantes do banco traseiro se concentraram no meio do assento, esperando garras rasgarem o metal do automóvel a qualquer instante. Saulo girou o volante e pressionou os pedais aleatoriamente, vendo o carro se mover, mas não sob seu controle. Eles eram empurrados pela criatura e pela corrente d’água que fluía para longe. O motorista buzinou, querendo afugentar o animal, e acabou por atiçar a fúria descarregada em chicotadas violentas. O vidro traseiro recebeu um golpe e uma teia de rachaduras apareceu. Hélder, Dora e Marlon se debateram entre si, jogando-se para frente através dos bancos dianteiros. As pernas da noiva ficaram sobre as do irmão, encobertas pelo vestido, enquanto que os outros dois homens se pressionaram contra o pára-brisa como se pudessem atravessá-lo.
Pelo retrovisor, depois do penteado de Dora, que estava com o rosto virado, Saulo viu o vidro traseiro tomar uma forma convexa, o quadrado do cartaz cortado por rachaduras. A parte de cima se separou da capota e olhos investigaram o interior pela brecha. Houve um rugido e garras entraram, projetadas através da abertura como dentes em uma boca. Os dedos se dobraram em um aperto e a placa foi puxada aos poucos da estrutura, arrancada como uma casca que se desfazia em estilhaços e ruídos ásperos.
Uma onda se derramou para o interior, empurrada pelo corpo que se esgueirava pelo espaço deixado pelo vidro traseiro. A cabeça farejou os passageiros espremidos no lado oposto do veículo, e um rugido ensurdecedor ressoou entre as ferragens, propagando um bafo que parecia acumular todo o cheiro de uma carnificina. Livre da maior parte da visão e do hálito soprando como um convite à morte, Saulo viu o terror paralisante estampado no rosto dos demais. Marlon apontou a arma com o braço esquerdo desjeitosamente e acabou a deixando cair no banco do passageiro antes que pudesse apertar o gatilho. Estava se preparando para se curvar e pegá-la, quando a criatura pôs uma pata para dentro e cravou as unhas no estofado do assento, afastando o rapaz aterrorizado. O chiado do tecido rasgando acelerou os pensamentos de Saulo.
- Saiam! – gritou, tateando a porta e pegando na maçaneta. Ele abriu e sentiu a enchente escoar para dentro, ensopando suas pernas e o vestido de noiva da irmã. A frente do carro afundou um pouco, ajudando a fera a entrar alguns centímetros a mais. Saulo puxou Dora pelo braço e se arrastou com ela para fora, o frio percorrendo seu corpo devido à água e à surpresa. Era mais fundo que aparentava. Os dois foram tragados em um mergulho e emergiram se debatendo para se afastarem do carro.
- Hélder! – Dora gritou para o veículo que naufragava com uma cauda afiada chicoteando a traseira.
- Vem! – O irmão continuou tentando segurar uma rebeldia inconformada e vestida de branco, as lágrimas dela se unindo com a água em uma única mistura.
Em parte nadando, em parte sendo levado pela correnteza, Saulo abraçava a mulher que se contorcia em seus braços, chamando pelo marido, até que uma movimentação chamou a atenção e uma barbatana saiu de trás do veículo, cortando a mancha lânguida da luz dos faróis submersos. Esperando um pouco, viram que era uma pistola segurada acima da superfície e acompanhada por dois rostos ofegantes.
- Hélder! – Dora abraçou o noivo que nadava ao lado do rapaz.
- E aquele bicho? – perguntou Saulo.
- Preso lá dentro. – Marlon cuspiu água da enchente. Atrás dele, o veículo sumia e a cauda com ferrão mergulhava junto, desaparecendo nas trevas; porém, não sem alguma reação. Rugidos abafados se alastravam debaixo d’água como tubarões sob os pés dos quatro.
- Onde estamos? – perguntou o jovem. Estar nas terras da família não necessariamente ajudava na orientação. Estava escuro e não dava para saber onde era a margem, ou onde havia um ponto de apoio por perto.
- Não importa. O que precisamos é manter distância. – Saulo se virou e começou a dar braçadas no sentido contrário ao carro. Os outros o acompanharam, se deixando levar um pouco pela correnteza. Os bufos animalescos da criatura não estavam mais no encalço, arrepiando a nuca, mas não dava para afastar a necessidade gritante de fuga. Eles mexiam pés e mãos, em busca de algum banco de areia, e só encontravam pequenos galhos e garrafas de plástico flutuando.
- Tudo bem, querida? – Colado à esposa, Hélder a ajudava, deixando os outros dois na dianteira.
- Não estou conseguindo – disse ela, o penteado se desmanchando e a maquiagem borrada dando novos tons de sombras ao rosto assustado.
- Não se preocupe. – Ele a puxou. O vestido empapado parecia pesar por duas pessoas, atrasando a fuga com a eficiência de uma âncora. – Eu estou com você.
- Eu ajudo. – Saulo nadou para o lado da irmã e passou o braço pela cintura dela para dar apoio. Marlon olhou os três, os dois homens tomando impulso com o braço que não ajudava a mulher. Em seguida, ele olhou para a mão e reparou na pistola que mantinha instintivamente acima da superfície como se fosse uma vela que se apagaria ao menor contato com a água.
- Você não vem? – perguntou Hélder, passando com os outros pelo rapaz. Antes que o jovem respondesse, um rosnado engasgado soou não muito longe e fez os quatro sentirem a tensão gelando a pele. Marlon abanou o braço debaixo d’água e se voltou para a direção em que vinha o barulho.
- Para onde você vai, garoto?
- Não sou um garoto – ele disse. – Sou um homem e preciso arcar com as minhas responsabilidades. Papai esperaria isso de mim. – Apontou a pistola e o disparo foi um relâmpago lançado no escuro.
- Ficou maluco? – repreendeu Saulo.
- Aquilo virá para cá – completou Hélder.
- Não. Ele virá para mim. É o que ele quer, não é? Ele saiu procurando um Queiroz, vocês só estavam no meio do caminho. – Ele fitou cada um: o herdeiro dos negócios de Salomão, a irmã dele, com um grande vestido, e o noivo, recém-ingressado na família Sampaio, todos com trajes de festa, vestidos para uma noite especial. – Eu também saí com um motivo. Também tenho o meu propósito, e vocês sabem bem qual é. – Marlon olhou especialmente para Hélder. – Tenho um serviço para terminar. – Com isso, se virou e com desenvoltura se moveu para as sombras, vencendo a correnteza.
- Você vai se matar, idiota! – gritou Saulo, e a advertência, assim como o cabelo loiro do filho de Raimundo, sumiu, sem promessa de retorno. – Imbecil! – Ele soltou a irmã.
- Saulo, por favor! – Dora tentou puxá-lo de volta.
- Vou pegar o moleque. Cuide da maninha – ordenou para o cunhado antes de se virar e dar braçadas para seguir um rasto invisível que cortava a escuridão.
- Vem comigo, querida. – Hélder puxou devagar a esposa.
- E o meu irmão?
- Ele... Ele vai ficar bem – disse o noivo, sua cabeça latejava e era como se pudesse sentir o peso da água em volta oprimindo os pulmões. O aperto que dava para segurar a mulher estava sendo somente um pouco mais forte que a enxurrada que os carregava, mas ele continuava fazendo o melhor que podia para chegar a algum lugar e manter Dora segura.
O barulho de dois tiros seguidos interrompeu a marcha do casal. A noiva se agarrou ao noivo e os dois ouviram mais tiros e gritos indistintos. Não dava para saber se eram de humanos ou não. Dora soluçou, comprimindo o rosto no peito de Hélder, que a envolveu em um abraço. Ele apertou os braços ao redor do corpo esguio dela e encostou a boca nos cabelos castanhos com cheiro de rosas e chuva.
- Fica tranqüila – sussurrou, sabendo que, agarrados como estavam, no meio do nada, não dava para disfarçar os batimentos cardíacos acelerados. Novos sons cantaram na noite, além dos dois corações unidos. Um rastejar suave, mais notável que o escorrer natural da água, se fez notar, sibilando como se as marolas falassem.
Após alguns instantes, as ondulações aumentaram, rompendo o ritmo e a forma original do escoar da enchente, e se abriram para o surgimento de uma sombra densa e sólida, saudando-os com olhos intimidadores e rosnados baixos que se confundiam com o esforço para tomar fôlego. Hélder piscou mais de uma vez, seu cérebro processando lentamente o que estava vendo como se o frio formasse lascas de gelo que congestionava os pensamentos.
Ele abraçou mais forte a mulher e os braços também demoraram a responder, embora seu aperto não fosse necessário. Dora virou o rosto no terno o suficiente para fugir da visão que se arrastava para eles e se agarrou nas vestimentas do marido com toda a força. Estar sem apoiar os pés em algo firme, de repente, se tornou ainda mais angustiante. Eles pareciam mais pesados e a descida mais inevitável, mas a perspectiva de afundar não era ruim se significasse sair do caminho das presas cor de marfim que surgiram quando a boca se abriu em um sorriso faminto e hipnotizante.
O sangue congelado e a incapacidade de se mexer não impediram o terror de tomar as veias. O medo parecia ser a única coisa que realmente funcionava nas mentes petrificadas. Mesmo o pensamento sobre o que significava o animal estar ali, na frente deles – sobre o fim que teriam levado Marlon e Saulo –, se empalidecia e se esvaía em choque com o destino que os aguardava.
Uma nova presa apareceu, perfurando o ar ao subir e virar a ponta para baixo. A gigantesca cauda de escorpião estava pronta, desprovida de urgência. Aquilo não aparentava ter a menor dúvida de que poderia abater o que desejava. Novamente na mira daquilo, Hélder fechou os olhos e esperou que o sofrimento não se prolongasse. Pelo menos podia sentir Dora com ele, e sabia que naquela escuridão as alianças douradas podiam ser vistas como faíscas resistindo às adversidades, dois brilhos unidos em um abraço, à espera do último ataque.
Hélder aumentou o aperto ao redor do corpo da esposa e ouviu os guinchos roucos balbuciados com dificuldades, como se a criatura esboçasse palavras. O noivo abriu os olhos e olhou para ela com cuidado, concentrando a audição para tentar agrupar os sons engasgados em algo inteligível, mas os balbucios se findaram, caindo em um clima sonolento assim como os olhos da cor de topázios. Aquilo começou a se mover para o lado de uma forma que não parecia voluntária, o olhar inócuo, refletindo a inércia de algo sem força para enfrentar a correnteza. Quando afundou, logo em seguida, deixou para trás apenas os últimos guinchos em forma de bolhas espocando na superfície e uma cauda peçonhenta sendo tragada para o fundo. Depois, não restava mais nada para ameaçar os noivos além da própria imensidão alagada.
- Dora! – Hélder a balançou de leve. – Querida!
A noiva olhou para ele como se tivesse acabado de acordar.
- Onde está? – Ela procurou em volta, temerosa.
- Ela afundou – falou o noivo, um tanto desconsertado. – Vem! – Trêmulo, ele agitou o braço debaixo d’água, trazendo com o outro a noiva que fazia o que podia para arrastar o peso do vestido branco pelo fluxo d’água. Não deixava de lembrar uma marcha nupcial, com a ressalva de que não havia um altar para onde caminhar. Tudo era uma homogeneidade negra e Hélder procurava por um ponto de referência, dispondo somente de uma voz ao longe, que ele percebeu ouvir depois do torpor do medo passar.
Os pés finalmente tocaram em um obstáculo e foi quase um choque ter contato com algo sólido. Os dedos se arrastaram pela grama submersa durante o engatinhar desajeitado pela margem, o vestido de noiva emergindo como um monstro levantando de um pântano. O rastejar encontrou seu fim no limite do alagamento. Hélder desabou ao lado da mulher, tomando fôlego.
- Querido? – murmurou Dora, com o lado do rosto colado na terra. Tinha saído da água, mas continuava sentindo o mundo flutuar de um lado para o outro. – Tudo bem? – ela perguntou. Porém, o marido não deu nenhuma resposta, seu peito subindo e descendo, exausto. A noiva sabia que era por sua causa. Com esforço, ela se apoiou nos braços e ficou sobre ele, sentindo o gostinho amargo que era arcar com aquele peso rendado que era seu vestido. Ela passou a mão pelo rosto do homem e sentiu a face dele cheia de protuberâncias ossudas e sulcos acentuados. Devia ter desconfiado. De algum modo, devia saber do veneno que o fazia ser praticamente outra pessoa depois que pegava no sono. – Amor, acorde! – Passou as mãos pelos cabelos curtos, esperando reação.
Ele se moveu rápido, os olhos abertos pouco visíveis, e ficou em silêncio, observando o que podia ser visto da mulher em meio à noite. Por um momento, Dora o esperou falar, com a apreensão apertada no pescoço como uma gargantilha de ferro.
- É você, Hélder? – perguntou ela, esperando ele respirar um minuto.
- Sim. Quem mais poderia ser? – o noivo falou e a resposta não parecia ser dirigida a um pesadelo confundido com a realidade. – Você está bem? – Ele levantou os braços para tocar nos ombros da esposa. Realmente, não parecia ser uma casca sonâmbula movida por vestígios de veneno.
- Estou. E você? Consegue se levantar? – Dora se ergueu sobre as sandálias e deu a mão para ele. Os dois se levantaram e deram alguns passos sobre a grama para saírem da beira da enchente. – Saulo! – gritou ela.
- Tive a impressão de ouvir a voz dele.
- Eu também. – A mulher cerrou a mão junto ao peito, o frio e a preocupação a oprimindo. – Saulo! – repetiu o chamado.
- Dora! – devolveu a noite, com voz masculina.
O casal parou, absorvendo o alívio que recebiam. Uma reação mais impetuosa veio primeiramente de Dora. Quase tropeçando, ela se lançou para frente, forçando a garganta no chamado ao irmão. Movendo-se às apalpadelas, olhou ao redor, com o noivo em seu encalço, e se voltou na direção em que seu próprio nome foi chamado.
Vencendo a barreira de escuridão, uma figura apareceu, indo ao seu encontro. O terno se camuflava com a noite, destacando o branco da camisa abaixo da gravata borboleta. As duas vestimentas se chocaram em um abraço encharcado com a água acumulada da chuva.
- Como você está? – Saulo avaliou a irmã e se virou para o outro. – E você?
- Estamos bem. – Hélder estendeu a mão para tocar no cunhado. – Ficamos preocupados quando você saiu atrás do Marlon.
- Sim... O garoto parece ter um parafuso a menos. A maioria correria daquela criatura, mas ele foi para cima.
- Vocês se encontraram com ela?
- Mais do que isso. Ele alvejou o bicho com tiros. Achei que seria nosso fim.
- E onde ele está?
Saulo se afastou e abriu caminho para a visão do jovem se aproximando de braços cruzados, hesitante, parecia avaliar se seria educado ou conveniente se unir ao grupo.
- Você está machucado? – perguntou Hélder.
- Perdi a arma do meu pai – falou o rapaz, ignorando a pergunta, as feições jamais se aliviando em uma expressão menos carrancuda. – Ele gostava tanto dela.
- Bem, o importante é que estamos bem e que a criatura morreu.
- Não. – Saulo se virou para o cunhado. – Não temos certeza. O moleque acertou alguns tiros e ela sumiu. Não a vimos mais.
- Mas nós a vimos – Hélder falou, fazendo os outros dois homens abrirem bem os olhos em surpresa. – Ela se preparou para nos atacar e afundou. Aquilo se foi.
Saulo se voltou para o alagamento.
- Definitivamente?
- Não podemos dizer. Ela simplesmente sumiu. Deve ter morrido.
Marlon passou por eles, virando de costas para os três e contemplando a enchente tomar a fazenda da família e desaparecer na noite. Muitas coisas tinham ido embora, e somente algumas ele tinha certeza de que não voltariam.
- Estamos aqui, Marlon – Hélder falou, fazendo o rapaz se virar. – Podemos passar por muitas dificuldades, mas com as pessoas certas do nosso lado podemos superar. Se aquilo voltar, estaremos aqui, com você. Pode contar com nosso apoio. – Ele olhou para a esposa e o cunhado, e os filhos de Salomão assentiram. – Se você aceitar nossa ajuda, claro.
O rapaz não falou nada, e pouco se moveu nos instantes seguintes. Parecia uma árvore incrustada nas terras da linhagem Queiroz, espreitando os descendentes do nome Sampaio. Mas não havia nenhuma hostilidade. O que se passava em sua mente era um mistério, assim como o que poderia sair das águas atrás dele.
- Vamos indo – ele disse, por fim, começando a andar e atravessando o pequeno grupo em frente. – Não vamos ficar expostos aqui a noite inteira. Se formos andando, podemos chegar a algum lugar conhecido, talvez um abrigo.
Os outros se entreolharam.
- Você que manda, garoto – Saulo disse e recebeu de Marlon um fulminante olhar que podia ser visto mesmo no escuro. Ele não deu importância e ficou um pouco parado, esperando o casal começar a andar.
- Algum problema? – Dora perguntou ao noivo que olhava, distraído, para a enchente.
- Não. – Hélder pegou a mão da mulher e viu a própria aliança entre os dedos, o brilho dourado o fazendo se lembrar do olhar bestial que se apagava entre a correnteza, um olhar que tinha deixado uma marca na sua carne e em seu sangue que ele não sabia se também sumiria algum dia. – Estamos seguros agora – ele disse, e, de mãos dadas com Dora, seguiu Marlon e Saulo pelos campos que terminavam, ao longe, em montanhas altas, ungidas por chuvas e segredos.
FIM
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Colaboração: Felipe Lundgreen