"Ela"

Jamais me olvidarei das lembranças daqueles momentos tortuosos. Sempre que fecho o olho, vem à minha memória flasbacks lembrando o que passei. Posso estar louco – possivelmente estou; mas não há como negar que qualquer ser, que tivesse o mínimo de lucidez em suas mentes, não ficaria. Caro leitor, não me julgue antes de entender a minha história e os motivos pela qual estou aqui, preso neste local escuro e sombrio, tachado por todos como louco. Passo agora a escrever os fatos que me levaram a ser encarcerado neste hospital psiquiátrico e, certamente, você entenderá o que aconteceu comigo.

Era maio de 2005. Na época, eu tinha acabado de me mudar para Lavras, uma cidade no interior de Minas Gerais. Eu tinha 19 anos na época e meu irmão tinha 21. Mudamos para aquela cidade por causa de meu pai, que havia sido mandado para lá por causa de seu emprego. Talvez não fosse tão ruim, eu pensava na época. Lavras era uma cidade maior que a minha, com maiores opções para curso na faculdade. Fora que lá poderia começar uma nova vida, do zero, longe de todo o passado.

Estávamos felizes. Queria logo explorar a cidade, conhecendo-a, mas meus pais me proibiram, por ser sábado e não demoraria a escurecer. Fiquei parcialmente desapontado, mas não me incomodei muito.

Mudamos para uma casa de esquina na rua de entrada da cidade, no segundo cruzamento, à direita, logo acima da rodoviária. Era uma casa parcialmente velha, com o teto de forro carunchado. Possuía um jardim frontal, um garagem, a sala introdutória, um pequeno corredor com o banheiro, uma sala central, com dois quartos à esquerda e o quarto maior, à direita, com uma suíte e, ao fundo, copa e cozinha. Havia uma pequena área de lavandeira à direita e outra maior à esquerda. Ao fundo, um grande terreno irregular, com árvores e mais alguns cômodos e outro banheiro.

Chegamos a Lavras após uma viagem de uma hora e meia pela BR-265, por volta de 1 hora da tarde. O Sol estava fraco e o ar ameno da cidade nessa época do ano já dava os sinais do frio que faria naquela noite. Começamos a esvaziar o caminhão de mudança. Adentrei no local e logo já escolhi o meu quarto – o primeiro. Já passei a colocar as minhas coisas no meu novo quarto.

Por volta das 4 horas da tarde, o caminhão da mudança já estava completamente vazio. Aproveitamos o momento para tirarmos diversas fotos em frente à nossa nova casa, para fazermos o nosso “primeiro, de muitos álbuns, na nossa nova vida”, como disse minha mãe – tiramos foto minha com meus pais; depois, estes com meu irmão; meus pais sozinhos; eu com o meu irmão, e por aí em diante. Só paramos de tirar fotos quando o filme da máquina acabou.

Após, entramos novamente na residência para começarmos a abrir a caixa.

Vivemos uma bela primeira semana em Lavras. Eu arrumei um emprego em uma das lojas do comércio central, enquanto já estava de olho no próximo vestibular da UFLA, a universidade federal da cidade. No fim de semana seguinte, minha namorada, Ana Laura, veio me visitar e conhecer minha nova residência. Achou a cidade maravilhosa. Aproveitou o comércio para comprar o máximo que pôde. À noite, fomos a um restaurante local e desfrutamos de uma deliciosa pizza servida em um estranho barquinho de papel.

Chegamos à minha casa por volta da 1 hora da manhã. Adentramos em total silêncio na residência. Abri a porta da sala e caminhamos pelo interior da casa, completamente escura, o mais silencioso possível. Laura ficou na sala, à procura de suas roupas de dormir para se trocar – era lá que ela iria dormir, por causa do conservadorismo de meus pais. Enquanto isso, caminhei em direção ao meu quarto, a fim de igualmente trocar de roupa.

Repentinamente, eis que escuto um barulho de panelas caindo no interior da cozinha. O silêncio total do ambiente fez com que eu me assustasse.

- Amor? – perguntei, em voz alta. Não obtive respostas. Caminhei em direção à porta do quarto – Amor?

- Oi? – respondeu Ana Laura. Para minha surpresa, na sala.

- Foi você que derrubou as panelas? – perguntei, mesmo já sabendo da resposta

- Não. Achei que fosse você. – respondeu Laura. Senti, em sua voz, um leve sentimento de medo

Mesmo com o receio, caminhei em direção ao interruptor da sala principal. A luz desta iluminaria a cozinha, pois a divisória entre ambas é um balcão de pouco mais de um metro e meio de altura. E assim ocorreu. Liguei a luz e esta iluminou a cozinha. Todavia, naquele instante, visualizei momentaneamente aquilo que seria o meu maior pesadelo e o motivo pelo qual estou aqui neste exato momento... “ela”. Vou chamá-la de “ela” por não ter outra definição melhor para chamá-la... poderia ser fantasma, monstro, capeta, qualquer coisa, mas acho que “ela” “a” define.

A verdade é que, assim que liguei a luz, momentaneamente eu “a” vi, antes de dissipar. Ao visualizá-la, soltei um grito abafado, tamanho o susto. Fiquei ali paralisado, fitando o local onde “ela” estava. Ana Laura veio ao meu encontro.

- Descobriu o que era?

- Um bicho, eu acho. Não deu para ver direito. – respondi, acordando de minha paralisia. Não quis contar a Laura a respeito “dela”. Mas era certeza que aquele acontecimento mudaria por completo minha vida.

Naquela noite, eu não consegui dormir. Apenas fiquei com o rosto “dela” em minha mente. Aquele rosto humano. Aquele olhar demoníaco. E qualquer barulho na casa me acordava. Um móvel estralando. Meu irmão acordando para ir ao banheiro. Qualquer barulho. Mesmo.

Os dias se passaram desde a aparição “dela” naquela noite de sábado. A priori, foi a “sua” primeira e única aparição em minha residência. Ana Laura foi embora para sua residência no domingo, dia 22, e continuei a viver minha vida naturalmente.

Duas semanas se passaram como um raio. “Ela” não apareceu novamente para mim desde então e eu comecei a esquecê-“la” com o dia a dia na nova cidade.

Entretanto, na quarta-feira, 8 de junho, eu estava descansando em casa. Meus irmãos haviam saído cedo e meu irmão estava na universidade – ele transferiu de nossa cidade. Estava deitado no sofá assistindo TV quando, repentinamente, eis que eu escuto um barulho oriundo do interior do meu quarto. Levantei em um só pulo. Meu coração começou a pulsar violento no peito. Caminhei vagarosamente em direção ao meu quarto, pé a frente de pé. O barulho aumentava à medida que eu chegava perto. Com o coração quase pulando do peito, virei em direção à porta do meu quarto. Sobressaltei-me. Era “ela”!

“Ela” se encontrava dentro do meu quarto, à frente do meu guardarroupa, que se encontrava aberto, lançando minhas roupas ao chão. Olhou para mim com aqueles olhos demoníacos, enquanto eu me encontrava completamente paralisado, tomado pelo terror.

“Oláááá”, ela disse, com uma voz arrastada e sombria. Os pelos do meu pescoço eriçaram instantaneamente; senti um terror que nunca senti antes. “Ela” estava conversando comigo!

Andei para trás, lentamente, sem deixar de fixar o olhar “nela”, só parando quando esbarrei minhas costas na parede logo atrás de mim.

“O que quer comigo?”, perguntei. Não queria ouvir “sua” voz novamente. Sentir o terror existente na sua voz foi a pior sensação já vivida por mim até hoje.

“Voooooocê”, ela respondeu. Congelei-me no mesmo instante. Meus braços começaram a tremer involuntariamente. “Como assim, eu?”, essa pergunta começou a martelar continuadamente no interior da minha mente. “Meu Deus. Como assim? Como assim?”

Repentinamente, eis que escuto a porta da sala abrir. Senti o coração apertar no peito, mas aliviei quando escutei meus pais conversando animadamente. Disfarcei o que estava acontecendo e saí da frente do meu quarto. Percebi-o vazio. Meus pais encontraram comigo e postaram a conversar. Fingi interesse. Fingi estar rindo. Dentro de mim, entretanto, uma dúvida martelava continuadamente no meu âmago: “O que está acontecendo?”

Aquele oito de junho mudou minha vida. Desde então, as aparições “dela” passaram a ser frequentes. Passei a vê-“la” diariamente, praticamente; de dia, de noite - sozinho, principalmente. “Ela” sempre se encontrava no meu quarto, ou nos seus arredores. Eu passei a evitar ficar dentro de casa o máximo de tempo possível, queria ficar o tempo todo na rua, ou do lado de fora da residência. Apenas adentrava em casa ao escurecer – caso não estivesse na rua – ou para comer. Queria trocar de quarto e passei a ficar agressivo. Meus pais estranharam o meu comportamento. Acreditaram que foi por causa da mudança, da nova cidade e da nova vida e me deixavam quieto, na esperança de que, com o passar do tempo, tudo voltaria ao normal. Mas eu queria apenas que “ela” fosse embora! Somente isso, e minha paz voltaria.

Os dias foram passados, como as águas passam sob a ponte. Ana Laura voltou a me visitar no meio do mês de junho, após os meus pais telefonaram para ela avisando da minha mudança de comportamento. Esta veio na tentativa de me acalmar e me fazer mudar o comportamento. Porém, o que ocorreu não me fez acalmar... pelo contrário, só piorou minha angústia.

Era sábado. Meus pais e meu irmão haviam saído, deixando-me sozinho novamente. Ana Laura estava comigo. Assistíamos deitados no sofá a um engraçado filme de comédia. Em um dado momento, começamos a nos beijar ardentemente, após trocas de olhares românticos. E ficamos ali, sobre o sofá, beijando-nos. Repentinamente, após me desvencilhar momentaneamente dos lábios de Laura, fitei-me o seu rosto, apaixonadamente. Todavia, assustei-me. Meu coração foi à boca. Dei um grito abafado e afastei-me tão atrapalhadamente que caí no chão. Eu “a” vi! Por um momento. Eu tenho certeza. No rosto dela eu “a” vi!

Desesperada, Ana Laura perguntou o que aconteceu. E com razão! Ela percebeu a minha cara de assustado. E o que eu deveria responder a ela? Que “ela” existe? Eu seria tachado como louco. Com certeza.

Tentei bolar alguma resposta convincente, mas não consegui. Nem bolar, nem falar, de tão paralisado eu estava. Laura percebeu que eu estava tremendo e com semblante amedrontado e desceu do sofá, abraçando-me e me consolando.

Após a aparição “dela”, saímos. Não disse nada a Ana Laura sobre o que aconteceu e quase não trocamos palavras. Provavelmente Laura acreditava que fez algo de muito ruim para me assustar daquele jeito. Coitada! Mas não poderia contar a ela a verdade.

Caminhamos pela cidade até a Praça Dr. Augusto de Lima, uma das, ou talvez a principal, praças de Lavras. A praça se encontra no centro da rua, cercada de asfalto pelos lados. É bastante arborizada e sua entrada é cercada pelos dois lados por palmeiras imperiais. Na Augusto de Lima se encontrava um grande número de bancos, além de bares e restaurantes. Fomos a um deles. Ficamos lá até por volta de onze horas da noite, quando subimos – era longe de casa, não arriscaria atravessar uma boa parcela da cidade de madrugada. Chegamos a minha casa, assistimos um pouco de TV junto de meus pais e fomos dormir.

Em um determinado momento, acordei. Acreditei que já era dia, mas tudo ainda estava escuro. Acendi a luz do meu quarto e fui ao banheiro. Quando saí do recinto, escutei um barulho oriundo do interior da sala. Parecia um objeto batendo, de um lado para o outro, em locais duros.

“Laura?”, perguntei, em um tom de voz mínimo. Não obtive resposta. Com passos vacilantes e lentos, caminhei até o local. Ao visualizar toda a cena, sobressaltei-me.

“Ela” empurrava Laura de um lado ao outro, batendo sua cabeça nos sofás laterais.

“O que está fazendo?”, perguntei. Fiquei com receio da resposta, mas não poderia deixá-la matar minha namorada na minha frente.

“Ela” virou para mim novamente, mostrando-me o seu olhar demoníaco. Seu semblante estava furioso – o que a deixou mais demoníaco.

“Vocêêêê é meeeeeu!”, ela me respondeu, gelando minha espinha. Não apenas pela voz demoníaca, mas pelas palavras proferidas por ela. Estagnei no local. Como assim, “você é meu?”. “Eu pertenço a ‘ela’?”. “‘Ela’ me quer?”

Novamente não consegui dormir. Aquelas palavras “dela” ecoaram em minha mente por toda a noite. Deitado sobre a cama estremecia involuntariamente. Rezei apenas que a luz do dia seguinte logo chegasse.

Tão logo a luz adentrou no interior do quarto, despertei. Aliás, despertar não. Apenas abri os olhos; desperto eu estava, pois jamais adormecera. Levantei da minha cama e postei a caminhar em direção à saída do meu quarto, cambaleante, sonolento.

Ouvi a voz de Ana Laura. Conversava com alguém, que se encontrava no interior da cozinha. Percebi-a narrando uma forte dor de cabeça, além de um grande galo que apareceu na região de sua têmpora esquerda. Logo acreditei se tratar dos fatos ocorridos na noite anterior. Mas não quis contar a ela o que, de fato, aconteceu. Queria apenas verificar se ela estava bem.

Já me encontrava ao lado da porta do meu quarto quando, repentinamente, percebi algo na minha cômoda. Algo estava diferente nos meus portarretratos. Mais precisamente, em quatro deles. Os rostos de Ana Laura nas fotos contidas nos portarretratos sobre a minha cômoda estavam rasgados. No mesmo instante, chamei a todos os presentes para verificarem o que havia acontecido. Vieram minha mãe e Laura, que ficaram estupefatas com o ocorrido. Por mais que eu imaginasse que aquilo era obra “dela”, fingi desconhecer quem foi o causador daquele incidente.

Todos ficaram preocupados. Principalmente Ana Laura. Principalmente por estar com um galo gigantesco na cabeça que adquiriu enquanto dormia. No mesmo instante em que minhas fotos com ela foram rasgadas.

Naquele dia, não saímos. Ficamos em casa o dia inteiro, amedrontados com a situação. Só saímos quando precisamos deixar Laura na rodoviária. E, naquele instante, eu percebi, com o canto do olho, “ela” na janela do meu quarto, fitando-me incessantemente.

Eu estava sentado na varanda de minha residência, em um clássico dia de começo de inverno. Lá fora ventava uma fria brisa. Lia os classificados de um jornal local, à procura de um novo emprego – já que eu perdera o anterior, devido à confusão mental que me encontrava. Pessoas passavam continuadamente pela frente da residência, até que uma delas, ao me fitar no interior da residência, perguntou, dirigindo-se a mim, em voz alta:

“Olá. Você é o novo morador dessa casa?”

No instante em que escutei as perguntas da mulher, fechei o jornal e a fitei. Era uma mulher de certa idade, de pele negra e cabelos baixos.

“Oi, tudo bem?”, eu respondi, tentando ser amigável. Não queria conversar. “Sim, sou sim.”

“Que legal. E estão gostando da casa?”

Veio, instantaneamente, um flashback em minha mente “dela”. Senti um calafrio no corpo e deixei transparecer em meu semblante.

“Sim, estamos sim”, respondi, forçando um falso sorriso.

“Hum...”, disse a mulher, pensativa. “Eu trabalhei nesta casa, anos atrás.”

“Ah... legal”, disse apenas. Sério. Eu pouco me importava com isso.

“Moravam um casal de senhores e eu era a empregada doméstica de ambos. Cuidava da casa e dos senhores. Então eu conheço bem a residência”. Eu fazia força para escutar o que a mulher dizia. Não estava nem um pouco interessado em saber a história dela para com esta casa; entretanto, não pude deixar de demonstrar interesse quando a mulher disse que conhecia bem a residência.

“E o que aconteceu com os senhores?”

“Estes senhores tinham uma neta, que vieram a morar com eles anos atrás. 15 ou 20 anos atrás. Ela morava em Ribeirão Vermelho, não sei se você conhece [Ribeirão Vermelho é uma pequena cidade próxima a Lavras], e veio para cá para estudar na Universidade Federal da cidade. Porém, em um dia qualquer, enquanto voltava a pé da UFLA, ela foi atacada por dois homens na parte deserta da Perimetral e foi estuprada. O Inferno foi estabelecido dentro desta residência. Os senhores, sabendo do que aconteceu, trancaram-na no interior do seu quarto, não a deixando sair dia algum. Nem eu pude entrar para auxiliá-la. Ela ficou o tempo todo no interior do quarto, fitando pela janela a rua. Enquanto isso, marido e mulher começaram a brigar, a ponto de determinada vez o homem esfaquear sua esposa após um acesso de raiva e, em seguida, falecer, vítima de ataque cardíaco. Neste instante, pensei que a neta deles estaria livre do cárcere maldito. Abri a porta. Entretanto, ela já não estava mais viva. Após dias sem comer ou dormir, ela sucumbiu parada em frente à janela do quarto.”

Eu fiquei estarrecido. A história dos antigos moradores desta residência era demoníaca. A neta foi estuprada covardemente por dois homens e foi trancafiada dentro do quarto, sem comer nem beber. O avô foi um covarde, igual aos estupradores. Coitada dela...

“Essa história realmente é terrível.”, continuou a mulher. “Desculpe-me se lhe deixei assustado.”

Mas não prestei atenção a nenhuma palavra proferida pela mulher. Estava absorto em meus devaneios. Com toda a certeza do mundo, a neta destes senhores é “ela”. O quarto “dela” provavelmente é o meu, já que é o único que dá para ver a rua. Isso explica o porquê de eu sempre vê-“la”... mas, por que os dizeres “você é meu?”

“Bom, estou indo”, disse a mulher. “Se cuida, e prazer em conhecê-lo”.

“Igualmente”, eu respondi, apenas.

Saber da história “dela” me fez enxergá-“la” com outros olhos. Talvez “ela” não fosse tão demoníaca e assustadora como imaginei. Talvez... “ela” fosse apenas uma pessoa que sofreu nas mãos de tantos demônios, que se tornou um... Comecei a ter pena e compaixão “dela”. Mesmo que “ela” continuasse a me aterrorizar com suas aparições repentinas, cada vez mais frequentes.

Certa vez, eu dormia tranquilamente em meu leito quando senti um agradável afago em minha cabeça. Uma macia mão acariciava o meu couro cabeludo gentilmente e mexia docemente em seus cabelos, acalmando-me. Senti-me mais relaxado, com o corpo tomado pela endorfina e quase voltando ao sono profundo. Eu estava extasiado, de tão boa as carícias. Todavia, dei-me conta, lentamente, de que era uma mão feminina que me acariciava. Ana Laura, pensei primeiramente. Porém, lembrei-me que Laura se encontrava em minha cidade natal, a 100 Km de Lavras. Não era Ana Laura com toda certeza. Lembrei-me de algo. Abri os olhos, sentindo o medo mais sombrio invadir o meu corpo e saltei, quase me jogando na parede do lado oposto. Era “ela”! Estava ajoelhada na cabeceira da cama, apoiando a cabeça sobre o colchão.

Junto do salto, veio um grito, que ecoou pelos quatro cantos da residência. Era sete horas da manhã e todos se encontravam ainda repousando. Com o meu grito, não estavam mais. Estavam todos de pé, assustados, correndo em minha direção. Fitaram-me encolhido e encostado na parede. Na minha frente, nada havia...

Todos me julgaram, de uma forma ou de outra. Meu irmão me achou louco. Minha mãe achou que tive um pesadelo vívido. Meu pai achou que eu estava confundindo sonho com realidade. Não contei a eles “dela” ou certamente me julgariam como loucos.

“Ela” começou a aparecer com cada vez mais frequência para mim. Nem mesmo dormindo “ela” me deixava em paz. A minha compaixão por “ela” logo se dissipou, sendo substituída por um ódio e um medo vorazes. Quando eu estava sozinho, a situação era pior. Quase sempre “ela” tentava se comunicar comigo, falando que queria me ter eternamente. Certa vez, enquanto eu estava tomando banho, a porta do banheiro foi violentamente esmurrada pelo lado de fora e alguém gritava continuadamente para eu sair. Não seria problema algum, se não fosse o detalhe de que eu me encontrava sozinho dentro de casa. Outra vez, estando novamente sozinho, encontrei escrito no espelho do banheiro, a tinta vermelha, os seguintes dizeres:

Passei a ver coisas voando e meus pertences começaram a desaparecer. Continuadamente, eu enxergava os escritos supramencionados em diferentes pontos da casa, como sobre o retrato meu e de Laura – foto que fora trocada, depois de a anterior ter sido rasgada -, ou no meu guardarroupa. Barulhos de gemidos e sussurros se tornaram audíveis na madrugada. Eu não dormia, não comia, não descansava. A exaustão rapidamente apareceu em meu corpo, deixando-me completamente esgotado. Com toda essa situação, comecei a ficar louco. Em qualquer lugar da casa eu passei a vê-“la”, o tempo todo. Não queria mais ficar em casa, passando a ficar até altas horas da madrugada na rua, vagando como um sem teto. Comecei a citá-“la” continuadamente e de forma desconexa. Meus pais ficaram sabendo da existência “dela”, mas acreditaram se tratar de um delírio meu. Chamaram novamente Ana Laura para me ajudar – e para tentarem identificar se “ela” era uma segunda mulher que eu conhecera. E foi nesta estada de Laura que tudo aconteceu e eu vim parar aqui, neste manicômio.

Não me lembro mais em que dia da semana tudo ocorreu. Minha mente se encontrava nebulosa e muitos detalhes de minha vida simplesmente se apagaram de minha memória – mesmo da grande importância deste dia. Ana Laura se encontrava em minha residência, onde passaria dez dias, na tentativa de me acalmar. Entretanto, tão logo chegou ao meu encontro, já percebeu a situação em que me encontrava. Sentia-me acuado, triste e amedrontado. Não queria ficar dentro de casa, sempre me assustava – com coisas invisíveis aos olhos dos outros – e comecei a contar para Laura sobre “ela”. Minha namorada se encontrava deveras preocupada – sabia da minha condição, contada por telefone por minha mãe, mas ela era incrivelmente pior do que imaginara. Chegara a conversar com meus pais da possibilidade de me levar a um psiquiatra e os mesmos já cogitaram tal ideia. O pior, entretanto, ainda estava por vir.

Era noite. Lembro-me bem dessa situação. Todos já se encontravam dormindo, incluindo eu. Em dado momento, acordei, pois “ela” já se encontrava dentro de meus sonhos, transformando-os nos mais nefastos pesadelos. Levantei da cama, acendi a luz do quarto e caminhei em direção à sua saída, onde adentrei na sala principal, virando-me em direção à cozinha, a fim de beber um copo de água. Repentinamente, eis que escuto um barulho às minhas costas. Meu coração saltitou feroz no peito. Virei de inopino para trás, onde sobressaltei. Era “ela”, novamente! E estava carregando Ana Laura pelos braços.

“O que está fazendo?”, perguntei, assustado. Mas “ela” emudeceu. Nada disse a mim. Passou por mim carregando Ana Laura. Segurei minha namorada pelas pernas, impedindo que “ela” continuasse o seu intuito. “Ela” olhou furiosa para mim – onde me fez bambear pelas pernas.

“Soooooolte!”, disse “ela”, com a sua característica voz demoníaca

“Não”, respondi, firme. Aquilo soou para “ela” como um desafio. “O que quer com ela?”

“Voooocê é meeeeu!”, “ela” disse. Em seguida, segurou o meu braço esquerdo com considerável força. Sua mão era gelada – parecia estar encostado em um pedaço de gelo – e apertava meu braço com tamanha força que eu sentia os nervos e os músculos romperem. “Ela” me soltou. Fui ao chão, com a mão direita sobre o local. A dor era pungente; não conseguiria ficar em pé. Aproveitando a ocasião, “ela” voltou a carregar Ana Laura.

Tentei levantar o quanto antes, conseguindo-me ficar de pé apenas longos segundos depois. Fitei o meu braço, onde vi com clareza a marca roxa dos dedos demoníacos “dela”. Mas não poderia ficar ali parado. Precisava auxiliar Ana Laura, que certamente corria perigo. Corri a toda velocidade em direção à saída da casa, passando pela lavanderia e adentrando na parte externa de minha residência. O local estava incrivelmente escuro, possuindo como uma única fonte de luz a iluminação artificial oriunda da lavanderia. Estava nublado e era possivelmente dia de lua nova, pois nenhuma luz oriunda dos céus existia.

Entretanto, enxerguei-“a” com clareza, ao lado do pé de carambolas, ao fundo no terreno. Acelerei os passos, atravessando todo o local e sujando o meu pijama de terra. Aos poucos, fui visualizando o que “ela” estava fazendo: abaixando-se para pegar algo no chão; uma faca, suja de terra; levantou-a no ar.

“Pare!”, eu gritei. Estava próximo o suficiente “dela”. Segurei-“a” pelo pulso, impedindo o seu intento. Entretanto, foi apenas por alguns segundos. “Ela” desferiu um violento soco em meu rosto, na altura do supercílio direito. Cambaleei. O meu cérebro começou a rodopiar. Senti um líquido escorrendo pelo meu rosto, quase adentrando no meu olho. Após, senti um gosto amargo na minha boca.

Quando voltei a mim, “a” percebi cravando a faca ferozmente no peito de Laura, continuadamente. Esta soltava um tímido gemido de dor, enquanto grandes quantidades de sangue esvaíam de seu corpo. Entrei em choque. “Ela” estava matando Ana Laura na minha frente! E o que eu poderia fazer? Meu cérebro estagnou, não conseguia reagir. Apenas gritar para que ela parasse. E gritar. E gritar. Até o dado momento em que as luzes de minha casa acenderam e todos os que lá residam saíram às pressas.

“O que está fazendo?”, perguntou a minha mãe, sobressaltada. Meu pai e meu irmão vieram em nossa direção, desesperados. Postei a abrir a boca para responder, quando ouvi novamente minha mãe dizer, aos prantos. “Seu maníaco!”. Assustei. “Como assim, SEU MANÍACO?”. Olhei ao redor, no instante em que, verdadeiramente, sobressaltei-me; meus pulsos tremeram e meu coração gelou dentro do peito. Era EU quem portava a faca! Era EU quem estava ceifando a vida de Ana Laura! Era EU o maníaco!

E cá estou atualmente, neste manicômio judiciário. Fui processado, julgado e condenado pela morte de Ana Laura. Pelo relato dos meus pais, livraram-me da cadeia e enviaram-me a este hospital para tratamento da minha mente. Até hoje aquele dia nebuloso ecoa constantemente em minha mente, batendo e rebatendo, tentando entender o que aconteceu. Por que fui eu quem ceifou a vida de Laura? E onde “ela” estava? Aliás, quem, afinal de costas, era “ela”?

Dez anos se passaram. Aos poucos fui convencido de que “ela” jamais existiu e que tudo foi obra da minha mente. E de fato foi. Analisando os detalhes, “ela” somente apareceu para mim. Laura e eu brigamos, por ela jamais aceitar eu mudar de cidade e seguir os meus pais, mesmo tendo emprego fixo em minha terra. Minha mente provavelmente utilizou destes acontecimentos para criar a figura “dela” para atacar Ana Laura, quando, na realidade, era eu quem queria fazer. Quando fui encontrado por meus pais matando Laura, não possuía nenhum sinal de dedos ou de soco em meu corpo. Se, de fato, “ela” existisse, não teria condições de encostar-se a um ser vivo, pois seria um fantasma. “Ela” não existiu, pois seria ilógico e impossível acreditar no contrário.

Escrevo este relato hoje para que fiquem guardados os registros de minhas mais vis loucuras, com o intuito de mudar-me daqui para frente. Escolhi a data de 14 de maio, pois, dez anos antes, eu colocava os meus pés em Lavras para aqui residir; e daqui jamais saí. Até hoje. Recebi alta hospitalar e extinção do cumprimento de minha pena. Estou sendo levado neste exato momento à rodoviária da cidade, para embarcar no ônibus que me levará à minha terra, onde meus pais me aguardam. Meu irmão não mais lá se encontra. Fiquei sabendo que o mesmo se casara seis anos antes e que a cerimônia foi linda. Que pena que não pude acompanhar. Mas, finalmente, após longos dez anos, recebi a minha liberdade.

Estou feliz por ter minha vida de volta. Será difícil eu acostumar no começo com uma nova rotina, após longínquos dez anos aprisionados. Uma estranha nostalgia bateu no meu peito quando visualizei a cor azul-claro do muro externo da minha antiga moradia. Ali, no começo, era o símbolo de uma nova vida, em uma nova cidade. Mesmo após os fatos, ainda enxergo como ali o símbolo da minha nova vida nesta cidade. Dez anos se passaram e o local estava parcialmente modificado. Fiquei a fitar, nostalgicamente, a minha antiga morada, lembrando-me dos bons momentos em que eu passei ali. Repentinamente, arregalei os olhos. Meus músculos travaram e meu coração congelou. “Ela” estava na janela do meu antigo quarto, visualizando o exterior. Ao me fitar, sorriu. Meu Deus! “Ela” existe!