Bloqueio Criativo

Já faziam 15 minutos que o cursor piscava sobre a tela branca do processador de textos no computador. Era quase possível ouvi-lo tiquetaquear como se fosse um relógio.

Há não muito tempo ele já teria escrito algumas paginas. As linhas se formavam em sua mente, desciam por seus braços, explodiam por seus dedos numa velocidade alucinante e preenchiam a tela com parágrafos e mais parágrafos de estórias em Calibri 11. Mas agora aquele maldito cursor piscava na tela há 15 minutos.

Ele se irritava com a conversa dos vizinhos na casa geminada ao lado, com o barulho das crianças brincando na rua, com o som da televisão vindo do quarto onde a esposa provavelmente dormia com a TV ligada...

Nada disso o incomodava antes. Quando queria escrever, simplesmente escrevia. Era como se um manto protetor caísse sobre ele, e então só existia a estória, o teclado e o escritor, que era o encanamento que ligava os dois. Seus filhos poderiam estar correndo a sua volta, suas visitas podiam estar assistindo a um jogo na TV da sala ou um avião podia ter caído em sua rua, ele continuaria escrevendo. Mas agora o maldito cursor apenas piscava.

Antes qualquer situação corriqueira poderia tornar-se um conto insólito. Uma vez viu uma folha que uma lagarta havia devorado parcialmente e escreveu uma estória sobre insetos devoradores de realidades. A própria conversa que vinha abafada pela parede dos vizinhos poderia render algo bom. Se a senhora que mora ao lado vive sozinha, por que ele sempre a ouve conversar com alguém as três da manha? E, Jesus Cristo, a voz que conversa com ela não parece vibrar de uma forma estranha, gutural talvez? Não lhe deixa cheio de sensações e com sentimentos de depressão? É claro! Um dia descobriria que a velha é uma bruxa que conversava com um demônio e planejam sacrifica-lo em um ritual, mas ele percebe que é tarde demais quando acorda uma noite e vê os dois ao pé da cama... Mas essa ideia não lhe ocorria, ou, se ocorria, não conseguia desenvolve-la. Então o cursor continuava a piscar.

Baixou a tela do notebook irritado, coçou os olhos com a base das mãos e passou os dedos pela barba por fazer. Eram quase onze da noite, mais um dia sem render uma linha sequer. Preparou uma xícara de chocolate quente e foi deitar-se sem se importar em ter queimado os lábios com o liquido escaldante.

Talvez a noite lhe trouxesse algum pesadelo que lhe serviria de inspiração, isso já aconteceu varias vezes antes, como quando sonhou sobre aquele polvo com 19 tentáculos que traziam em cada ponta uma lamina cromada. Aquilo rendera algumas paginas.

As horas que passava insone antes de cair definitivamente no sono lhe rendiam algumas boas ideias também. Como a estória do rapaz que herdou a casa da tia e descobriu de um jeito não muito agradável que ela tinha um “demônio de estimação” guardado no sótão... E ele estava com fome. "A coisa no sótão”, foi o titulo que da estória. Infelizmente aquele bloqueio criativo começou antes dele conseguir termina-la. De modo que a reescreveu diversas vezes e nunca obteve um resultado totalmente satisfatório.

Deitou-se e puxou a coberta felpuda até as orelhas. Estava pronto para começar a viagem pela imaginação a fim de topar com algumas ideias escondidas nas trilhas sinuosas de sua mente, porém estava cansado até mesmo para deixar sua imaginação fluir. Há dias sentia-se assim, como se tivesse carregando uma mochila pesada o dia todo. Suas costas doíam e sua coluna estalava dependendo do movimento que fazia. Sua cabeça o incomodava bastante, mas não era enxaqueca, ele não saberia dizer porque estava incomodado se um medico lhe perguntasse. Era uma contrapressão, uma sensação de esvaziamento. Como se o cérebro fosse pequeno demais para o crânio. Caiu no sono cinco minutos após se deitar.

Acordou sobressaltado, era uma da manhã e sua cabeça incomodava mais do que nunca. Jurava ter ouvido nítidos sons desagradáveis de sucção. Na verdade parecia ainda ouvir, mas como se fosse algo vindo da casa do vizinho, um som baixo e abafado, de modo que não deu muita importância.

Teve dificuldades para ficar de pé. A mochila imaginaria em suas costas o desequilibrava, teve de se escorar no batente da porta do banheiro para não cair. Queria o remédio para dor de cabeça que nunca precisara (até alguns dias atrás), mas que sempre mantinha no espelho do banheiro. Mastigou duas pastilhas brancas extremamente amargas, recolocou o frasco no lugar, fechou o espelho e ficou encarando o reflexo mal iluminado pela languida luz da rua que entrava pela janela. Acendeu a luz do banheiro e examinou melhor sua fisionomia. Olhos vermelhos, fundos e cansados, barba por fazer, postura arqueada. Concluiu que ia ao medico no dia seguinte.

Tinha algo estranho naquele espelho. Parecia uma espécie de sujeira translucida e ficava em volta dele quase como uma aura. Pegou a tolha de rosto e limpou o espelho com força, mas a sujeira continuava lá. Forçou a vista para tentar entender aquilo melhor, tentar entender aquela forma estranha. Foi quando aquilo se moveu.

Foi tão estranho, irreal e repentino que ele pensou estar sonhando. As linhas translucidas no espelho mudaram de posição, ao mesmo tempo sentiu sua mochila imaginaria pesar mais e desequilibra-lo. Teve a impressão de ter cordas invisíveis se enroscando em seu peito e ombros e a sensação estranha em sua cabeça aumentou.

Agora as linhas translucidas no espelho estavam a toda sua volta e se concentravam em sua cabeça. Olhava para si mesmo e não via nada, era apenas ele no banheiro se remexendo como um louco e tentando olhar por sobre o ombro, mas o espelho revelava algo agarrado a suas costas e cabeça. Concentrou-se ao máximo no espelho tentando entender o que estava havendo, e então a coisa tomou forma.

As linhas translucidas foram se tornando leitosas e então se solidificaram, tomando uma forma horrenda de cor amarronzada como ferrugem ou sangue seco. Era uma massa de carne repugnante e retorcida, que lembrava algum tipo de inseto. Estava agarrada a suas costas e algumas das “patas” da coisa estavam cravadas em seu peito. Era possível distinguir uma cabeça sem olhos, ovalada e estreita que se estendia num bico de tamanduá mole e retorcido. Ele percebeu desesperado que aquele bico estava enterrado em seu crânio e fazia movimentos espasmódicos como se sugasse seu cérebro. Os sons de sucção, que agora estavam ensurdecedores, vinham daquela coisa.

Finalmente o homem sucumbiu à loucura daquilo. Berrava com o mais puro terror e se jogava contra as paredes do banheiro na esperança de se livrar daquele pesadelo retorcido que o agarrava. Dava murros na própria cabeça, arranhava as costas até verter sangue, mas aquilo continuava ali. Sentia sua mente implodindo e quando finalmente não teve mais forças e caiu estatelado no piso do banheiro, compreendeu o que estava acontecendo.

Aquela coisa estava presa a ele há dias. Por isso não conseguia mais escrever, aquilo estava sugando sua criatividade e se alimentando dela. Ele era um milk-shake sabor intelecto, e pelo jeito já estava no fim, podia até ouvir o ronco do canudo no final.

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A mulher acordou assustada com os gritos do marido no banheiro. Ficou olhando horrorizada ele se debatendo, dando murros na cabeça e se arranhando. Quando conseguiu reagir para socorre-lo o marido já estava morto.

Derrame cerebral foi o que os médicos disseram.

FIM

Eduardo Portela
Enviado por Eduardo Portela em 22/05/2016
Reeditado em 31/08/2016
Código do texto: T5643694
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