A MALDIÇÃO

UM

Tenho pouco tempo para contar o que me proponho. O relógio da minha vida caminha inexoravelmente rumo ao minuto final e eu não há mais como voltar atrás. Estou sentado aqui, no alto do prédio da Central do Brasil, no centro do Rio de Janeiro, admirando uma das paisagens mais belas do mundo e tendo às costas o enorme relógio que pode ser visto a quilômetros de distância, mas nada parece atrair mais a minha atenção do que o relógio de ouro que trago no pulso. Olho o mostrador, ele marca 05h59m. O sol está nascendo à leste, um vento frio sopra insistentemente, mas eu estou perdido em meus pensamentos e não percebo nada que não seja aquele relógio. Na parte inferior dele, o cronômetro aproxima-se velozmente do zero. E pensar que há apenas doze horas eu era um homem próspero e feliz...

Eu havia saído do escritório pontualmente às 16h00. Tinha que resolver alguns problemas particulares, por isso dei um jeito de escapar antes do meu horário habitual. No caminho para casa, passei na lavanderia para retirar o smoking que usaria na recepção daquela noite. Estava ansioso, pois essa festa havia sido o meu único objetivo nos últimos seis meses de trabalho. Por ela, eu sacrificara horas do meu tempo livre, elaborando um minucioso plano global de crescimento sustentável para a empresa, e hoje era o grande dia, onde o melhor trabalho seria anunciado e o seu autor seria promovido a diretor-executivo da companhia. Intimamente, eu tinha plena certeza de que seria o escolhido. Tivera acesso aos planos dos outros concorrentes através de um amigo hacker, que conseguira penetrar sorrateiramente nos computadores dos meus principais adversários, e modéstia à parte, o meu trabalho era bem superior ao de todos os outros. Eu considerava a promoção como certa, tanto que já havia programado a comemoração para depois do evento, com Alicinha, minha namorada.

Na pressa de chegar em casa, resolvi cortar caminho, pois o rádio do carro havia anunciado um grande engarrafamento nas pistas do aterro do Flamengo, por conta de um acidente. Por nada desse mundo eu chegaria atrasado naquela recepção.

Comecei a passar por lugares que não conhecia, na tentativa de ganhar tempo. Em dado momento entrei numa rua sem saída. Era uma rua escondida e deserta, nem me lembro como fui parar ali, e estava quase escurecendo. Quando percebi que não havia saída, engatei a ré e comecei a manobra para voltar. Nesse instante, ouvi um baque surdo bem em cima do capô do carro, que afundou sobre a minha cabeça.

- Mas o que diabos foi isso? – eu me assustei.

Saí às pressas e fiquei chocado ao constatar que havia um corpo estendido sobre o capô.

- Meu Deus! – exclamei horrorizado. – O meu carro!...

DOIS

O homem não se mexia. Um filete de sangue escorria da sua boca escancarada, onde se notava a falta de dois dentes, provavelmente perdidos na queda.

Procurei desesperadamente por ajuda, mas a rua continuava deserta, ninguém ouvira o estrondo do corpo se chocando contra o capô. Olhei para os apartamentos ao meu redor e tampouco vi alguém, aquela parecia uma rua fantasma.

Tentei entender o que acontecera, mas não dava para ter certeza de qual daqueles prédios o homem havia saltado, se é que ele havia saltado...

A dúvida começou a atormentar minha mente. Eu sabia o que aquilo significava: teria de chamar a polícia.

Peguei o celular e comecei a discar 190, mas parei instintivamente ao lembrar-me da recepção. Eu já estava bastante atrasado, imagine se chamasse a polícia! Teria de esperá-los, depois ir à delegacia prestar depoimento... E adeus festa, adeus premiação.

Tornei a olhar para os lados, para o alto dos prédios, a rua parecia morta, ninguém à vista. Então decidi que iria dar o fora dali o mais rápido possível, afinal de contas eu não tinha culpa alguma, o cara é quem resolveu se matar e não seria justo que eu pagasse o pato, justamente no dia mais importante da minha vida.

- É, meu irmão, eu sinto muito... – sussurrei, enquanto puxava o corpo pelo braço. – Se fosse um outro dia, eu até faria a coisa certa. Mas hoje...

O sujeito era magro, mas possuía uma massa muscular considerável, por isso tive que pegar o outro braço também. Foi nesse momento que algo me chamou a atenção: os últimos raios do sol bateram em cheio no enorme relógio dourado que ele usava no pulso esquerdo, fazendo com que o brilho iluminasse meus olhos.

Aproximei o pulso do meu rosto para examinar melhor a peça, e fiquei estarrecido: era um belíssimo relógio de ouro, e a julgar pelo peso era ouro maciço, desses que não se fazem mais hoje em dia.

- Será que isso é ouro mesmo? – murmurei, olhando novamente ao redor.

Ninguém.

Tomei então a minha decisão: forcei o fecho da pulseira para baixo, na tentativa de retirar o relógio do pulso do homem, mas ele parecia estar com defeito.

- Droga! Vamos, sai logo...

Tentei mais uma vez. Nada. Certamente estava quebrado. Desesperei-me, pois a qualquer momento poderia aparecer alguém e ver o que eu estava tentando fazer. De repente, tomei um susto tremendo, quando o homem que parecia morto até então abriu seus olhos e agarrou-me pelo braço com uma força tremenda.

- Rápido... Rápido... – ele balbuciou, de olhos arregalados. – Tire logo... Eu não posso morrer... Com isso!... Maldição!...Por favor, tire!...

Sua voz foi morrendo até sumir, e a pressão que ele fazia no meu pulso cessou totalmente.

Nesse momento um alarme soou. Era baixo, quase imperceptível, mas eu ouvi claramente. Quando o alarme parou de tocar, a pulseira estava aberta.

Ainda assustado, retirei rapidamente o relógio e puxei o cadáver pelos braços, até que ele rolou de cima do capô e caiu próximo ao meio-fio. Seu rosto era uma máscara de horror. Entrei no carro mais que depressa e tratei de sair logo dali.

TRÊS

Estacionei na garagem do meu prédio e abri o porta-luvas do carro. A pequena luz interna do veículo incidiu sobre o relógio e o brilho amarelado inundou meus olhos. Peguei-o nas mãos e examinei detalhadamente. Era tão pesado que não duvidei nem por um minuto que fosse de ouro maciço. Uma peça de colecionador, sem dúvida, muito antiga. A pulseira não combinava muito com o relógio, parecia ter sido acrescentada para adaptá-lo aos tempos modernos, pois se percebia que ela era de uma época posterior ao restante da peça. Na parte de baixo havia um mostrador bem menor que o principal, talvez uma espécie de cronômetro pré-era digital. Não havia nele qualquer sinal de marca ou nome do fabricante. Provavelmente era uma peça talhada artesanalmente, o que lhe conferia o status de jóia.

- Mas isso deve valer uma pequena fortuna! – falei comigo mesmo. – Marcelo Peixoto, você é um cara de sorte!...

Coloquei o relógio no pulso e pressionei a pulseira. Nesse mesmo instante ouvi um ‘click’, e um barulho estranho que não soube identificar, como se um mecanismo qualquer tivesse dado partida. Colei o relógio no ouvido, mas não consegui distinguir mais nada, só o ‘tic-tac’ monótono da máquina trabalhando.

Eram 18h00.

Lembrei que estava atrasado e desci do carro quase correndo. Peguei o smoking no banco traseiro e encaminhei-me a passos largos para o elevador.

Tentei retirar o relógio de todas as formas, mas não consegui. O fecho emperrou novamente.

- Droga, eu deveria ter me lembrado que o fecho estava com defeito! Preciso consertá-lo o quanto antes.

Fiz um pequeno teste para saber se resistiria a um banho, e como foi aprovado, resolvi que não teria mal algum em ir à recepção com ele.

Comecei a fazer a barba, enquanto pensava no pobre-diabo que caíra em cima do meu capô. O carro estava um pouco avariado, mas nada que uma boa lanternagem não desse jeito. Aliás, se aquele relógio valesse mesmo o que parecia valer, em breve eu trocaria de carro...

A minha consciência não estava nem um pouco pesada por ter roubado o relógio de um cadáver. Se não fosse eu, justificava-me, seria um outro qualquer. Naquela rua deserta, o primeiro que passasse faria a limpa. A essas alturas o coitado já deve estar até sem as calças.

Tentei concentrar-me na grande festa, e em como a minha vida mudaria dali por diante. Ser membro da diretoria era um privilégio que pouquíssimos funcionários vindos do escalão de baixo haviam conseguido até então. Significava muito, tanto do ponto de vista financeiro quanto do ponto de vista social. Em poucos dias eu estaria participando da minha primeira reunião de diretoria...

Algo me chamou a atenção através do espelho: parecia uma sombra pairando sobre a minha cabeça. Olhei para cima e não havia nada. Tornei a olhar o espelho e a sombra desaparecera, mas fiquei com uma incômoda sensação, como se algo invisível estivesse me fazendo companhia, vigiando-me...

- Bobagem, Marcelo, você está impressionado. Aquele sujeito despencando em cima do seu carro te deixou nervoso. Concentre-se na grande noite. – falei para a imagem refletida no espelho. – Anime-se! Daqui pra frente, só alegria...

Mas o Marcelo do espelho não parecia muito animado.

QUATRO

- Estou saindo pra te buscar. Você está pronta?

O silêncio do outro lado da linha me deixou um pouco desconfortável.

- Alicinha, você está aí?

- Sim, estou. – ela finalmente respondeu.

- Estou saindo de casa, meu amor. Um pouco atrasado porque tive um contratempo...

Outro silêncio. Algo não estava certo.

- Alicinha, o que aconteceu? Você não está pronta, é isso?

- Sim, eu estou Marcelo. Mas... Eu preciso te dizer algo importante...

- Tudo bem, meu amor, você me conta tudo o que quiser quando eu chegar aí. Nós estamos atrasados e você sabe que eu não...

- Marcelo, eu não vou com você na recepção.

Dessa vez o silêncio foi da minha parte.

- Como assim, Alicinha? Nós combinamos essa noite há meses! Você não pode me deixar na mão...

Ela parecia constrangida.

- Marcelo, por favor, entenda. Você é um cara legal, bacana mesmo. Mas eu não te amo.

- Meu Deus, mas isso lá é hora de você ter crise romântica, Alice? Logo no grande dia? – eu tentei me acalmar um pouco. – Ouça, vamos fazer o seguinte: eu passo aí, pego você, vamos a essa bendita recepção e depois nós conversamos, discutimos a nossa relação, tudo o que você quiser.

- Marcelo, eu vou à recepção com o Cláudio. Sinto muito, mas nós estamos saindo há dois meses. Você nunca tinha tempo para mim, então ele... me fez companhia. Foi assim que nos apaixonamos. Eu sinto muito, não tivemos coragem de dizer-lhe isso antes.

- Alicinha, pelo amor de Deus! Você não pode me trocar pelo paspalhão do Cláudio! Ele é o sujeito mais idiota da empresa, ele...

- Por favor, Marcelo, não abaixe o nível. Sei que nós agimos mal, deveríamos ter falado com você antes, mas foi algo além das nossas forças! Você estava sempre muito ocupado para mim, e ele me deu atenção, respeito, carinho...

- Você é louca! Eu estava ocupado sim, mas era pensando no nosso futuro! Alicinha, eu te amo, eu quero me casar com você!... Olha, vai sair a minha promoção, eu te juro que vou poder te dar toda a atenção do mundo de agora por diante!...

Ela deu um suspiro do outro lado da linha.

- Eu sinto muito, Marcelo. Você teve a sua chance e não soube aproveitar.

- Você vai trocar um cara promissor como eu por outro que é praticamente... Office boy da empresa?...

- Ah, Marcelo, Marcelo! Como você ficou arrogante! Não sei onde estava com a cabeça quando aceitei te namorar! Pois saiba que ele é muito mais homem do que você jamais será!...

Ela desligou, e eu fiquei ali, com o telefone na mão, arrasado e furioso. Arremessei o aparelho com força na parede, chutei a mesinha e empurrei o sofá de encontro ao abajur, que se espatifou no chão. Eu estava me sentindo humilhado por ter sido traído assim, sem dó nem piedade, ainda mais por alguém que era praticamente um débil mental como aquele tal de Cláudio. Ah, mas isso não iria ficar assim não! Corri para a cozinha, comecei a abrir as gavetas do armário, até encontrar o que procurava: meu jogo de facas japonesas. Escolhi a mais afiada de todas e guardei no bolso interno do smoking.

Se eles achavam que iam se divertir as minhas custas, estavam muito enganados.

CINCO

Ah, mas ele ia ver o que era bom! Onde já se viu, logo o Cláudio, aquele bobalhão que sempre fazia papel de trouxa na empresa... Safado, roubou a minha garota! Quantos já saberiam? E ela, dois meses me enganando... Eles se arrependeriam amargamente.

Estava a cerca de cem por hora na pista central da Avenida das Américas, na Barra da Tijuca. Dirigia como um louco, tentando chegar depressa no local onde se realizaria a recepção, e nessa pressa havia furado todos os sinais vermelhos e cometido as maiores barbaridades possíveis a um motorista no trânsito. À medida que o tempo passava minha raiva só aumentava. Eu queria chegar logo, para olhar bem na cara daqueles dois e enfiar a mão naquele paspalho.

Olhei o relógio, eram 21h20. Percebi que o cronômetro estava funcionando, pois não marcava mais o mesmo que anteriormente. Engraçado, ele parecia andar de trás para frente...

Na fração de segundos em que me distraí olhando o relógio, um dos pneus do carro explodiu, provocando um barulho terrível e fazendo com que eu perdesse o controle da direção. Tentei manobrar, mas o volante não respondia aos comandos. Os freios também falharam, e eu fiquei à mercê da sorte. Deslizei pela pista, sem direção, o carro virou de lado e capotou uma, duas, três vezes, parando somente quando atingiu a mureta de proteção que dividia as duas pistas.

Para minha sorte, se é que se pode dizer isso, eu estava usando o cinto de segurança, de modo que pude sair do carro, meio grogue e com vários arranhões pelo corpo, mas ainda de pé.

Algumas pessoas que estavam num ponto de ônibus e presenciaram a capotagem espetacular se admiraram a me ver sair do carro por meus próprios meios.

- Tudo bem, eu estou bem! – falei, ao vê-los se aproximar com cara de tragédia.

- Moço, é melhor o senhor esperar o corpo de bombeiros. Vai que tem alguma hemorragia interna...

- Não, eu já disse que estou bem!

Mãos e braços me amparavam, mas eu só pensava na minha vingança.

- Sente-se aqui, por um momento, até passar a tontura.

- Eu não posso, já disse! Tenho um compromisso...

Uma velhinha se admirou:

- Compromisso? Mas o senhor não está em condições de ir a lugar algum. Só se for para o hospital!

Olhei o meu reflexo no vidro do carro e me assustei: um corte no supercílio deixou meu rosto banhado em sangue, apesar de parecer um corte superficial. Na verdade, o que me assustou mesmo foi aquela sombra negra pairando sobre mim, que eu pude ver novamente pelo reflexo.

- Essa sombra... Que sombra é essa sobre mim?...

As pessoas me olhavam sem entender.

- Do que ele está falando? Será que o choque afetou a cabeça?

Nesse momento eu percebi que ninguém mais via aquela sombra, na realidade, nem eu mesmo, pois quando tentava vê-la virando a cabeça para cima, eu só fitava as estrelas no céu. Tornei a olhar o vidro e a sombra estava lá, e parecia ter baixado um pouco mais em relação a horas atrás. Meus pelos ficaram todos arrepiados.

SEIS

O táxi me deixou na porta do salão nobre onde a recepção se realizava. Desci do carro mancando, pois machucara também o pé direito no acidente, e à medida que meu sangue esfriava, outras dores iam surgindo pelo corpo. Meu aspecto geral era de dar dó: o smoking todo esfarrapado e sujo de sangue, cabelos despenteados, um enorme talho não cicatrizado na testa, mancando. Mas estava lá. Ninguém poderia me negar a glória de ser declarado membro da diretoria naquela noite.

O segurança, ao me ver naquele estado, tentou me barrar:

- Desculpe senhor, mas esta é uma festa particular.

Sem uma palavra, retirei o meu convite do bolso do smoking. Estava completamente amassado, e sujo de sangue, mas ainda legível.

Meio a contragosto o homem me deixou passar.

- Sugiro que vá ao banheiro antes de entrar, senhor. Sua aparência é lamentável.

Olhei para ele com a resposta na ponta da língua, mas pelo seu tamanho, preferi calar-me. Entrei quase me arrastando no enorme salão ricamente decorado e me senti muito mal por estar naquela situação. Mas pensar no prêmio que receberia dali pouco me confortava dos olhares de desprezo que estava recebendo desde que colocara os pés naquele lugar.

Eu sabia que nunca fora muito popular dentro da empresa, mas nessa noite em especial, todos me evitavam. Creio que sempre fui considerado esnobe e metido pelos meus colegas de trabalho, mas não havia problema, eles me veriam triunfar sobre o desprezo que estavam me oferecendo!

Meus olhos procuravam o motivo da noite ter se transformado num pesadelo. Avistei-a de mãos dadas com o paspalho, do outro lado do salão. Pensei seriamente em ir até lá e tomar satisfações dos dois, mas ainda não era a hora. Depois eu saberia como fazê-los se arrepender amargamente pela traição. Fiquei quieto no meu cantinho, meio que escondido do pessoal que trabalhava diretamente comigo.

Acabei por aceitar o conselho do segurança e fui ao banheiro, tentar melhorar um pouco a aparência, pois se aproximava o grande momento. A primeira coisa que fiz foi observar atentamente o espelho, mas não havia sombra alguma dessa vez. Será que ela não era produto da minha imaginação, ou antes, do meu sistema nervoso? Afinal o stress pode causar alucinações, e eu estava vivendo sob pressão há vários meses.

Olhei para o relógio e tentei retirá-lo mais uma vez, sem conseguir. Aquilo me intrigava. Parecia algo tão fácil de ser feito, e, no entanto...

Lavei o rosto, limpei o sangue da melhor forma possível e voltei para a festa.

Estranhei os aplausos que ouvi logo que pus os pés no salão novamente, então me aproximei um pouco para saber o que estava acontecendo. Um dos membros da diretoria havia subido no pequeno palco montado numa das pontas do salão e anunciava algo ao microfone.

O chão se abriu sob os meus pés quando avistei Cláudio ao lado dele, com a maior cara de felicidade do mundo, sendo aplaudido por todos os presentes. E tudo só piorou quando, ao me aproximar mais, pude ouvir o que ele dizia:

- ...E temos certeza que você mereceu essa promoção, portanto, seja bem-vindo à diretoria da empresa!

Os dois se abraçaram, enquanto um aplauso ensurdecedor abafava os meus gritos de revolta.

Aquilo era um pesadelo, tinha de ser! Eu ouvia, mas não acreditava no que meus olhos viam: os membros da diretoria, um a um, abraçando e parabenizando o novo diretor: Cláudio, o homem que me havia roubado tudo o que eu mais queria!

- NÃÃÃÃÃOOOO!

SETE

O meu grito varreu de um silêncio sepulcro todo o salão. Todos os olhos se voltaram para mim:

- Não é possível... – eu comecei a andar em direção ao palco. – Isso é um pesadelo, tem de ser! EU deveria ter sido o escolhido! Esse cretino não tem competência, ele não passa de um Office boy... Foram anos e anos de dedicação a esta empresa. Por ela eu esqueci da própria vida! Eu abri mão de viver para conseguir essa promoção, e agora vocês entregam de mão beijada para esse paspalho, que além de tudo também roubou a minha garota? Não, eu não aceito isso!

Aproximei-me velozmente do palco, subindo os degraus de uma só vez, e peguei a todos de surpresa. Fiquei frente a frente com o meu rival, que estava espantado demais para reagir.

- Você acha que me venceu? – eu o agarrei pelo colarinho. – Você acha que vai roubar o meu emprego, a minha namorada e sair impune disso?

Eu havia tirado a faca japonesa do bolso interno do smoking. Quando ele percebeu o que iria acontecer, arregalou os olhos e tentou soltar-se, mas já era tarde demais: cravei a faca na sua barriga, enquanto o olhava com um ódio descomunal. Foi com prazer que eu o matei com minhas próprias mãos!

As pessoas, surpreendidas que foram, demoraram a sair daquele estado de paralisia. Os cincos outros que se encontravam no palco deram um passo atrás no exato momento em que o corpo de Cláudio caiu sobre o tablado. Foi só então que eles viram a faca ensanguentada em minha mão e compreenderam o que acabara de acontecer. De repente tudo virou uma bagunça só: as mulheres começaram a gritar e a correr. A confusão se generalizou, com mesas sendo derrubadas, copos e talheres voando em todas as direções. A última coisa que avistei antes de desaparecer em meio à multidão foi Alicinha, com lágrimas nos olhos, segurando o corpo sem vida de Cláudio.

Aquilo me deixou paralisado por instantes. Mas ao avistar os seguranças tentando me alcançar, tratei de dar o fora daquele lugar maldito.

OITO

Consegui pegar um ônibus que me deixou na estação Central do Brasil. Já passavam de duas da manhã e eu estava sentado em um banco próximo ao terminal rodoviário urbano. Alguns bêbados ainda torravam o restante do dinheiro ou negociavam com prostitutas um desconto no preço do programa.

Eu estava desnorteado. Há apenas algumas horas atrás, era um homem que tinha um futuro brilhante pela frente, e agora havia me transformado em um assassino procurado pela polícia! Meu Deus, como podia ter acontecido tanta desgraça assim em tão pouco tempo na minha vida? Como?...

Uma mulher vestida em trajes ciganos passou ao meu lado, e de repente me olhou assustada e começou a gritar:

- Você tem o espírito da morte! Você tem o espírito da morte!

Eu a olhei desinteressado.

- Ah, não. Era só o que me faltava!... Escute aqui, é melhor você dar o fora. Eu hoje não estou de bom humor.

Mas ela arregalou mais ainda os olhos.

- Meu Deus, a sombra da morte! Eu vejo a sombra da morte sobre sua vida!

Ela enfiou a mão no pescoço, pegando uma espécie de colar e começou a entoar uma ladainha num idioma que eu não conhecia.

- O que você disse? Você também consegue ver a sombra?

Eu fiz menção de me aproximar, mas ela deu um passo atrás.

- Não! Não se aproxime de mim!... Você carrega a maldição.

Eu estava ficando desesperado.

- Maldição? Como assim? O que significa isso?

- Vá embora! Não se aproxime mais de mim. Tudo o que você toca é destruído!

Algumas pessoas nos olhavam de longe, curiosas com aquela gritaria em plena madrugada, mas ninguém ousava aproximar-se.

- Escute, por favor. Olhe... – retirei a carteira do bolso e estendi várias notas de 50 reais. – Eu pago! Diga-me tudo o que você sabe... O que significa essa maldição...

Ela olhou as notas estendidas, ficou na dúvida se pegava ou não. Por fim, disse-me muito à contra-gosto:

- Guarde o seu dinheiro, ele também está amaldiçoado. Você deve ter adquirido um objeto... Comprado ou talvez ganhado de alguém, não sei. Mas o fato é que esse objeto carrega consigo uma terrível maldição. Tudo aquilo que você tocar será destruído. E isso inclui pessoas...

Imediatamente me lembrei do relógio! O relógio era a chave! Por isso toda a minha vida começou a ruir, a partir do momento em que o coloquei no pulso.

Lentamente deixei à mostra o pulso onde estava o relógio. Ela olhou para ele, com um misto de admiração e medo. Quando tornou a falar, sua voz era firme, imperiosa.

- Você precisa se livrar desse relógio o mais rápido possível. Quem morre com ele, perde a alma para sempre!...

Lágrimas escorreram dos meus olhos.

- Livrar-me dele? Mas como?... Eu já tentei de todas as formas, esse maldito relógio não sai. Está preso ao meu pulso. Ajude-me, por favor!

Eu tentava me aproximar da cigana, mas ela se afastava de mim a cada tentativa.

- Pobre homem... Eu sinto muito, mas ninguém no mundo pode ajudá-lo! Dizem que esse objeto foi confeccionado pelo próprio diabo, para desgraçar a vida de Jó. Por causa dele, Jó perdeu tudo o que tinha em poucas horas.

- Mas do que você está falando?

- Eu estou falando da Bíblia, meu filho! Você não conhece a história do homem justo que perdeu tudo o que tinha, mas mesmo assim permaneceu fiel a Deus? Provavelmente ele foi o primeiro a possuir esse relógio, ou pelo menos aquilo que está dentro dele. É claro que naquela época não seria possível existir algo desse tipo... Com certeza, sua forma era diferente. Talvez uma ampulheta, ou um pequeno relógio de sol, não sei. Diz a lenda que a cada geração existem pessoas, servidores do demônio, que se encarregam de fazer a atualização da peça, por isso ninguém tem certeza de como é o objeto que carrega a maldição. Conheço essa lenda desde pequena, na Romênia. Vejo agora que não era apenas uma lenda! É a mais pura verdade...

Ela olhava fascinada para o relógio. Quanto a mim, eu o daria tranquilamente a ela, se tivesse como retirá-lo do pulso.

Tornei a sentar-me no banco, desanimado. Custava a crer naquela história fantástica, e se não fosse estar acontecendo comigo, certamente riria na cara dela.

- Essa peça é tão antiga quanto a morte. – ela complementou.

- O que posso fazer? Eu não quero morrer! Por causa desse relógio eu matei um homem. Minha vida está desgraçada, mas eu não quero morrer!...

- Só existe uma saída: VOCÊ TEM QUE TIRÁ-LO DO PULSO, custe o que custar, ou você morre ao nascer do dia.

- Droga, eu já tentei! Ele não sai... Essa porcaria é indestrutível, ele não sai do meu braço de forma alguma!

Ela me encarou por alguns instantes, pensativa. Por fim, disse com pesar:

- Corte o braço. É a única forma de você se livrar do relógio.

E desapareceu na escuridão da noite.

NOVE

E isso me trás de volta ao alto do edifício da Central do Brasil. As pessoas que saem do terminal ferroviário parecem formigas se movimentando lentamente lá embaixo. Vejo os primeiros raios de sol iluminando a cidade naquela manhã preguiçosa de primavera. Olho o maldito relógio, causa de todo o meu infortúnio, mas não me animo a continuar a tentar destruí-lo. Tudo o que fiz durante o resto da noite foi tentar removê-lo do meu braço, sem, contudo obter sucesso. Eu conseguia entender agora o motivo que fez com que aquele pobre-diabo se jogasse em cima do meu carro. Ele não aguentou, assim como eu não também não aguentaria.

Coloco as mãos no bolso interno do smoking e estarrecido, retiro a faca japonesa suja de sangue com a qual havia me transformado em assassino.

- “Corte o braço. É a única forma de você se livrar do relógio”.

A frase da cigana soou na minha mente como uma luz.

Olhei para o mostrador: um minuto para seis da manhã.

- Oh, Deus, eu preciso de coragem para fazer isso! Dá-me coragem...

Pego a faca.

Quarenta segundos para seis.

Apoio o braço na mureta de proteção e levanto a faca acima da cabeça.

Vinte segundos para seis.

Fecho os olhos. Eu não quero ver isso.

DEZ

Roberto Carlos desceu do trem cantarolando uma canção do seu homônimo famoso e dirigiu-se vagarosamente em direção à saída. Estava adiantado demais para o trabalho, por isso comprou o jornal mais sanguinolento da cidade e sentou-se num dos bancos ao lado da banca de jornal. De repente, algo cortou o céu e caiu justamente sobre o tablóide, derrubando-o no chão. Roberto deu um pulo, desconcertado, e olhou assustado para a mão ensanguentada que repousava em meio à página esportiva que ele lia segundos antes.

- Meu Jesus, é uma mão!

Teve a impressão de ouvir um grito de dor ao longe, mas não conseguiu vislumbrar de onde partira.

Ainda assustado, encostou a ponta do sapato no membro caído no chão e percebeu que havia algo em meio àquele sangue todo. Olhou para os lados, ninguém parecia ter notado o que acontecera.

Sentou-se novamente, retirou uma caneta do bolso e com muito cuidado levantou o pesado objeto que se mostrava à luz do dia.

- Parece um relógio...

Com um lenço, limpou o excesso de sangue que cobria a peça. Os raios de sol incidiram em cheio sobre ele, lançando um brilho dourado no rosto de Roberto. O homem abriu um sorriso imenso, guardou o relógio de ouro no bolso e rapidamente tratou de se afastar da mão que jazia esquecida em cima do jornal.