Noites de Caça - Parte II: Sangue
Novamente o desconhecido o acolheu quando acordou.
Hélder abriu os olhos e se deparou com as telhas acima, resplandecendo em um vermelho vivo pela luz do sol que também podia entrar para o recinto por buracos espalhados pelo telhado baixo, sustentado por ripas feitas de uma madeira não muito menos gasta e carcomida que as paredes em volta. Mesmo os quadros de santos pendurados se esforçavam para conferir alguma simpatia ao lugar.
Ele se debateu sobre o colchão, livrando-se do lençol puído e permeado de fiapos, e só então percebeu que estava apenas de cueca. As roupas estavam em uma cadeira ao lado, ainda um pouco úmidas. Tentou se por sentado e as dores musculares percorreram seu corpo como bichinhos agitados, convergindo para um corte em seu ombro, abaixo da clavícula, que parecia um traço de sangue seco na pele.
Com dificuldades, ele se levantou e começou a se vestir, atento ao ambiente. Parecia ter se passado um mês inteiro desde a última vez em que acordou em um quarto estranho. Dora estava do seu lado, era a casa dos pais dela e estavam animados para o casamento. As lembranças foram repousando na mente, formando imagens da noite anterior, entre as quais estava o cavalo, a subida íngreme e a queda no rio, mas estava difícil peneirar o que era real do que era um pesadelo.
Vestido, ele caminhou até a porta e a puxou, ouvindo as tábuas rasparem o piso de cimento. Deu os primeiros passos para fora do quarto e seguiu por uma direção que parecia promissora, atravessando a casa e chegando à cozinha. Mais além, estava a porta para o quintal. Hélder passou por ela e se viu em um alpendre com um fogão à lenha do lado, esquentando uma panela. Percorreu o olhar pelas roupas esvoaçando no varal e por pouco não percebeu o menininho com as costas nuas escoradas no batente, olhando para ele com expressão séria e interrogativa. Por um instante, os dois se encararam, sem saber que palavras proferir um para o outro, até que uma senhora com os cabelos escondidos sob um pano saiu de entre os lençóis e se aproximou.
- Bom dia, moço – ela disse, o olhando sem jeito. – Acordou cedo para quem dormiu agora, quase de manhã.
- Eu dormi já perto da manhã? Hoje?
- Sim. Não lembra?
- Para ser sincero, não.
- Dudu, vá chamar seu pai! – A mulher se virou para o garoto que, após uma última olhada para o homem ali, em pé, se afastou e correu pelo quintal sem qualquer contestação.
- De quê você se lembra?
- Eu estava caminhando à noite com umas pessoas e... – Hélder viu novamente a silhueta de Raimundo Queiroz suspensa acima, o afastamento dele e sentiu a sensação da queda livre. – Caí no rio. – Ele se encostou ao batente.
- Quer água? Alguma coisa?
- Não. Só quero saber como cheguei aqui.
- Venha... É melhor sentar. – Ela indicou uma cadeira na cozinha e Hélder se sentou à mesa. – Deve ter descansado pouco para quem andou tanto.
- Eu andei?
- Sim. Meu marido pode explicar melhor. Daqui a pouco ele chega. Por enquanto, vou servindo um cafezinho. – Ela pôs uma garrafa e um copo de vidro em frente ao visitante, que se serviu da bebida e se sentiu um pouco mais desperto ao beber o primeiro gole do líquido quente. Estava assoprando o café devagar, pensando em quanto de cafeína precisava para esclarecer os borrões de sua mente, quando um homem de chapéu e barra das calças suja de terra entrou e o cumprimentou.
- Bom dia, companheiro – ele falou, com um sorriso travesso no meio da barba desgrenhada. – Hora ruim para tomar banho de rio ontem, não?
- Olá. Sua mulher falou que você explicaria como eu vim parar aqui. Alguém me trouxe? Como me tiraram do rio?
- Ninguém o trouxe. – O homem se sentou e encarou o outro. – Você veio andando com as próprias pernas.
- Eu não entendo. Andando como?
- Como as pessoas geralmente andam, ora. Estava perto do amanhecer e eu ia para a lavoura quando vi você caminhando todo molhado. Vinha da direção do rio e parecia abalado. Balbuciava coisas. Quase achei que fosse um bêbado, mas cheguei perto e percebi que você não tinha hálito e estava sangrando. Perguntei se estava perdido e você falou coisas sem sentido.
- Como o quê?
- O diabo dos ossos – falou o menininho, perto da porta. Hélder se virou para ele, nem tinha percebido que ele tinha chegado com o pai. – Que o diabo dos ossos te salvou – falou, vendo o homem estranho ficar mais branco, como se tivesse tomado um tipo de tônico que congelava ao invés de café.
- Vem, Dudu. É conversa de adulto. – A mulher pegou na mão do filho e saiu com ele para o quintal.
- Eu falei isso mesmo?
- Mais ou menos. Dudu devia estar acordado e ouviu quando você chegou, mas ele não ficou assustado e você não devia estar em seu juízo perfeito. Tem certeza de que não bebeu?
- Tenho – disse Hélder, sabendo que não era a criança que deveria estar assustada. – Você não sabe o que eu daria para que fosse tudo mais um caso de bebedeira. Queria que minha queda no rio fosse uma ilusão.
- Então você caiu no rio? – O homem pareceu surpreso. – Eu pesco lá, às vezes. Para uma renda extra, sabe? Está um pouco perigoso por causa das enchentes.
- Caí e não foi perto daqui. Dora! Nossa... Estava esquecendo. Sumi a noite toda e ela deve estar preocupada. – Hélder olhou para o anfitrião. – Se não for abusar de sua bondade, gostaria de pedir mais um favor. Sou noivo de Dora Sampaio. A família dela tem um bar perto do centro da cidade chamado Minas de Salomão.
- Ah... Sei onde fica.
- Perfeito! Poderia ir lá e avisar que estou aqui. O irmão dela se chama Saulo. É só falar com ele.
- Claro! Vou lá agora mesmo. Chego rapidinho com meu cavalo. – O homem se levantou. – Se precisar de qualquer coisa pode pedir para minha mulher.
- Agradeço, mas isso é o que mais quero no momento.
- Não demoro. – O camponês se afastou e, com a urgência de quem prestava um socorro, saiu de casa antes que Hélder se lembrasse de perguntar seu nome.
Ele se levantou, deixando o copo e a garrafa na mesa, e caminhou para a porta. Abaixo do alpendre, a panela fervia no fogão a lenha, emanando seu cheiro. Continuou caminhando e pisou na terra úmida do quintal. A mulher estava estendendo o resto das roupas perto e, ao vê-lo, se aproximou com a bacia do lado.
- Está com fome? Posso fazer alguma coisa.
- Não, não. Estou bem – disse Hélder, lembrando que ainda não havia se olhado no espelho. Não fazia idéia do quão debilitado parecia. Tudo o que sabia era que estava dolorido e com a cabeça latejando. Contudo, não queria dar mais trabalho. – Eu só quero esperar minha família.
A mulher o olhou como se avaliasse se o homem estava sendo sincero.
- Qualquer coisa me chame.
- Pode deixar. Obrigado por tudo mesmo. Vocês me salvaram.
Ela se virou, com cor surgindo nas maçãs do rosto, e deixou o visitante à vontade para olhar a propriedade. À direita, ele podia ver a serra. Os picos irregulares se destacando contra as nuvens ainda pareciam imponentes. Por algum motivo, logo desviou a atenção e se voltou para as plantações que começavam alguns metros além dele. As fileiras verdes contornavam o relevo, paralelas mesmo nas curvas, formando uma paisagem bucólica e reconfortante.
Hélder cruzou os braços e andou alguns passos, distraído. Não demorou a ver o menino agachado não muito longe, empurrando um carrinho de madeira pelo chão regado com as últimas chuvas. Estava de costas, entretido com a brincadeira, e não percebeu o estranho o olhando e relembrando as palavras ditas mais cedo. “O diabo dos ossos te salvou”, havia falado, arrepiando o adulto. De repente, Hélder foi tomado pelo desejo de perguntar o que mais aquela criança teria ouvido dele, o que mais ele poderia falar que desse alguma luz sobre o que aconteceu, mas se conteve. Era errado interromper a brincadeira de um inocente para tocar em um assunto que ele mesmo temia.
Ele não deu mais nenhum passo. Abaixou a cabeça, de olhos fechados, e tentou por si só organizar os barrões que habitavam sua mente. Havia o cavalo, ele sabia. Também os dois irmãos Queiroz, donos de uma arrogância implacável, e um caminho difícil, uma trilha íngreme montanha acima. E havia a voz de Raimundo suspensa sobre ele, sumindo e o abandonando para a queda. Depois, algo o esperava. Hélder levou a mão ao peito, para o corte cicatrizando, e com o gesto viu o último relance de um rosto o olhando e o atacando com uma lâmina afiada. Estava prestes a ver novamente aqueles olhos quando braços o agarraram por trás. Ele se virou e foi envolvido por um abraço apertado, o rosto afundando em cabelos castanhos.
- Graças a Deus! – Dora se afastou e o olhou de cima a baixo. – Onde se meteu? Você sumiu.
- Como chegou aqui tão rápido?
- Eu estava virando a cidade de cabeça para baixo, procurando por você, quando recebi o telefonema de Saulo, que estava no bar com um homem que disse que você estava aqui. O que aconteceu?
- Também gostaria de saber. Só o que me lembro é de procurar por Ruivinho e depois rolar ribanceira abaixo para o rio.
- O quê? – Dora puxou os braços do noivo. – Vamos para o hospital agora.
- Calma! Eu estou bem. O dono dessa casa falou que cheguei andando. Aliás, preciso esperar ele chegar para agradecer.
- Podemos vir aqui depois. Amor, é sério, precisamos ver se não há algo de errado. Ninguém despenca em um rio e passa a noite desaparecido assim, sem sofrer alguma coisa. É perigoso.
- Eu sei – ele concordou. Ninguém sairia ileso, a não ser que tivesse ajuda. Hélder quis olhar para trás, mas o menino que falou de um diabo dos ossos tinha ido brincar em outro lugar.
A viagem de volta para casa foi abreviada graças à insistência de Hélder. O médico, no pronto-socorro, fez alguns exames e, constatando não haver nada de grave, dispensou o casal, passando apenas alguns comprimidos e analgésicos. Faltou somente dar um doce para que o noivo de Dora parasse de reclamar e se comportasse. Chegando à residência, ele correu para o banheiro, demorando-se sob o chuveiro onde observava a água escorrer por seu corpo em direção ao ralo. Finalmente limpeza! Finalmente alívio! Ele se sentia como se estivesse carregando o próprio peso em lama do rio. Depois que se despediram da família que o acolheu, tudo em que ele pensava era em um banho e uma cama. Não se lembrava de sair andando do rio, nem imaginava como tinha conseguido sair das águas, mas o abatimento e a moleza denunciavam uma noite em claro relativamente agitada.
Saindo do banheiro, vestiu uma roupa de dormir e foi para a cama, sendo despertado de um cochilo pela noiva.
- Sei que está cansado, mas não é bom dormir sem comer alguma coisa. – O tom de voz dela indicava ainda algum grau de preocupação. Hélder se ajeitou, apoiando as costas nos travesseiros, e recebeu a bandeja com fatias de bolo e suco. – Estive pensando uma coisa – ela falou, sentando na beira da cama. – O que acha de adiarmos a cerimônia?
- Adiar o casamento? – Ele interrompeu a refeição, a dificuldade em engolir adiando o contentamento da fome. – Sério?
- Eu ponderei muito sobre isso. Tem as chuvas e agora seu acidente. Eu não sei...
- De jeito nenhum, querida. Trabalhamos muito para que tudo ocorresse dentro do previsto. Você trabalhou muito.
- Eu não quero forçar sua saúde e acabar machucando você.
- Não estará forçando, eu juro. Ainda sou capaz de por um terno e ficar em pé no altar. Vai ser tudo perfeito, você vai ver.
- Eu confio na sua palavra, mas algumas coisas vão ter que mudar. – Dora pôs a mão no ombro de Hélder e ele sentiu o corte pinicar. Parecia mais profundo do que imaginava.
- Como o quê?
- Você vai ficar quietinho até a cerimônia. Nada de ficar saindo ou se esforçando. A ordem é descansar. Quero você em ponto de bala naquele terno.
- Não vai precisar de mim para ajudar em alguma coisa?
- Se estiver falando do casamento, está tudo bem. Falta menos de uma semana e, além do mais, tenho meus irmãos. Está tudo nos conformes.
- É... Tenho que admitir que você sempre foi mais desenrola do que eu. Sei que vai caprichar. O que me resta é seguir sua ordem.
- Obrigada por entender. – Ela se curvou e beijou a testa do noivo. – Agora descansa bastante – Dora terminou, e Hélder não via motivos para contrariá-la. Ele devorou o lanche como se tivesse saído de um jejum de dias e se deitou com certo esforço para relaxar. Não havia dúvidas de que estava exausto, mas uma tensão o impedia de se render ao sono de imediato. A garantia de Dora de que poderia cuidar do planejamento do casamento sozinha não o dispensava de pensar na noite na serra, na água o carregando e na sombra sobre o cavalo se aproximando e o apunhalando. Na amálgama de sensações onde ele caiu depois, os olhos o observando se uniam à voz dos Queiroz, formando uma só figura e um só terror.
Hélder saltou em um impulso, a dor em seu ombro ardendo como se o golpe tivesse sido poucos segundos antes. Olhou em volta, procurando a encosta da montanha e o corpo volumoso do cavalo, e viu que não estava morrendo, arrastado pela correnteza, e sim no quarto de sua nova casa.
- Dora? – chamou ele, ajoelhado sobre a cama. Chegou a duvidar que ela atendesse, mas a porta logo abriu.
- O que foi? – Ela se aproximou. – Teve um pesadelo?
- Tive. – Hélder voltou a se deitar. – Quanto tempo em dormi?
- Desde ontem. Você comeu o lanche e capotou. Até deixei o quarto só para você para ficar melhor.
- Nossa! Tanto tempo?
- Nem tanto. O que queria ontem à noite, me desobedecendo?
Ele olhou para ela, confuso.
- Como assim?
- De madrugada, levantei e surpreendi você andando pela casa como uma barata tonta. O que procurava?
Hélder esperou ela sorrir, denunciando a brincadeira.
- Está falando sério?
- Claro! Até perguntei o que queria e você falou algo sobre estar cansado de ficar deitado.
- Eu não me lembro. – Ele levou as mãos à cabeça e olhou pela janela, não sabendo que horas eram ou se tinha realmente levantado. Não tinha certeza de mais nada.
- Está com dor de cabeça, amor?
- Um pouco. – Hélder parou um momento. – Para falar a verdade, bastante.
- Quer que eu cancele sua visita hoje?
- Visita?
- Minha mãe e meus irmãos estão vindo ver você. Estavam preocupados. Não vá me dizer que não se lembra deles.
- Não! Não é isso. É que... Bom, o que mais eu falei ontem?
- Só falou que estava cansado de ficar deitado. Só isso.
- Não falei nada sobre um diabo dos ossos?
- Diabo dos ossos? – Dora riu. – De onde tirou isso?
- De lugar nenhum. Foi só uma coisa que ouvi. Esqueça. É bobagem.
- Você está abalado. Não é para menos depois do que passou.
- Você está certa. – Hélder admitiu com um suspiro. – Traga sua família aqui. Preciso ver mais pessoas. Vai me fazer bem.
- Eles vão vir depois do almoço. Quero ver você mais corado para a chegada deles, por isso se alimente direito.
Apetite, pelo menos, Hélder podia garantir. Ele insistiu para comer na mesa da cozinha, junto com a futura esposa, e ficou surpreso por não ter vomitado boa parte da comida que Dora tinha preparado. Ainda tinha que lidar com alguns sintomas, como a moleza no corpo, as pontadas de dor no ombro e as dores de cabeça. Contudo, tinha esperança que a visita da família da noiva o animasse.
Eles chegaram ao início da tarde. Hélder esperou sentado no sofá e só se levantou para cumprimentá-los com um abraço. Dirce o presenteou com uma caixa de doces caseiros e ele fez questão de provar um ali mesmo. Dora não pareceu se importar nenhum pouco. Devia pensar que os doces da mãe não tinham nenhum contra-indicativo. Todos sentaram na sala, ao redor da mesinha com xícaras de café servido pela noiva.
- Continua prendada, maninha – disse Saulo, tomando o café em goles rápidos. – Bom saber que não desaprendeu nada nesses anos na cidade grande.
- Eu estava trabalhando, Saulo – disse Dora. Normalmente tinha uma resposta pronta para o irmão. Hélder poderia apostar com qualquer um que ela tinha o dissuadido de levar uma garrafa do bar antes da visita.
- Bom, está boa para casar. E você nos deu um susto – falou ele, tirando Hélder da distração. – Uma noite inteira fora. É complicado, rapaz. Em outras circunstâncias estaria bem encrencado. – Saulo sorriu, embora ninguém o tenha acompanhado. – Mas sabemos que teve problemas sérios. Até os Queiroz tiveram dificuldades.
- Eles tiveram? O que disseram? – Hélder se interessou. – Você tem notícias?
- Assim como você, eles passaram a noite desaparecidos. Ontem, quando chegaram, disseram que os caminhos pelas montanhas estavam perigosos e irreconhecíveis por causa dos desmoronamentos, por isso passaram maior parte do tempo perdidos – disse Bia, e ela olhou para a mãe e os irmãos. – Falaram também que perderam você de vista e não encontraram mais.
Hélder se sentiu fulminado pelos olhares em volta, todos esperando uma confirmação. Por um momento, se sentiu transportado para os instantes que antecederam o primeiro almoço em família, aquele momento tenso em que rostos se voltaram para ele, ansiando por saber de sua vida, e ele tendo de pesar meticulosamente as palavras para não passar uma má impressão e estragar tudo. Quase olhou para trás, esperando ver o retrato de Salomão Sampaio com sua expressão fria de quem aguardava uma resposta.
- Sim. O cavalo se assustou por alguma razão e me empurrou em um desfiladeiro, me fazendo cair no rio – disse ele, por alto, excluindo voluntariamente a porte da fracassada tentativa de resgate na beira do desfiladeiro e a desistência dos irmãos Queiroz. – Sou um alpinista e aventureiro, não é? Acho que sou qualificado para sobreviver uma noite no mato.
- Vocês perderam o contato totalmente? – perguntou Lorena, e Hélder viu o que realmente estava em questão. Bastava um aceno dele para que a fissura entre as duas famílias se alargasse e os rancores cicatrizados voltassem à tona. Dora não merecia isso em plena semana do seu casamento. O momento não poderia ser menos oportuno.
- É. Eu rolei pelo rio por um tempo – disse Hélder, esperando ser convincente e minimizar a culpa dos dois irmãos, uma culpa que ele mesmo trabalhava com afinco para ignorar. – Não nos encontramos desde então.
- Sinto muito por colocar você nisso – desculpou-se Saulo. – Subestimei a idiotice daqueles dois. Não achei que se embrenhariam no mato assim, desse jeito.
- Pois é. Mas vamos falar de outra coisa. E o Ruivinho? O que aconteceu com ele?
- Ai, nem me fale. Ontem passei o dia procurando. Saia de vez em quando do bar para me inteirar das buscas e nada. Ele não era só um investimento. Estava me apegando ao bicho.
- Não vamos lamentar por cavalos com o noivo de sua irmã são e salvo – reclamou Dirce.
- Verdade – concordou Dora. – Não é hora para clima de enterro. Hélder está aqui. É um momento de alegria – ela disse. Saulo fez cara de desânimo, enquanto o noivo ficava feliz por poder mudar de assunto.
A malfadada noite ficou para trás na conversa que durou até depois do pôr-do-sol. Os Sampaio se despediram no comecinho da noite, deixando o casal sozinho na privacidade do lar. Hélder praticamente não saiu do quarto no tempo que se seguiu, os braços cruzados em frente à janela, olhando para os contornos aparentemente impenetráveis das montanhas. O modo com que estava compenetrado o fazia pensar se ele não estaria incompleto, se alguma parte dele não teria voltado para casa.
- Pensando em quê? – Dora o abraçou por trás. – Não pensa em voltar, não é?
- Voltar? Para onde?
- Sei lá... Você não trouxe o cavalo de volta. Talvez tivesse um senso de dívida e quisesse voltar a procurar por ele.
- Você sempre tentando adivinhar o que se passa na minha cabeça. – Hélder se virou. – Não! Vou ficar longe de mais encrenca e pensar só no casamento. Está bom de aventuras, pelo menos por esses dias – ele completou, ainda que não se achasse inteiramente livre de pendências. Pensou no que tinha falado na sala, querendo diminuir a responsabilidade dos Queiroz, e percebeu que ainda precisava de muito para se convencer de que tudo não poderia ser evitado se os outros quisessem. Não! Era hora de seguir as próprias palavras e se concentrar no casamento. – Posso pedir uma coisa?
- Diga.
- Por que não deixa o outro quarto e dorme aqui comigo hoje?
- Que proposta ousada! – Dora brincou. – Minha mãe e meu irmão acabaram de sair, sabia?
- Tenho chances se pedir com mais jeitinho?
- Acha que tem menos pesadelos se eu estiver aqui?
- Não sei – falou Hélder, mais sério. – Mas ficarei melhor.
- Então estou disposta a aceitar sua proposta, apesar de não estarmos oficialmente casados. – Dora sorriu e puxou o braço do noivo, o fazendo deitar na cama. – Dessa forma não tem como algum mal atingir você. – Ela o abraçou.
- Eu precisava disso. – O noivo fechou os olhos. Estava sendo completamente sincero.
Pela manhã, Hélder não se surpreendeu ao perceber que Dora já tinha levantado. Calmamente, ele se livrou dos lençóis e se virou para sentar na beira da cama. Pôs os pés no piso e imediatamente se alertou com a nova sensação. Olhou para baixo, para confirmar o que pinicava sua pele, e se deparou com a areia espalhada pelo assoalho. Seus chinelos estavam do lado, juntos e sujos de uma lama que secava e liberava o restante da terra. Ele olhou para os lados. Não se recordava de entrar em casa com os pés sujos e sua mulher devia estar furiosa. Hélder se levantou e, descalço, seguiu a trilha de pegadas praticamente apagadas que o levou à porta.
- Dora? – Ele foi à cozinha, deu meia-volta e caminhou para a sala, atento a qualquer som, mas não viu sinal da noiva e de mais ninguém. Certamente, ela teria ido para mais uma das inúmeras provas de vestido. A boa notícia é que ele poderia limpar a terra antes que ela percebesse. Voltou à cozinha e tomou seu café, depois pegou a pá e a vassoura e se agachou para começar a reunir a areia.
Com o piso limpinho novamente, se levantou e caminhou para o quintal. Despejou o conteúdo da pá no lixeiro, no canto, e se virou para contemplar as árvores altas, farfalhando suas folhas como se pudessem se mover por conta própria. Abaixou a cabeça e encarou a terra, imaginando se daquela área teria saído a sujeira de seus chinelos. Poderia fazer muitas outras perguntas sobre aquilo e continuaria sem entender. Nem sabia ainda como havia chegado àquela casa, onde acordou, ou o que procurava pela casa duas noites antes, e tudo estava sendo cansativo. A vida é muito curta, ele pensou, para ficar sendo sucessivamente apagada por amnésias inexplicáveis.
Ele respirou o ar puro e, em seguida, se virou para entrar. Ao atravessar a entrada para a cozinha, ouviu a porta de fora batendo. Saiu pelo corredor e viu sua noiva segurando a maçaneta, de cabeça baixa.
- Onde foi tão cedo, amor?
- Saí com as minhas irmãs. – Dora se virou.
- Nossa! Você está pálida! Aconteceu alguma coisa?
- Uma morte.
- Como é?
- Raimundo Queiroz foi encontrado morte hoje. Eu soube na rua – disse Dora, calando-se durante uma curta pausa.
- Do que você está falando?
- Eu também demorei um pouco para acreditar. Ele saiu no meio da noite para ver alguns animais que estavam agitados e sumiu. Hoje cedinho, um trabalhador encontrou o corpo na beira de uma estrada, perto da caminhonete. Ele estava... – Ela suspirou. – Estava todo perfurado por cortes profundos.
Hélder cambaleou para o lado e sentou no sofá involuntariamente. Parecia que tinha levado um soco ou tomado uma dose especialmente forte do conhaque de Saulo.
- Amor, você está bem? – Dora se agachou e encarou o rosto do noivo, vendo que ele a tinha superado em palidez.
- Estou. É que estive com ele outro dia e receber essa notícia...
- Sim... Até eu que não sou muito chegada àquela gente fiquei em choque.
- Preciso... Preciso ver ele. E Jonas. Já tem velório?
- Não. – Dora foi enfática. – Não é uma boa idéia. Já devem estar sabendo que você se casará comigo. Eles não se dão bem conosco e é bom evitar o clima pesado.
Aquilo foi como um corte de gelo na carne de Hélder. Ele queria argumentar que com ele seria diferente, mas tinha experimentado do rancor entre as famílias com o tratamento que recebeu dos irmãos durante a excursão na serra.
- Tudo bem. Pegaram o assassino?
- Não há nenhuma pista dele ainda, mas estão investigando. Enquanto isso, você vai ficar em casa, descansando. Está tudo muito confuso lá fora. Quando a poeira baixar, talvez eu mande uma coroa de flores para a família.
- Não tenho muitas alternativas, não é?
- Não mesmo. Acabou de ficar lívido e por pouco não desmaiou. Isso é coisa de quem está saudável? – disse Dora, se levantando e ignorando o olhar do companheiro que se perguntava se ela realmente tinha noção do que se passava dentro dele, se via a dúvida e o medo por trás do olhar abatido.
Ele preferiu continuar o dia sem tocar no assunto. À tarde, fez a esposa sair dizendo que precisava de mais analgésicos – o que não era inteiramente uma mentira – e, sozinho, pegou o celular, deslizando o dedo pela agenda.
- Alô? É você, Hélder?
- Sim, Saulo. Cara, que história é essa do Raimundo?
- Então já sabe? Bom, ele foi encontrado morto hoje. Está todo mundo abalado por aqui. Tudo bem que ele era rabugento e um pé no saco, mas o que aconteceu foi brutal.
- É... Quem faria isso? – Hélder perguntou de maneira vazia. – Parece que não encontraram o assassino, não é? Dora não soube dizer e ela não quer que eu saia.
- Ela está muito protetora ultimamente. Acho que ela deve ter razão, mas você pode saber mais pela internet. A conexão está funcionando normalmente em sua casa?
- Está.
- Pois bem, há um portal de notícias da cidade. Chama-se Fórum Santa Regina. Publicaram uma matéria sobre o caso.
Sem pestanejar, Hélder foi até a cômoda e levantou o notebook sem largar o celular. Levou o aparelho para a cama, o abriu e acessou o site.
- Alô? Você já está vendo?
- Sim. Estou vendo agora.
- Ótimo. Vou continuar o trabalho aqui – disse Saulo. – Melhoras, amigo.
- Até logo – respondeu o cunhado, deixando o telefone de lado e se concentrando na tela. Não foi difícil encontrar a publicação. “Raimundo Queiroz, 46 anos, é encontrado morto em sua propriedade”, dizia a manchete, encabeçando a página. Hélder não leu imediatamente o texto abaixo. Não conseguia desviar das fotos que acompanhavam a matéria. A primeira delas mostrava a caminhonete abandonada em uma estrada deserta parecida com aquela em que ele dirigiu em busca de Ruivinho, onde encontrou o jovem que o levou aos irmãos Queiroz.
A foto devia ter sido tirada logo que chegaram ao local. Não havia amanhecido e uma luz fraca iluminava o ambiente, escondendo um pouco a cadeia de montanhas ao fundo. A imagem seguinte mostrava a morte em forma de um corpo largado no chão. Estava de bruços, de braços abertos, e um efeito ofuscava a maior parte de Raimundo, amortecendo o horror do que era mostrado. Mas ainda era possível ver o vermelho do sangue em meio ao verde da grama. Ainda era possível estremecer.
Atado dos pés à cabeça por uma paralisia febril, Hélder só foi ler a matéria depois de um bom tempo. Estava escrito o quanto o latifundiário era conhecido na região, sua importância na economia local, e mostrava o depoimento do camponês que encontrou o corpo. Como era de se esperar, leu que não havia nenhum sinal do assassino, nem pegada ou digital. Nada que denunciasse o autor daquela atrocidade. Parecia que o criminoso tinha simplesmente se materializado, cumprido a tarefa maléfica e sumido como fumaça. Talvez não tenha sido um assassino, não um assassino comum.
O pensamento foi logo rechaçado. Porém, quase que alheios a consciência de Hélder, seus dedos percorreram o teclado e ele se viu digitado no site de busca. “Diabo dos ossos”, completou, apertando cada letra cuidadosamente. Não havia nada de familiar. Apareceram resultados sobre satanismo e ossos separadamente, sem mostrar nenhuma matéria sobre algo que ele poderia diretamente relacionar com o que viu naquela trilha. Chegou a digitar “Santa Regina” junto, mas nada demais apareceu, e a frustração o fez refletir sobre o que esperava – ou queria – encontrar. Precisava esclarecer as lacunas e entender o que se passava em sua mente.
Antes, para ele, a noite nas montanhas acabava na queda nas águas do rio. No entanto, o choque com a morte fez algo vir à tona com um pouco mais de clareza, apesar de toda a confusão e de toda a turbulência em suas lembranças. Era o rosto que achava ser somente uma alucinação, uma face que representava o abandono e o ódio de quem não temeria usar uma lâmina se quisesse vê-lo longe. Hélder levou a mão ao ombro. “Ele mereceu.”
- Amor, o que faz no escuro? – Dora acendeu a luz do quarto e o homem piscou, desanuviando a mente. Olhou pela janela e viu a escuridão. Não tinha notado a noite chegar. – O que estava fazendo?
Hélder olhou para a tela e percebeu que estava prestes a fechar as abas, mas viu que não precisava esconder o que estava olhando, principalmente a notícia.
- Estava lendo sobre a morte de Raimundo – disse ele, fechando a página sobre caveiras e lendas de demônios.
- Alguma novidade? – Ela se aproximou, ainda segurando a sacola da farmácia.
- Nenhuma, infelizmente. – Hélder olhou para a noiva. – Querida, você viveu maior parte de sua vida aqui. Não faz idéia do que possa ter acontecido?
- Você sabe a relação que eles têm com minha família, e há outras pessoas que se queixam dos Queiroz também. Mas matar barbaramente? É uma cidade pacífica. Assassinato dessa forma é novidade.
- Novidade como a chegada de um estrangeiro – Hélder falou baixinho, nada mais que um sussurro que Dora ignorou. – Deve ter algo diferente. Quem fez isso deve estar tomado por... – Ele parou.
- Tomado pelo quê?
- Não sei... Drogas? Bom, por falar nisso, vejo que trouxe meus comprimidos. Eu estava precisando. Também preciso de uma ducha.
- Enquanto toma banho, vou preparando o jantar. – Dora trocou a sacola de mão e se afastou. Hélder fechou o notebook, o pôs sobre a cômoda e se dirigiu ao banheiro, onde ficou alguns instantes observando a água cair e encharcar o piso branco. Não se importou com o frio: a lembrança de desejar a morte quando estava afundando no rio o aqueceu e resplandeceu como uma centelha. Não era difícil fazer uma associação, mesmo que sutil, entre tudo o que o perturbava, como andar sem se lembrar de nada, os ossos plantados por um caminho desconhecido e Jonas. Ele tinha medo daquele lugar, do que aquilo poderia significar.
- Não! – disse Hélder, esfregando o rosto com ímpeto. – Não há demônios naquele lugar. Não posso estar envolvido nisso! – Ele parou de repente e apurou os ouvidos. Dora devia estar na cozinha e não tinha escutado. Ninguém tinha. Apenas ele. “Vou tomar esses comprimidos”, pensou, mantendo os lábios cerrados e aumentando o fluxo do chuveiro, a água caindo sobre sua cabeça como se estivesse sob uma cascata. “Vou jantar e deitar com minha mulher, depois dormir um bom sono. Não posso me deixar levar por isso. Não sou louco. Ou assassino”. O que repetia mentalmente era quase uma oração. Se algo ouviu seu desejo no rio, talvez ouvisse uma segunda vez.
Não demorou a dormir naquela noite. Deitou-se, após o jantar, e contou carneirinhos, cavalinhos e tudo o que foi possível para se distrair até o sono chegar. Quando este chegou, foi profundo, calmo, e o fez perder a noção de quanto tempo havia passado antes que percebesse que Dora não estava mais entre seus braços. Por outro lado, sentia um volume atrás, comprimindo-se contra suas costas. Ele se virou e estendeu o braço, mas não encontrou outro braço, cabeça ou perna, apenas um tórax quadrado e macio. Hélder abriu os olhos e se ergueu, alarmado. Apalpou o volume de mansinho e logo soube o que era. Levantou-se e a visão distinguiu o sofá, onde estava deitado, e o resto da sala sob a luz fosca que saia do corredor. “De novo, não.”
Ele tateou as paredes, ainda pouco familiar com o ambiente, e encontrou o interruptor. Piscou ofuscado ao acender a luz e deu passos desnorteados. Poderia se questionar como havia ido parar ali, se não estivesse cansado de se fazer perguntas. Andou devagar até a outra ponta da sala e pegou a maçaneta, uma curiosidade repentina e ferrenha o impulsionando pelo recinto. Girou o metal e a porta abriu, sem resistência. Estava destrancada, e se procurasse seus chinelos, teria uma grande chance de encontrá-los sujos de terra. O tremor que sentiu não foi resultado somente do vento frio da madrugada que soprou em sua pele.
- Dora! – Ele se virou. – Amor, por favor... – Entrou no quarto e viu a noiva bem enrolada com os lençóis, dormindo. – Acorda! – Hélder a sacudiu e a mulher abriu os olhos.
- Querido? – Ela se voltou para ele. – O que aconteceu?
- Você me viu levantar e sair de casa?
- Levantar e sair de casa? – perguntou Dora, confusa, erguendo-se em seguida para procurar por seu relógio de pulso no criado mudo e ver as horas. – Como assim?
- Eu me levantei e saí. Acho que fui lá fora.
- Foi lá fora fazer o quê a essa hora?
- Não gosto nem de pensar.
- Calma! Por que não deita de novo?
- Não consigo. – Hélder se afastou, passando a mão pelos cabelos. Deu um suspiro forte e saiu para o corredor, caminhando até a mesa da cozinha e puxando uma cadeira para se sentar. Dora, que o tinha acompanhado pela casa, pegou um copo grande e encheu de água, o oferecendo para o noivo que já tinha se levantado, agitado e tenso.
- Toma! Você precisa se acalmar ou vai acabar caindo duro no chão.
Hélder virou o copo, bebendo feito um pedinte de uma terra árida.
- Alguém... – Respirou fundo, como se estivesse se recuperando de um mergulho. – Alguém morreu?
- Onde?
- Em algum lugar.
- Do que está falando? – Dora fez o noivo sentar na cadeira e começou uma massagem.
- Nada. Eu é que não estou bem.
- Quer um café? Já está amanhecendo mesmo.
- Quero, por favor.
- Vou preparar. Fique quietinho. – Dora deu um beijo nos cabelos de Hélder e se afastou, vendo o companheiro permanecer sentado à mesa, de cabeça baixa e com uma postura esmorecida. Ele tomou o café calado e assim continuou até que o dia ficasse claro. Foi ao quarto, pegou o notebook e o levou à cozinha, o ligando para monitorar os portais de notícias da região. A mulher, por sua vez, trocou de roupa e foi lavar a louça restante do jantar, atenta ao noivo vidrado na tela. De repente, viu Hélder arregalar os olhos e empalidecer com a velocidade de um invertebrado marinho com poderes de mimetismo.
- O que está vendo? – Ela enxugou as mãos e deu a volta na mesa, se deparando com a recém publicada matéria do Fórum Santa Regina e sua manchete em negrito: “Jonas Queiroz é encontrado morto em sua própria residência”. Dora desceu o olhar e viu as mãos trêmulas de Hélder sobre o teclado.
- Com o irmão assassinado no dia anterior, Jonas estava em sua casa quando ouviu um barulho nas intermediações, no meio da noite, e saiu para investigar – disse ele, lendo por alto a notícia. – Esposa teria estranhado a demora e saído para chamar o marido, encontrando o corpo perfurando por ferimentos semelhantes a facadas.
- Hélder, querido...
- Ela correu para proteger o filho pequeno, que estava dormindo no berço, e chamou a polícia – o noivo continuou, engasgando com a tensão.
- Chega! – Ela fechou o notebook sem pedir licença, interrompendo a contemplação doentia de Hélder. – Isso está deixando você fora de si! Olhe para si mesmo. Não parece normal. – Ela andou com passos firmes pelo corredor. – De hoje em diante esse computador vai ficar confiscado até segunda ordem.
- Você não quer que eu saia, e agora não quer que eu me informe. – Hélder a acompanhou. – Sinceramente, não conhecia esse seu fetiche de se comportar como minha mãe.
- Eu não precisaria ser chata se você não estivesse em frangalhos. – Dora se agachou, pôs o aparelho em uma gaveta e se virou para o noivo. – Eu quero que você entenda minha situação, amor. Estamos praticamente na véspera do nosso casamento e você está assim. Nunca vi você tão emotivo e nervoso – ela disse, e o homem parado em sua frente, de ombros caídos, também viu algo novo nela, uma insegurança que ele não conhecia.
- Desculpa – disse. – Eu entendo você, querida, e também quero que tudo dê certo.
- Tem a ver com aquela noite, não tem?
Hélder olhou nos olhos da mulher.
- Na serra?
- Sim. Você deve estar com transtorno pós-traumático ou algo assim.
Ele passou a mão pela nuca e se afastou devagar, saindo do quarto.
- Você acha?
- Dá para ver que está abalado. – Ela segurou a mão dele, o interceptando perto da cozinha. – Ei... O que mais posso fazer para ajudar? Quer sair um pouco?
- Talvez mais tarde. Preciso esfriar a cabeça e assimilar tudo para encarar o mundo lá fora.
- Vou dar algum espaço. – Ela soltou a mão como um símbolo do que falava. – Não quero que se sinta sufocado, mas estarei por perto se precisar. - Dora recuou alguns passos. – Não vá surtar, por favor.
- Vou ficar bem. – Hélder sorriu, avançando na mesma direção que Dora, mas se afastando logo em seguida. Saiu para o quintal e respirou fundo, inspirando o ar frio e limpo que soprava do bosque.
Caminhou para as árvores e sentou em uma raiz, escorando as costas contra o tronco, enquanto a luz solar atravessava as folhas entre os galhos e atingia sua face. Soube logo que viu a primeira foto mostrada pela namorada que aquela propriedade era especial, que era o lugar ideal para construir um lar. Pena que ele estava provando ser o maior defeito daquele jardim. A casa estava mobiliada, reformada e pronta para abrigar a felicidade, mas o dono estremecia por dentro, sentindo-se uma ameaça pronta para eclodir. Queria desesperadamente estar enganado, queria acreditar que não estava contaminado por algo tenebroso, mas nada indicava o contrário.
- Hélder! – Seu nome foi chamado. Ele se virou e viu a noiva o procurando entre o verde da paisagem. – Tem uma visita para você – falou ela, quando o localizou.
Ele se levantou. O tom de Dora indicava de algum modo exclusividade, e ele não imaginava quem iria visitá-los para ver apenas o noivo e não o casal. Hélder acompanhou a mulher pela casa e, ao chegar à sala, viu um homem bem vestido, segurando uma maleta de couro marrom.
- Senhor Hélder Fernandes Filho?
- Sim, sou eu. – Ele se aproximou.
- Bom dia. Queira assinar aqui, por gentileza. – O visitante entendeu um papel e tirou uma caneta do bolso. Hélder rabiscou o próprio nome e permaneceu com um envelope. – Obrigado. Tenham um bom dia. Senhora... – O estranho cumprimentou Dora que o acompanhou até a porta.
- O que ele entregou, querido? – perguntou ela, depois que o homem saiu.
- Uma intimação – falou Hélder, com uma resignação cortante. Mais um pouco e era possível sentir sua pele gelando à distância. – Tenho que ir depor na delegacia.
- Depoimento? – Ela chegou mais perto.
- Sobre as duas mortes. – Ele olhou para a noiva, procurando por alguma surpresa ou susto, mas vendo apenas uma expressão leve de interesse.
- Você esteve com os dois naquela noite. Devem achar que você sabe de alguma coisa.
- É... Pode ser isso.
- Quando você tem que ir?
- Hoje.
- Nossa... Está pronto?
- Não me lembro de ouvir algo que possa realmente ser útil – falou ele, pensando se a polícia aceitaria como indício uma pilha de ossos de animais supostamente sacrificados em ritual satânico. Nem todo mundo acreditava em demônios, mas ele estava começando a creditar. – Mesmo não sabendo no que posso ajudar, farei o que puder. – Ele se virou para Dora e piscou. – De qualquer modo, estávamos falando em sair, não é? Surgiu a oportunidade. – Hélder deu um sorriso pouco convincente e torceu, silenciosamente, para não vacilar com sua intenção nobre de colaborar no que fosse possível.
De frente para a delegacia, horas depois, a coragem permanecia, apesar de parecer uma canoa velha e mal feita, ameaçando se desmanchar a cada movimento. Ele caminhou fazendo esforço para não encarar policiais e servidores, comprometendo-se e piorando a situação antes de abrir a boca. O ar-condicionado da sala do delegado não colaborava para manter uma postura estável. Hélder mexia as mãos, de vez em quando tentado a cruzar os braços para afastar o frio e disfarçar os tremeliques, e tinha que se lembrar a cada instante de não desviar o olhar do delegado para as persianas em volta, enquanto conversavam e a escrivã tomava nota.
Ele contou minuciosamente como havia sido o único encontro com os dois irmãos, na procura do cavalo do cunhado, e como não ouviu nada que indicasse algum problema que resultasse nos crimes, a não ser uma menção sutil à velha inimizade que tinham com os Sampaio, omitindo estrategicamente o mal estar entre eles quando descobriram que ele era noivo de Dora. Os ossos foram outro elemento que ele mencionou por alto, referindo-se a eles como uma parte do ambiente não mais importante que pedras e árvores. No fim, depois que ele terminou o relato dizendo que acordou na casa de uma família desconhecida, o delegado o dispensou e ele saiu relativamente leve. Encontrou com a mulher do lado de fora da sala e se perguntou se ela via o alívio e a surpresa dele por não estar algemado.
- E então? O que o delegado queria com toda essa urgência? – perguntou Dora, conduzindo o carro de volta para casa, enquanto Hélder olhava pela janela a paisagem urbana da pequena cidade.
- Foi o que você falou mais cedo. Acharam que eu poderia saber de algo por ter estado sozinho com os dois naquela noite, na serra – respondeu ele. – O delegado mencionou nosso casamento. Devia saber que a cerimônia é daqui a dois dias e resolveu me chamar logo.
- Que bom que ele se adiantou. Se tivesse alguma complicação, poderíamos ver antes da festa – Dora falou, e o noivo se perguntou que tipo de complicação ela estaria se referindo. O depoimento foi o primeiro efeito prático e direto dos homicídios em sua rotina, excetuando sua fragilidade psicológica propriamente dita, e por mais que ele encarasse a expressão impassível no rosto redondo e papudo do delegado, não se via sendo tratado como um forte suspeito, como alguém que estava na iminência de ter de lidar com processos criminais. No fundo, talvez, ainda se negasse a assumir sua ligação àquele mundo que viu nas manchetes do Fórum Santa Regina.
Em casa, ficaram os dois sentados ao redor da mesa, degustando distraidamente o jantar quente nos pratos de vidro.
- Você ainda gosta de macarrão na sopa?
Hélder levantou o olhar.
- Gosto. Por quê?
- Porque você está diferente. Aliás, desde que encontrei você naquela casa que você parece um pouco mudado.
- Deve ser o clima – falou ele. Não tinha a menor pretensão de conseguir convencer alguém. – Estou em uma cidade nova. Isso acontece, às vezes.
- Também estou nervosa com o casamento – ela falou.
- É... Sempre falamos para não ficarmos nervosos nas vésperas, mas é difícil evitar.
- Só não vá inventar de fugir, está bem? Não me faça correr atrás de você com véu e tudo.
Hélder sorriu. O bom humor de Dora conseguia arrancar um sorriso dele como poucas coisas conseguiam.
- Posso pedir uma coisa? – falou ele, de repente mais sério.
- Qualquer coisa.
- Tranque as portas hoje.
- Trancar as portas? Fazemos isso toda noite, querido.
- Sim, mas dessa vez esconda as chaves em um lugar que eu não veja.
A mulher o olhou fixamente por um momento.
- Entendo.
- Entende?
- Sim. Você tem andado sonâmbulo e tem medo de sair de casa, principalmente agora, com um assassino à solta.
- É... Exatamente – disse Hélder. A mulher não estava tão longe da verdade.
- Pode deixar comigo, amor. – Dora esticou o braço e tocou na mão dele. – Faço qualquer coisa para você ficar melhor – disse, cumprindo o prometido após o jantar.
Ela abriu a porta do quarto e olhou para o noivo deitado na cama.
- Advinha onde escondi as chaves.
- Nem desconfio.
- Perfeito. – Ela pôs as mãos no colchão e subiu, engatinhando para ele. – Gosta de brincadeirinhas de esconder chaves?
- Digamos que um pouco. A propósito, falta a do quarto.
- Então fecha os olhos.
Hélder fechou e ouviu a noiva se afastar. Depois, sentiu lábios macios se pressionarem contra sua boca.
- Chaves escondidas. Melhor?
- Bem melhor. – Ele abriu os olhos e fitou a noiva. Quando a conheceu naquela festa do dia das bruxas, uma menina vestida de fada no meio de monstros, Hélder acreditou que poderia ser inteiramente sincero com ela, e esconder o que estava escondendo o deixava doente. No entanto, estava aprendendo que amar é proteger o outro de verdades dolorosas, sobre as quais ele mesmo não tinha nenhuma certeza. Os dois Queiroz estavam mortos, e não era considerado um suspeito até onde sabia. Talvez a vingança demoníaca concedida a ele tenha ficado para trás, e lá, no passado, deveria permanecer. – Só preciso de uma boa noite de sono.
- Nem me fale. – Dora se deitou no peito do noivo, que a abraçou. – O casamento já é depois de amanhã, acredita? Se não descansarmos, vamos estar uma pilha de trapos.
Hélder parou um pouco, considerando tudo.
- Acha que vai dar tudo certo? – perguntou ele, a voz e o olhar perdidos nas sombras. Mas a mulher já estava dormindo, totalmente alheia às preocupações. Hélder acariciou os longos cabelos dela e a abraçou mais forte, fechando os olhos. Dois dias para o casamento. Era uma vida nova, uma vida que exigia um novo homem.
Os sonhos agiram como as águas, levando-o por espaços desconhecidos sem dificuldades. De repente, estava diante dos ossos que se estendiam pela trilha até se perder de vista entre as extensas laterais das montanhas. Os esqueletos pareciam mais novos, brancos, e não mais ressequidos e sujos de terra. Andando por entre eles, percebeu que também pareciam mais humanos, conservando sangue e nacos de carne com um aspecto quase vivo. Dando mais passos, ele não se deparou apenas com ossos, mas com corpos inteiros. Jonas e Raimundo estavam jogados diante dele, ambos com os olhos vidrados em sua direção como se pedissem ajuda antes de caírem em um abismo. Passando por eles, Hélder correu, fugindo da tenebrosa visão, e quanto mais se esforçava, mas o sangue com o qual a terra estava molhada aumentava, formando uma verdadeira enchente escarlate que subia pela canelas. Antes de ultrapassarem os joelhos, uma torrente explodiu em uma onda que galopou como uma manada de cavalos e o atingiu, arrastando-o para a escuridão.
Hélder se debateu, procurando algo em que se segurar, e atingiu um corpo sólido e áspero, dando-se conta de que estava em pé, entre o que reconheceu serem árvores envoltas nas sombras. A mão estava agarrada a um tronco. Ele passou os dedos pela casca irregular e se apoiou, cansado, a mente latejando com o eco do terror que tinha acabado de viver. Respirou fundo, sentindo a brisa fria, e esperou tudo se esvair espontaneamente.
Demorou um momento para ele se afastar do tronco, confuso com a aparente estabilidade daquele mundo. Não havia estrada de ossos, cadáveres tristes, ondas de sangue, nada tão ruim quanto a própria realidade. Sentia o vento, o chão firme sob os pés, e lembrava-se de tudo. Nada era uma ilusão onírica. Paradoxalmente, foi perceber que estava acordado, e não mais em um pesadelo, o que mais provocou pavor.
Ele olhou para os lados. Estava reconhecendo o lugar, apesar da pouca visibilidade. Contornou o tronco, atento ao que estava em volta, e viu a porta dos fundos de sua casa aberta, derramando um fluxo de luz que se perdia entre as árvores. Começou a dar passos desajeitados por cima de raízes e gravetos, o ritmo dos pés ditado pelas palpitações desconfortantes. Chegou à soleira e parou, lançando um olhar temeroso para dentro. O ambiente estava em ordem, exceto por um único detalhe que fez Hélder desejar estar sonhado com todas as forças.
No chão, com a cor azulada da camisola destacando-se contra o assoalho da cozinha, Dora permanecia caída, sem se mexer, as mechas de cabelos espalhadas pelo rosto sereno. Vencendo o torpor, ele perscrutou com o olhar o corpo da amada em busca de cortes ou sangue e, não encontrando, liberou a respiração que estava prendendo sem perceber.
- Dora! – Hélder entrou e se ajoelhou. – Dora, meu amor, acorde!
A mulher respondeu com um gemido de protesto. O noivo a levantou e a carregou para o quarto, cuja porta estava aberta. Deitou-a na cama e tentou acordá-la com tapinhas no rosto.
- Dora!
- Hélder? – disse ela, a voz diminuta com a sonolência.
- Você está bem?
- Estou – ela resmungou, se virando. – Vê se dorme – disse, voltando a dormir sem se importar com o rosto do noivo enterrado em seus cabelos, banhando as madeixas de lágrimas.
Ela só acordou com a claridade forte do dia entrando pela janela. Mexeu a cabeça e percebeu que ela parecia querer explodir, uma dor pulsante se propagando a partir da nuca. Calçou os chinelos e andou como se estivesse saindo de um carro que tinha capotado uma dúzia de vezes. Segurou na quina da porta e entrou pelo corredor, encontrando Hélder sentado à mesa, o rosto escondido entre as mãos iluminadas pela tela do notebook aberto.
- Levantou cedo, querido. – Ela pôs a mão na cabeça e caminhou para a pia. – Que chato! Dormi de mau jeito. Parece que levei uma pancada na cabeça. – Dora parou, esperando algum comentário do companheiro, e se deu conta de outro incômodo. – Você está lendo notícias de novo? Não pedi para você não ficar olhando isso?
- Eu também fiz um pedido. – A voz dele saiu abafada. – Pedi que trancasse as portas e escondesse as chaves de mim, mas eu as consegui mesmo assim.
- Espere... Agora estou me lembrando – disse Dora, sentindo um estalo como se apenas naquele momento ela tivesse terminado de acordar completamente. – Ontem à noite você se levantou e me pediu as chaves. Eu fui para onde as escondi e... Não lembro o resto. O que aconteceu?
- Aconteceu o que vem acontecendo nas últimas noites, e acontecerá não sei por quantas noites mais. – Ele se levantou e andou devagar pela cozinha, como se não tivesse consciência do que estava fazendo. – As surpresas nem sempre são boas, não é? Eu, por exemplo, não sabia que Raimundo Queiroz tinha um irmão além de Jonas, e uma manchete de jornal não foi uma maneira muito simpática de descobrir.
Dora se aproximou do computador e viu as fotos de um corpo perfurado por cortes, jogado em uma poça de lama e sangue. A notícia contava como Silvério Queiroz, que estava em uma viagem a uma cidade vizinha, chegou às pressas em Santa Regina depois das mortes de Jonas e Raimundo, e como na última noite ouviu boatos de algo rondando as terras do irmão. Pensando se tratar do assassino, ele saiu acompanhado pelo filho mais velho, armado com uma pistola, e não voltou mais.
- Meu Deus! Alguém está eliminando todos da família. – Ela levou a mão à boca, horrorizada. – Aqui diz que o filho dele continua desaparecido. Você acredita que ele esteja vivo?
- Eu não sei... Não tenho certeza. – Hélder virou as costas para a noiva, os braços cruzados e a postura vulnerável. – Não sou homem para garantir nada.
- Amor, o que você tem? – Ela se aproximou e ficou de frente para o noivo, com as mãos nos ombros dele. – Está com os nervos à flor da pele.
- Eu queria ser o melhor dos noivos, Dora, eu juro, mas estou indo na contramão. – Ele a encarou, o tom choroso e os olhos profundos. – Tudo o que estou sendo é uma incerteza – disse, pondo as mãos no rosto.
- Vem... – Ela puxou os braços dele.
- Para onde?
- Para a casa da mamãe. Você não está bem e não dá para continuar aqui, desse jeito. Talvez uma mudança de ares ajude. Por favor, não vamos discutir. – Ela foi ao quarto trocar de roupa rapidamente. Fechou a casa, saiu com o noivo e dirigiu o carro pela estrada, contornado os quarteirões pela pista até avistar os portões da casa dos pais. Estacionou no meio-fio e saiu de mãos dadas com Hélder em uma caminhada consternada que atravessou a porta e encontrou Dirce na sala.
- Filha, que bom que está aqui... – Ela olhou de Dora para o genro. – Algum problema?
- Viemos apenas compartilhar as expectativas para amanhã – a noiva falou, com um sorriso. – Está sendo difícil segurar a ansiedade.
Hélder soltou a mão da mulher e continuou andando, sem reparar se Dirce estava se deixando levar por aquela desculpa. Chegou à sala de jantar e olhou para as cadeiras da mesa, perfeitamente alinhadas, e para o quadro de Salomão Sampaio, sempre no mesmo lugar da parede. Quase ouviu aquela figura falar, sibilando um sussurro sutil que lhe dava boas vindas à família.
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Continua na parte III.