O COVARDE E OS ZUMBIS

Depois da chuva apareceram. Por volta de dez, uma dúzia, até mais. Da janela vi a aproximação. Toda a casa estava no mais completo breu, silêncio, mas eles sentiram qualquer coisa viva lá. A coisa era eu. Queriam me pegar. Queriam meu sangue. Fiquei gelado de pavor. Me arrependi por um instante. Deveria ter ido com Cláudio e os outros, é, deveria ter ido sim. Mas sou covarde por demais. Tremo só em pensar em ficar lá fora no mesmo espaço dessas coisas. Os mortos caminham do lado de fora. Caminham atrás dos vivos. Atrás de sangue quente. Carne. Que gosto devemos ter para eles? As batidas na porta e nas paredes soam por toda a casa. Fazem um barulho do inferno. Deveria ter ido com eles, Cláudio tentou me avisar, ele tentou. Não dei-lhe ouvidos. Estou aqui, sozinho, com os mortos a reclamar minha carne. Seus gemidos são terríveis. Sons de gente faminta, um ruído dolorido que atravessa a pele, fura e pega na alma, pega forte, com garra de bicho feroz. Unha podre, dura, feita para rasgar, tirar as tripas de dentro da barriga. Forma mais cruel não há. A porta range, não dura muito. Não tenho nada para me defender aqui. Me avisaram, todos avisaram. Se me lembro, Júlia chorou, é sim, chorou, minha irmã, tão bonita, a fiz chorar. Mas não tinha jeito de eu sair não. As pernas me escaparam, tremedeira sem controle. Deixaram-me uma bala. Presente de Cláudio, bom sujeito o Cláudio. Manteve-nos vivos por bastante tempo. Sozinhos teríamos definhado, entregues à paralisia do medo, como crianças que caíram dentro da área dos tigres num zoológico. Caso horrível esse. Lembro bem. Os tigres tinham sido alimentados pouco antes, mas não pouparam as crianças. Depois foram abatidos. Exigência do povo, dos pais que deixaram os filhos caírem junto dos tigres. Os tigres estão no andar de baixo agora. Tigre que já foi gente, já foi vivo. Os mortos farejam-me. Logo estarão à porta de meu quarto. Zumbis, zunindo, como abelhas a procura de mel. Pergunto: que mal fiz? Que maldade pesa sobre minha alma para merecer destino tão horrendo? É, tenho uma bala. Podia ser pior. Mas a escolha, a escolha é a pior coisa que há no mundo. Antes não tivesse a bala. A bala me deixa confuso. Terei coragem de apertar o gatilho? Terei coragem de acabar com minha própria vida? Não confio em minhas mãos. São rebeldes iguais às pernas. Tolas. Irrequietas. Mesmo antes da morte diabólica resolver andar pelas ruas, já então, não possuía o controle de minhas mãos, sempre tremendo, mais bambas que as pernas, frágeis. Deixaram-me à mercê delas. Ouso os passos na escada. Não demora, estarão aqui em cima. O final é sempre triste, mas nem sempre é horrível. Meu final será triste e horrível. Tenho plena consciência disto, sou a testemunha única do destino que me foi reservado. Um covarde trancado num quarto, um ser inútil, incapaz de tirar a própria vida para aliviar um pouco da dor de ser devorado vivo. Mas sou do jeito que sou, sempre fui assim. Quando ia ao dentista nunca aceitava tomar anestesia, tamanho era o meu medo de injeção na gengiva. Encarava o motor da broca, aguentava como um valente a extração das cáries, uma a uma, suportava a dor, dor tão desnecessária, dor sem sentido. A gengiva podre deles encontraria minha pele, os dentes e as unhas rasgariam-me a carne. Batem à minha porta. As batidas são fortes, parecem bater em meu peito, em minhas costelas, parecem querer adentrar meu coração. Tenho coração prisioneiro, gradeado. Sou homem solitário. Penso no rumo que a vida seguiria, caso a calamidade não fosse real, caso não houvessem batidas à porta. Teria sido sozinho até o fim? Até a velhice me atingir? Acredito que sim. Morreria sozinho em minha cama. Uma morte de covarde, de um velho que nunca tentou viver, escondido, com medo da vida. A morte espera-me do lado de fora do quarto. A vida deixou de me esperar há algum tempo. Nunca dei-lhe o devido valor. Tentaram mostrar-me, tentaram fazer-me enxergar, mas insisti em não querer ver. Droga! Viverei um pouco agora no fim. Atiro a arma e a bala pela janela. As batidas na porta tornam-se mais violentas. No fundo de minha mente aparece uma imagem, um rosto. Não o vejo muito bem, mas o reconheço. É o rosto de meu pai. Virgílio era o seu nome. Meu pai sim foi um homem forte, muito diferente do filho, minha irmã merece seu sangue, eu não. Quando criança quis me ensinar a brigar, disse que era importante um homem saber se defender. Nunca fui de briga, os outros garotos gostavam de filmes de ação, gostavam de se bater no recreio, eu ficava longe, distante, escondia-me com um livro na mão, única companhia. Agora não tenho nenhum livro. Não tenho mais minha arma e nem a bala que me deixaram. Restaram-me os punhos e pretendo usá-los. Vivi como um covarde, mas pretendo morrer lutando, como um valente ou como um tolo. Aguardo ansioso a porta ser arrebentada, qual será o efeito de um soco meu na cabeça morta deles? Qual será a sensação de socar essas coisa? De socar alguém? Que coisa diferente é essa que sinto? Os sons ficam estranhos. Algo perturba-me os sentidos. Deve ser euforia, a sensação de fim, o clímax do momento. A porta cai. Vejo a coisa entrar no quarto. É agora, agora vou experimentar a sensação de viver. "Não deixe o polegar dentro da mão", "soque com as articulações do indicador e do dedo médio", os conselhos soam em meus ouvidos, é como se ouvisse as dicas pela primeira vez. Acerto o primeiro zumbi bem no meio do nariz carcomido, ele recua poucos passos, quase indiferente ao soco. Meu coração bate como nunca. Minha mão dói. Estou feliz. Sem dúvida. Estou feliz.

Alexandre Royg Machado
Enviado por Alexandre Royg Machado em 10/06/2016
Código do texto: T5663100
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