A INOCÊNCIA MORTA

Antigamente lá pelo começo dos anos cinquenta, para ser mais exato os leiteiros costumavam entregar o leite na porta das casas. Usavam carroças puxadas por cavalos e traziam o leite diretamente das fazendas, embalado em garrafas de vidro, que deixavam na soleira das portas ou no parapeito das janelas. Os padeiros também faziam isso. Passavam de madrugada para deixar o pão nas portas ou nas janelas das casas.
Uma vez peguei uma dessas garrafas de leite e levei para casa. Eu tinha sete anos de idade. Éramos tão pobres que não podíamos pagar por uma garrafa de leite diário e uma bisnaga de pão. Então resolvi roubar uma. Era madrugada, não havia alma viva na rua, ninguém me viu. Parecia o crime perfeito e eu, um menino de sete anos, sequer tinha noção de que estava cometendo um crime. Eu só queria mesmo matar a minha fome.
Quando entrei no barraco onde morávamos, a primeira coisa que a minha mãe perguntou foi onde eu arrumara aquele leite. Não precisava nem perguntar. De cara ela soube que eu surrupiara a garrafa de alguma porta, ou parapeito de janela. Imediatamente ela pegou-me pela orelha e saiu me arrastando pela rua deserta, até a porta da casa onde eu havia pegado a garrafa. Sorte dela e minha que era madrugada e ninguém viu a cena. Seria a vergonha para ela e para mim.  Depois que voltamos para a casa ela me deu uma baita surra de cinta. Nunca mais tive coragem de mexer em nada que não fosse meu.
Fico pensando. Se fosse hoje minha mãe estaria sujeita a um processo movido pelo Conselho Tutelar. Eu talvez acabasse sofrendo uma medida sócio-educativa. Considerando o quadro de pobreza e as lastimáveis condições de vida, higiene e educação, visíveis naquele cortiço de barracos onde a gente morava, seria bem possível que o Juizado da Infância e Juventude mandasse internar a mim e aos meus dois irmãos menores, pois minha mãe, uma senhora  viúva e analfabeta, que saia de casa ás seis da manhã todo dia para trabalhar como doméstica, era obrigada a nos deixar sozinhos em casa o dia inteiro.
Aos doze anos, logo após terminar o curso primário, arrumei meu primeiro emprego como office-boy de uma empresa que vendia materiais de construção.  Quando fiz quinze e pude tirar carteira de trabalho fui trabalhar em uma fábrica, no meu primeiro emprego com carteira assinada.
Recuperei essas memórias pensando naquele menino de dez anos que foi morto por um policial. Ele dirigia um automóvel roubado e, segundo consta, portava um revólver de calibre 38, com o qual atirou três vezes contra os policiais que o perseguiam. O carro, segundo dizem as autoridades que investigam o caso, tinha insufilme nos vidros e os policiais não podiam ver os ocupantes.
Há muitas coisas que precisam ser esclarecidas nesse caso. Mas muito mais que os detalhes dessa tragédia, eu fico pensando se os valores que a nossa sociedade cultiva hoje são melhores dos que os que cultivávamos ontem e se estamos fazendo bem tratando nossas crianças e adolescentes como elas fossem totalmente irresponsáveis e inconscientes de que a vida tem deveres que devem ser cumpridos e não apenas direitos a serem exigidos.
Vejo na TV a mãe desse menino, chorando e pedindo justiça pela morte do seu filho, que segundo ela foi injusta e criminosa. Sinto a dor dela. Fico pensando em minha velha mãe, como ela se sentiria se fosse um de seus filhos. Sem dúvida é uma morte injusta. Injusta porque se trata de uma criança de dez anos que deveria estar na escola e não roubando carros. Aliás, como é que uma criança de dez anos conseguiu aprender a dirigir um carro e usar um revólver? Com dez anos eu estava aprendendo a ler, jogava bolinha de gude na rua, participava de peladas no terrão em frente á minha casa, cozinhava e lavava a roupa dos meus dois irmãos mais velhos que trabalhavam, um entregando roupas para uma lavanderia e o outro numa plantação de repolhos.
A lei proíbe que adolescentes com menos de 16 anos trabalhem. Faz bem. O trabalho infantil deve ser combatido. Crianças e adolescentes devem ir á escola. Pena que não haja escola para todos. E que essas crianças que não vão á escola e também não recebem nenhuma educação em casa acabem sendo cooptados pelo crime.
Antigamente o Estado não era obrigado, por lei, a fornecer educação e saúde para todos. Então, pelo menos em termos de educação, a família se sentia mais comprometida com isso. Todo pai e mãe sabia que se quisesse um filho educado eles teriam que batalhar por isso. Minha mãe nunca aprendeu a ler. Mas quando voltava para casa, á noite, ela ia olhar o meu caderno. Ver se eu tinha feito a lição. Eu levava uns tapas quando não fazia.  Hoje tudo é deixado por conta do Estado. Pais e mães culpam professores e governantes quando seus filhos se tornam criminosos. Hoje, como ontem, o Estado não pode dar boa educação para todos. As escolas de antigamente davam, além de informação, boa educação. Lembro-me que nossas professoras de curso primário nos ensinavam hábitos de higiene, o respeito com os mais velhos e regras de comportamento social. Sabíamos de cor as letras dos hinos e éramos obrigados a ler salmos e passagens do Eclesiastes. Hoje as escolas só dão informação e olhe lá.
O Estado jamais substituirá a família para efeitos de educação. Um dia inteiro na escola não vale uma hora de educação familiar.
Nossos valores estão profundamente subvertidos. Sociólogos, psicólogos, pedagogos e juristas talvez precisem rever alguns conceitos. Liberdade sem responsabilidade é pura anarquia. No caso do garoto morto pelo policial temos uma mãe que foi processada e presa várias vezes por roubo e um pai que está na cadeia. E dois garotos que já ostentam, aos dez e onze anos, uma ficha criminal que faria inveja a qualquer membro do PCC. E não vai faltar quem diga que o policial que atirou no garoto fez, de fato, uma execução. Talvez ele acabe sendo processado por isso. Se os tiros que o garoto deu tivessem ferido ou morto o policial, ou um inocente qualquer, será que o fato estaria merecendo tanta mídia? E haveria ativistas defensores dos direitos humanos lamentando os órfãos filhos do policial morto?
A minha ideia era escrever um conto de terror inspirado nesse triste acontecimento. Mas o fato em si já é suficientemente aterrorizante.  Parece que já estamos vivendo um clima de Walking Dead. É a inocência que está sendo morta todo os dias.  A realidade já supera a ficção. Porque ficar usando a imaginação se a realidade é mais assustadora?