Mau Agouro
Eu havia bocejado inúmeras vezes enquanto tentava terminar o Pai Nosso sentado em minha cama, a única luz em meu velho quarto vinha da luminária acesa sobre o criado-mudo. Não era uma noite fria, mas meus pelos insistiam em se eriçar. Eu estava despido e um lençol fino cobria minhas pernas, parei no meio de uma frase e resolvi iniciar mais uma vez.
— Pai Nosso que estás no céu, santificado seja o vosso nome...
Mas os bocejos insistiam em me interromper o pensamento, era como se algo tentasse impedir que eu terminasse a oração, mesmo assim insisti até que, por fim, deitei e me entreguei à escuridão.
Estava perdido na bruma negra de uma capela vazia, orava ajoelhado diante de uma vela acesa próxima a outras que estavam apagadas aos pés do altar. Foi quando ouvi um barulho e parei de orar para encarar o vitral, que tinha a figura de um anjo perfeitamente desenhada, foi quando algo se chocou contra ele e estilhaços coloridos voaram em minha direção, Ele voltara para buscar a minha alma, tinha pele vermelha e chifres negros, algo que lembrava um bode, ele sorriu exibindo uma fileira de presas que dilacerariam qualquer coisa.
Eu acordei. Minha fé era maior que a estátua do Cristo Redentor, mas diante de fatos tão curiosamente estranhos, comecei a questionar se haveria algo ruim me rodeando. Essas questões ficaram ainda mais pertinentes quando acordei molhado de suor do pesadelo sombrio com o diabo. Levantei rapidamente abrindo a janela, que protestou com um rangido. O quarto precisava da luz do sol, mas o domingo amanhecera nublado.
Estaria ele voltando para me punir pela quebra do pacto? Esperava que não, afinal após me arrepender de dar minha alma ao coisa-ruim, eu fiz as pazes com Deus. Eu era sincero em meu propósito: ir à igreja em todas as sextas-feiras enquanto viver, mas às vezes me pegava pensando se talvez eu quisesse apenas me livrar das consequências de um pacto, o qual me arrependera de ter feito.
Olhei para o calendário, era sexta-feira 13 de maio.
Pus a chaleira no fogão e fui tomar um banho gelado, em seguida voltei à cozinha imunda, o chiado da chaleira parecia mais forte que de costume, até ela parecia reagir à estranha aura daquele dia nublado.
Ignorei meu receio e fiz o café, queimei a língua no primeiro gole. Estava tão amargo quanto os dias solitários de minha vida, mas assim que a dor se amenizou, voltei a tomá-lo. Procurei o pão que deixei guardado no armário, mas o encontrei repleto de bolor, o que era estranho, pois me lembrava bem de tê-lo guardado em ótimas condições na noite anterior.
Desisti.
Tratei de ir logo cedo à igreja do povoado. Chamar de igreja era um elogio, pois a casa de Deus era apenas uma capelinha muito humilde, o chão era feito de azulejos pretos e brancos formando um xadrez, não tinham brilho algum e esse efeito fosco, para mim, só deixava o ambiente com um tom de decadência. Havia alguns bancos de madeira envernizados e pequenas estátuas de santos espalhadas sobre pequenas pilastras de gesso aqui e ali recostadas na parede.
Poucos eram os que entravam ali.
Enquanto passava caminhando pelo povoado, não pude deixar de notar o vazio. Era um lugar esquecido no meio do nada, ou melhor, num lugar onde o sol brilhava forte demais, exceto naquele dia. Não havia pessoas na rua àquela manhã, mas a igreja estava aberta como de costume, sua pintura desbotara há vários anos, o dízimo mal bastava para sustentar o padre, quem dirá comprar tintas?
Eu sentia calafrios conforme me aproximava, o céu parecia estar mais próximo da terra, era a sensação claustrofóbica causada pela infinidade daquele tom cinza, meu coração acelerou ao pisar no primeiro degrau da pequena escadaria da igreja.
Nem o padre estava pelas redondezas.
Tentei não me importar, afinal o que importava mesmo era minha fé. A fé que me livrou do inferno, que absolveu meus pecados, que me salvou. Salvou?
Entrei na igreja parcialmente escura, a pouca claridade vinha da porta aberta, das frestas das velhas janelas de madeira e das velas acesas ao pé do altar, não era a mesma igreja com que eu sonhara, percebi aliviado. Então relaxei, talvez meu pesadelo fosse apenas uma representação dos meus medos, quase sorri, estava prestes a sentir uma profunda paz em meu interior, mas o que impediu foi uma forte presença atrás de mim.
Quase podia sentir uma respiração quente em minha nuca.
Hesitei, trêmulo, então olhei para trás. Tudo estava igual a quando havia entrado, respirei fundo, talvez fosse apenas o padre que estava por perto, me consolei, mas a reação do meu corpo era outra, pelos eriçados, mãos trêmulas, respiração pesada, suor frio escorrendo da testa e o coração descompassado.
— Pai Nosso que estás no céu...
Com um rangido lerdo a porta da frente se fechou, eu endureci, mas não ousei olhar novamente para trás, fiquei à espera de que o padre falasse algo ou que, ao menos, eu ouvisse seus passos se aproximando, mas não ouvi uma coisa nem outra.
Senti apenas a forte presença às minhas costas, mais próxima que nunca. O hálito em meu pescoço não era quente, era gélido e tinha cheiro de morte, de algo capaz de fazer uma nação inteira padecer apenas por ele respirar.
— Santificado seja o vosso nome...
Tentei continuar, mas minha voz me traiu ao falhar quebrando-se no meio da frase. Não havia escapatória, não havia para onde correr. Senti a mão ossuda, esguia e cheia de garras apertar meu ombro esquerdo, virei-me para encarar O Pai da Mentira que viera buscar o que lhe pertencia.
As velas se apagaram num sopro e na escuridão da capela, minha alma foi levada.
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TEMA: SOBRENATURAL (E/OU RELIGIÃO)
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Estou de volta para não quebrar a tradição de publicar um conto de terror em toda sexta-feira 13, e resolvi fazer isso no DTRL. O conto é curto, mas faz jus ao pesadelo que usei como inspiração. Espero que tenham gostado! (Dedico aos meus amados #Don #FabyCristal e #JcKing s2)