Pai da mentira

O doutor enfim resolveu encerrar sua longa e brilhante carreira. Fechando a cortina do palco de sua vida pública, despediu-se risonhamente dos holofotes de seus inumeráveis correligionários, já saudosos do mentor que tanto contribuiu à sociedade e ao mundo do amanhã. Nada mais era como antes dele, e nunca mais voltaria a ser. Sua cruzada acadêmica e política contra seus adversários era invejável: dono de astúcia e inteligência ímpares, venceu através de refinada dialética toda e qualquer oposição aos seus ideais, conquistando muitos corações e mentes e ditando políticas públicas nacionais e internacionais. Desmistificou comportamentos e crenças, revelou falsos moralismos e contradições gritantes, calou lideranças respeitáveis fazendo-os corar e gaguejar, converteu as opiniões mais ferrenhas em favor de seu conceito e sua lógica.

Agora, curvado pelo peso dos anos, era um decadente arquétipo humano, porém seus olhos e discurso inflamados demonstravam um espírito ainda altivo e capaz de causar muito estrago a quem ousasse desafiá-lo para o debate. Mas o físico pedia repouso e, relutante, forçou-se à aposentadoria e a um período sabático.

Buscando conciliar corpo e mente à sua nova condição de aposentado, decidiu encontrar-se consigo mesmo em um retiro isolado, longe de tudo e todos, numa fazenda longínqua. Nem sequer sua família foi avisada de onde ele estava. Foi só, levando consigo alguns livros, papel e sua velha máquina de escrever, entre outras poucas coisas que lhe bastassem.

Acostumado a uma agitada e superprodutiva vida, foi um desafio submeter-se à calmaria e ao silêncio, mas sua determinação encampou isso como mais uma meta e ele se pôs a encará-la como a rocha que sempre foi.

No princípio foi difícil se desvencilhar do ritmo habitual, mas aos poucos foi relaxando e buscando colher as experiências do bucolismo em benefício próprio. Saía para caminhadas no campo e na mata, observava pássaros e flores, começou a discorrer sobre eles. O crescente contato com a natureza abrandou a marcha de suas críticas ao mundo e ele foi voltando-se cada vez mais à análise de si e de sua vida.

A autoanálise o levou a lugares até então obscurecidos de seu interior, libertando velhos monstros esquecidos sob toneladas de anos e bagagem de vida. O constante questionamento levou-o a abalar seus fundamentos ocultos, revelando o frágil equilíbrio de seu ser com o meio e a existência.

Sua obstinação o empurrou aos abismos interiores como uma obrigação, um ritual de passagem necessário para o renascer de um novo homem. Porém a queda neste abismo não libertou a fênix que ele cria presente dentro de si, mas pelo contrário: foi um catastrófico voo de Ícaro rumo ao negrume da fenda sem fim.

Progressivamente, aquilo que era um gesto necessário para a readequação de seu ser à velhice começou a ser algo cada vez mais torturante. Questionou a si próprio sobre o motor que o impeliu a desconstruir a sociedade em que estivera inserido e começou a contestar a validade de toda a sua produção. Não encontrando as repostas necessárias às questões reveladas, foi tomado de profunda tristeza e vazio angustiante que o conduziram à depressão.

Acordava tarde como nunca e quase não comia. Aquele fogo que o consumira a vida toda se abrandou em uma fraca chama, suficiente apenas para mantê-lo imerso nas dúvidas a que se flagelava constantemente. Sua única libertação eram os sonhos, onde estava jovial e resoluto como sempre; mas ao despertar sob o calor dos raios do sol da tarde que entravam pela velha janela, suspirava pesaroso por mais um dia de existência sobre a terra.

Finalmente admitiu sua derrota retumbante e recorreu ao expediente das drogas: deu início ao consumo de doses elevadas de medicamentos controlados e os misturava sem qualquer critério senão o de dopar-se completamente.

Se morresse, tanto faria.

Depois de algum tempo, cada vez mais destruído, começou a reparar que, das suas alucinações, uma era recorrente ao final do efeito dos medicamentos: um homem nu aparecia sentado na cadeira postada à cabeceira de sua cama, encarando-o por horas, sem nada dizer ou fazer. Após recuperar-se da dose, via que estava sozinho de novo.

Seu intelecto lhe dizia que aquilo não era real, como nada do que ele via ou sentia enquanto se drogava, então não seria lógico temer ou interagir com um devaneio. E isto se repetiu por dias e semanas, sempre da mesma forma.

Numa tarde chuvosa estava ele deitado na cama. Fazia muito tempo que não se levantava dali, e a cena era chocante: cheirava mal, seus olhos estavam arregalados nas fundas e enegrecidas órbitas, seu corpo era pele e osso com muitos hematomas e feridas. Mal tinha forças para continuar aplicando drogas nas suas quase inexistentes veias distribuídas pelo corpo todo picado das agulhas de injeção. O quarto sombrio pelo crepúsculo plúmbeo era dominado por pesaroso silêncio, quebrado apenas pelo leve som da fraca chuva no telhado. O velho que ali jazia estava provavelmente nas últimas, em nada parecido com o que havia chegado há alguns meses a este retiro. Seu aspecto esquelético dava àquele lugar tenebroso a impressão de um pútrido mausoléu.

Ofegante, olhou para o lado. O homem nu estava lá, encarando-o fixamente. Seus olhos eram negros e indiferentes. Sua cabeleira era igualmente negra e desgrenhada, e sua expressão não transparecia emoção qualquer: nem piedade, nem acusação. Seu corpo era bronzeado, e seu aspecto não poderia ser mais comum – uma pessoa ordinária. Não demonstrava nenhuma reação ao moribundo que agora correspondia ao seu olhar com uma atenção como nunca fizera antes. Este, então, resolveu dirigir-lhe a palavra, quebrando o silêncio sepulcral de sua malcheirosa boca lacrada há muito tempo:

- Q... quem é v... você? – Sussurrou com dificuldade, estranhando a própria voz embargada.

Silêncio. O homem ainda o encarava. “Besteira... pura besteira, seu velho maluco... nada mais é que...”.

- Sempre estive ao seu lado, mas nunca tive o prazer de me apresentar. – O homem respondeu, para espanto do doutor, que o olhou com terror e dúvida. Sacudiu a cabeça e não podia acreditar que aquilo era real... Era criação de seu subconsciente. Um efeito colateral da superdosagem dos medicamentos, não existia homem ali ao seu lado...

- Você duvida que eu seja real, certo? – O homem nu indagou, ainda impassível.

- Claro. Você não entrou aqui, não tem como. E você desaparece sempre que estou sóbrio, é um fruto de minha imaginação. Não tem como existir.

- É bom que você duvide. Revela que ainda pode pensar, mesmo sob tanto desespero. E me permite muita coisa.

- Como o quê?

- Que eu seja satisfeito pelas suas ações. E você é especial, desde que era pequeno vi muito potencial, e você fez muito para mim.

- V... você é o Diabo?

- Me chamam de muitas coisas, inclusive disto. Sim, sou o Diabo. Mais propriamente Lúcifer, o príncipe dos demônios.

O doutor riu em tosses roucas. O homem nu limitou-se a continuar sem reação. O velho olhou para ele recobrando a chama presente nos olhos, e o homem nu deu leve sorriso:

- Gosto desse seu olhar. Foi com ele que destruiu tanta coisa.

- Você não existe... Você é mero devaneio de minha mente carcomida, nada mais que isso.

- Como já disse, isso é muito bom e me permite muito. As pessoas ao longo da história me negaram, mas me ajudaram. Se me conhecessem, provavelmente várias fugiriam espantadas e fariam o contrário de meus desejos. Sabendo disto, mantive-me oculto e algumas vezes impelindo o homem a realizar meus desígnios, mas nunca precisei instigar muito. O próprio homem já faz isso por si só.

- Se você existe então Deus também existe, certo?

- Sim. Mas isso não importa para você, creio eu.

- Não! Isso é coisa de gente atrasada, fanática... Idiotas... Malucos...

- Concordo com você de que a amizade com Deus é coisa de idiotas, mas ela é possível, assim como a amizade comigo. E você a cultivou firmemente sem sequer saber disto. Ou sabia e não queria acreditar? – O Diabo chegou mais perto dele.

- Olha, você até cheira a enxofre! E cadê seu tridente, ó serpente primitiva, pai da mentira? – Debochou o velho, tossindo carregado. O Diabo seu leve riso e recostou-se novamente:

- Sim, eu tenho este cheiro... Embora o seu também não seja dos melhores. Habito regiões desoladas e mortas, não teria como ser diferente. Mas isto me satisfaz tremendamente.

“E chega de falar de mim. Você terá a eternidade para me conhecer, pois Deus não se importa mais. Venho aqui falar com você, sobre você. Sabe este vazio e este desespero? Você quer logo o seu fim?”

O doutor continuou rindo da situação, fechando os olhos de tanta graça e fraqueza. Mas eis que sua inteligência ressurgiu como um lampejo que o fez parar de rir imediatamente: percebeu que não havia se drogado naqueles últimos dias. Como então aquela visagem seria possível? Botou as mãos trêmulas no peito e abriu os olhos: o demônio estava reclinado sobre ele. Em curta distância era possível ver que seus olhos possuíam uma escuridão tão densa quanto as fossas abissais. Seu hálito exalava forte cheiro de cadáver putrefato. Pela primeira vez em tantos anos, o doutor sentiu medo e se sentiu pequeno como uma criança. Tentou falar, mas se engasgou com o pânico. O Diabo, percebendo o espanto do outro, riu e afastou-se dele num salto. Abriu os braços e falou com voz suave:

- Vês agora quem eu sou? Acredita em mim?

Silêncio. O Diabo continuou:

- Vamos, ó grande professor. Responda!

Passado o susto inicial, o intrépido espírito do doutor fê-lo conformar-se com a situação, fosse qual fosse – real ou fantasiosa – e resolveu continuar interagindo com o inesperado interlocutor:

- Eu só posso estar muito louco... Isto não é possível.

- Seja como for, vejo que o tom de sua voz mudou, bem como sua expressão. Parece que está levando esta miragem que vos fala mais a sério. Ou será que a teme?

- Por qual razão te vejo como um homem?

- Digamos que eu posso ser quem eu quiser. E estou assim porque quero travar um diálogo decente com tão honrado auxiliar de meus serviços ao mundo, sem causar espanto nele. Mas vejo que és mais fraco do que eu podia imaginar, sinto medo em você.

- Temo a mim mesmo, do que sou capaz de criar em minha mente distorcida. Mas esse espanto me causa êxtase em constatar a riqueza da mente humana.

- Exatamente, não creia e terá meio caminho andado para fazer parte dos meus. Bom, entre os meus, você já figura há muito tempo. E é exatamente por isso que eu, o primeiro dos demônios, estou aqui hoje. Você é especial e eu desejo ardentemente tê-lo comigo.

- Pois vejo que seu desejo será saciado em breve. Vês minha situação?

- Você irá mais longe do que imagina. Sua hora, como costumam dizer, ainda não é esta, e está longe. O seu criador, aquele que não se importa mais com você, quer que você viva muito e sofra ainda mais. Você não morrerá nesta casa. Dentro de poucas horas te resgatarão e você ainda verá muita coisa, porém acompanhado do sofrimento deste lento suicídio. E eu não posso fazer muita coisa por você, a menos que você concorde.

“Você morrerá e certamente irá para o Inferno, onde sofrerá castigos eternos. Porém, como aprecio sua caminhada destruidora entre os homens, acho injusto que acabe assim, apenado desta forma pelo Deus que te odeia. Aceite vir comigo agora e eu te transformo em um de meus generais. Aquele lá de cima deixou essa brechinha escapar pra mim em suas regras ‘escritas por letras tortas’” – Debochou o Diabo que, após dizer tudo isto, apontou para a porta do quarto, com seu entorno iluminado por uma claridade avermelhada que vinha do corredor afora, como se uma luz tivesse sido acesa atrás dela. Permaneceu em silêncio, observando a reação do velho professor, imerso em dúvidas sobre a realidade daquilo tudo. Depois de algum tempo de reflexão, este lhe respondeu:

- No fundo, penso que nunca duvidei de Deus ou de você. Minha vida inteira busquei negar isso através da ciência e da lógica, e cheguei a acreditar realmente na inexistência da vida – e morte – eternas, mas nunca completamente. Agora aceito que nunca defendi verdadeiramente tudo o que eu pensava crer, mas, sim, defendia o ódio. Odiava Deus, assim como ainda odeio. E o odiei toda vez que vi os homens que acreditavam nele e buscavam seguir sua misteriosa vontade. São todos uns idiotas, marionetes enganadas por um Deus vil. Odeio-os todos, e muito mais esse Deus oculto.

“Sim, Lúcifer, te aceito e aceito a tua proposta. Leve-me e me permita segui-lo por toda a eternidade.”

O Diabo sorriu, exibindo ameaçadoras presas. Sua feição transformou-se em sanha pura, e seu aspecto mudou. Abandonou a antropomorfia e revelou sua real forma, tão medonha que é impossível de ser descrita, para mortal espanto do doutor. A porta do quarto escancarou-se, e demônios saíram famintos para buscar o velho professor, surpreendido pela dor lancinante que sentia ao ser arrebatado às chamas que vinham do corredor. Olhou para trás e viu seu corpo desfalecido na cama do quarto sombrio, os olhos terrivelmente esbugalhados pela visão fatal. Lúcifer, rindo descontroladamente, gritou-lhe umas últimas palavras com apavorante voz:

- Agora sabe o porquê de eu ser chamado de pai da mentira, seu idiota? Acabou de me entregar tua alma, e dessa forma a minha diversão com ela será maior ainda! Eis aí tua recompensa!

Eudes de Pádua Colodino
Enviado por Eudes de Pádua Colodino em 07/06/2016
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