Rigor Mortis

Quatro badaladas.

O relógio avisa, em seu maldito som, as horas da madrugada. A escuridão da noite alcança seu apogeu, somente para se desvanecer daqui a apenas duas horas junto com os primeiros raios de fraca luz a atravessarem minha janela. Mesmo não podendo ver, sei que ao meu lado, em cima do criado mudo, estão o copo e a garrafa de conhaque, um Remy Martin já velho guardado para ocasiões certamente mais especiais que esta. O fato de metade da garrafa estar vazia e sua posição perto da cama são frutos da melancolia, daquele tipo que nos acompanha após certos desentendimentos, principalmente aqueles ligados às pessoas que juramos o falso amor eterno. O leitor que me desculpe se talvez trago uma visão que lhe aparente o pessimismo de um coração recém quebrado, pois esse fato na minha vida já é frequente, a ponto de me surpreender pelo efeito que ele ainda me toma, talvez tal experiência seja em mim intensificada graças a sensibilidade exclusiva de um escritor fracassado. "Experiências terríveis fazem pensar se aquele que as vive não é algo terrível." Com essa frase do filósofo que atestou o óbito do ser divino, começo a desconfiar de mim mesmo.

A escuridão a minha frente está densa, não sei dizer sequer se agora olho para cima ou para os lados, meu quarto apresenta o breu digno do mais profundo vazio. Porém, com a mesma intensidade que a visão se torna inútil, meus outros sentidos aguçam-se. Posso ouvir o silencioso gotejar da pia no banheiro do andar de baixo, fruto dos problemas de encantamento de uma casa já velha, tão ritmado quanto uma sinfonia de Beethoven. Meu corpo, enrolado em um caos de cobertas, sente cada gotícula de suor frio que se desprende dele, o colchão já está úmido e gélido. Porém, entre os variados sentidos e sensações que o corpo pode dar-se ao luxo de ter, esses não são os responsáveis pelo pavor em minha mente ou a palpitação de meu coração. Para tanto dou uma parcela do crédito à minha ridícula impotência de mover sequer o menor dos dedos, a paralisia em meu corpo me assusta, a sensação de não poder coordenar e controlar meus próprios membros é, para mim, aterrorizante.

A outra parcela, certamente mais significativa, atribuo a criatura que está a apenas poucos centímetros de meu rosto. A escuridão a encobre, porém sei que ela está encarando meus olhos enquanto eu encaro os dela, ambos tão infimamente distantes. Sinto sua respiração em meu rosto enquanto com uma pressão esmagadora sobre o meu peito ela priva a minha. A asfixia não vai me matar, disso estou certo, não é o desejo dela, a falta de ar tem como objetivo apenas potencializar meu pavor, meu coração palpita mais e mais enquanto meu cérebro tenta promover uma reação do corpo contra o invasor que lhe restringe o oxigênio, em vão.

As horas passam, ouço as cinco badaladas tão nitidamente quanto se estivesse dentro do próprio relógio, graças à audição aguçada. A criatura continua a me olhar fixa e silenciosamente. O que ela pretende? Por que não me mata logo ao invés de continuar com esse jogo psicótico? O que ela quer? Torturar? Punir? Enlouquecer-me? Ouvir gritos de piedade antes de me mandar para os braços frios e apáticos da morte? Se este for seu objetivo, há de se decepcionar, os gritos que partem de meu cérebro não chegam às cordas vocais, graças a paralisia, senão certamente toda a cidade teria ouvido-me gritar como uma criança após um pesadelo. O tempo prossegue, certamente mais lento do que a impressão do pavor me causa, o enigma da criatura permanece misterioso.

Então compreendo. A criatura está aguardando pacientemente cumprir seu objetivo. Basta a ela esperar. As seis badaladas avisaram a hora em que meu destino será a mim apresentado. Os primeiros raios de luz atravessarão minha janela e quarto, apenas para iluminar o rosto à minha frente. A visão que terei não sei que efeitos hão de causar, porém estou certo que o objetivo da criatura seja permitir-me lhe visualizar.

Sua respiração torna-se mais forte, como uma confirmação dela à minha teoria. O tempo prossegue, minha ampulheta caminha para o último grão. Começo a visualizar sua imagem à minha frente, porém ainda não é tempo, o que imagino ver é apenas criação de minha mente aterrorizada que tenta se preparar para sua última visão. Que traços ela terá? Algo humanóide? Desconfio que sua semelhança a qualquer características humana não passe de uma forçada antropomorfização da qual minha mente possa recorrer. Talvez a visão que terei esteja além de qualquer simples entendimento humano. Talvez algo tão estranho e horrível que apenas o leve deslumbre possa marcar para sempre uma mente, uma marca traumática e indecifrável da qual a linguagem seja incapaz de descrever.

Outro suspiro forte. A primeira badalada se inicia, ouço até mesmo a vibração nas paredes velhas. Mais um suspiro, mais rápido e mais forte, sinto sua ansiedade. A segunda badalada. Sei que não ouvirei mais que seis. Ela suspira, a pressão em meu peito aumenta, a asfixia começa a torna-se insuportável. Terceira badalada. Outro suspiro seu, seu sangue borbulha enquanto começo a sentir tontura. Quarta badalada. Ela se aproxima ainda mais, sua força já deve estar quebrando minhas costelas. Quinta badalada. A ansiedade pelo meu destino explode na criatura, meus sentidos começam a se perder. Falta apenas uma badalada, um único som e uma única visão para eu ter meu fim desconhecido. É o momento mais eterno de minha vida. Minha ampulheta chega a seu último grão...

Não ouço a sexta badalada.

Abro meus olhos. Não há escuridão. Meu quarto está claro como o dia. Por algum tempo apenas olho e ouço tudo, a garrafa e o copo estão ao meu lado. O gotejar da pia é inaudível com o barulho de carros e pássaros na cidade. O colchão está ensopado. Respiro fundo, não há força sobre meu peito. Sento-me na cama, a movimentação é esquisita após tanto tempo paralisado, mas sinto cada músculo responder. Fico assim por muito tempo, digerindo o que se passou. Uma terrível alucinação provocada pelo álcool e pelo stress?

Não sei responder.

Ouço uma badalada...

William Holmes
Enviado por William Holmes em 22/05/2016
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