Quando eu morri

Tudo girava e eu caia para dentro de mim mesma numa espiral como um parafuso. Eu sentia como se me diminuísse, e a escuridão da minha inconsciência me absorvesse e envolvesse, e eu tinha medo de deixar de existir, mas, no entanto, eu estranhava o fato de continuar pensando e analisando a mim mesma e a situação que eu vivia, como se fosse outra pessoa, um espectador exterior.

Eu sentia entre os meus braços, envolvido num abraço, o meu coração. Sim, o meu coração! Sentia-o bater fora do meu peito, cálido e suave, e indescritivelmente próximo. Mais próximo do que se estivesse dentro de mim mesma ainda. Às vezes eu o apertava com carinho, e nesse ato, eu sentia outros corações, e sabia serem os das pessoas que eu amava. Era tão estranho, e ainda assim, perfeitamente normal para mim. Tudo oscilava entre um total estranhamento, para uma completa familiaridade com tudo.

Nessa espiral indefinível, eu me vi e vivi em todos os dias da minha vida, em cada ato, sensação e emoção de uma forma aumentada e inenarrável, como se agora fosse real, e antes, apenas pálido sonho. Mas tudo isso eu sei, passou-se em menos de um segundo. Menos de um segundo! Lá estava eu, e cada pequeno ato e cada pequena sensação que eles despertaram no coração e na alma dos que dividiram a vida comigo, ainda que brevemente. Senti a dor aguda de uma menina, quando ri do vestido que ela usava numa festa, e lamentei profundamente aquele meu erro, e senti profundo pesar de não ter entendido naquele dia, os motivos que a levaram a ir com aquele vestido, e a tristeza amarga que causei a ela, como entendendo agora. Eu não a via agora, como a vi naquele dia, uma menina qualquer a qual nenhuma consideração minha era devida. Mas a vi como uma irmã que eu pudera ter tido e abraçado, e devido carinho e consideração, alguém que pudesse ter me feito muita falta, um dia.

E então, um segundo depois de eu ter vivido toda a minha vida de novo, e ainda em vertigem na espiral, lembrei-me carinhosamente do meu irmão, e da família que me recebeu naquela vida, e vi, entre uma névoa vaporosa e cinza, um diminuto e brilhante ponto. Era a terra, eu sabia que era, de uma forma que eu não saberia explicar. Até este momento eu não tinha me visto com membros, braços ou pernas. Mas ao perceber o ponto brilhante, trouxe-o na palma de minha mão, e o observei com um misto de curiosidade e tristeza. Uma forma estranha de consciência dentro de mim sabia que ali vivia um sem número de seres, naquele diminuto ponto azul, e embora agora eu não saiba explicar o porquê, eu sei dentro de mim a razão de ser de cada um e de cada acontecimento traduzido na forma de luz na palma de minha mão.

E foi nesse momento que senti falta de uma referência, senti falta de um chão sob os meus pés. E então aconteceu da espiral se diluir e surgir diante de mim, não apenas um chão, mas uma paisagem indescritível, de horizonte amplo e perpétuo, tão distante, mas tão distante, que eu não saberia traduzir, embora eu tente muito! Mas a despeito da distancia incomensurável, eu via com clareza impressionante, na mais distante montanha, o mais singelo riacho deitar em forma de cascata. Nada na terra pode se lhe comparar! Havia aromas, eflúvios, emanações da natureza que se desprendiam de cada imagem e sentimento e vinham a mim se apresentar e me preencher. E cores das mais variadas formas e combinações e nenhuma delas me foi conhecida por mim na terra, e desciam e subiam como correntezas que emergem do fundo do mar, uma forma aproximada, mas não exata daquilo que vi, senti e ainda vivo, nos recônditos mais profundos do meu ser. Eu não fui, nem de longe, uma pessoa boa. E a dor dos outros que trouxe comigo, fazia-me me envergonhar de estar ali, de uma forma tão profunda, que chorei. E o meu pranto foi tão profundo e dolorido, que ainda o soluço dentro de mim agora, se é que pode me compreender.

Eu procurei o meu irmão, ele sempre me consolava, quando eu estava aberta a isso. Então eu o vi. O via como um rosto no fim de um túnel longo e turvo, e o percebi assustado. Ele me olhava petrificado, paralisado, e ao perceber o aturdimento que isso lhe causava, voltei correndo pra mim mesma, e comecei a me lembrar o que me levara até ali. Um aneurisma, e eu estava morta. Lembrei-me de tudo! Acabara um ciclo, e agora tudo parecia-me estranho. Eu era eu mesma, mais também era outras pessoas. Posso dizer que todas conviviam bem comigo mesma. Mas eu ainda precisava de referências de meu antigo mundo. Eu ainda tinha muito da terra em mim.

Foi quando um trilho de trem dourado me apareceu, vindo do infindo horizonte, e uma locomotiva dourada e reluzente cruzou-lhe com especial velocidade, e embora eu sabia que ela não necessitasse de vapor para se movimentar, ela vinha largando sua longa linha de fumaça ao vento, ignorando-me completamente.

Alguém, ou algo, esforçava-se para me deixar a vontade naquele reino novo. Um reflexo da terra, entre a realidade e um sonho, mas ainda mais do que os dois, e palavras não podem definir nem e um nem outro. E sentia-me em casa, pela primeira vez, em todas as minhas vidas.

E embora eu fosse eu, e me sentisse em cada entranha e réstias de meu ser. A menina que fui, que cresceu até os seus 29 anos, eu ainda era, com a mesma legitimidade e certeza, outros tantos meninos e outras tantas meninas, que viveram, morreram e ainda vivem, e viverão, com suas respectivas famílias e amores a vagarem em torno de mim nas noites dos tempos.

London
Enviado por London em 27/06/2016
Reeditado em 27/06/2016
Código do texto: T5680045
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