A garota do último banco da praça- DTRL 27

"Cada um tem a versão da história que lhe convém."

M. B.

*

A minha avó como todas as outras sempre tinha uma história de fantasma para contar. Ela conhecia todas as lendas da cidade. Inclusive a da menina do último banco da praça. Ninguém sabia quem exatamente era a menina ou o que. Algumas narrativas até falavam de universos paralelos e coisas do tipo. Mas tinha uma coisa que era igual em todas as narrativas que era o fato da menina realizar digamos assim um tipo de justiça a favor de pessoas que sofrem.

De vez em quando alguém se envolvia em pequenos acidentes misteriosos ou sumia sem explicação e depois reaparecia do nada. Muitos na cidade associavam esses fatos a menina do último banco da praça.

Segundo a minha avó quem desejasse realizar uma vingança contra alguém tinha que ir até o último banco da praça exatamente a meia-noite. Se a sua motivação e o ódio fossem fortes a pessoa encontraria a garota sentada no banco. A espera do nome da pessoa e de sua motivação. Se a lenda for verdadeira, tenho certeza que irei a encontrar, pois minha motivação e principalmente o ódio que sinto de minha madrasta são fortes.

Um vento frio balançou meus cabelos e me fez ter uma vontade imensa de abandonar essa loucura e voltar para a minha casa, mas o desejo de vingança era mais forte.

Quando faltavam poucos passos para chegar ao último banco da praça parei de repente. Meu coração acelerou e um suor frio escorreu pela minha testa ao ver a menina sentada. Ela realmente existia e estava me encarando com olhos gateados que brilhavam no escuro.

Não sei quanto tempo se passou sem que conseguisse me mexer. Até as palavras fugiram da minha boca. Me preparei psicologicamente durante todo o caminho, mas nenhum preparo foi suficiente quando estive frente a frente com o sobrenatural.

-Eu desejo... Me vingar de uma pessoa...- falei com dificuldade. Minha língua pesava uma tonelada. Esse foi o máximo que conseguir falar naquele momento.

-Eu sei que quer. Todos me procuram com apenas um objetivo e um sentimento no coração.- falou ela se aproximando de mim. Ela não era feia. A bem da verdade era bem mais bonita que eu. Tinha cabelos longos escuros e a pele clara. O conjunto dessas caracteirsticas tornavam ainda mais assustadores os seus olhos. Enquanto ela andava sentir o cheiro doce que se espalhava pelo ar. Cheiro de rosas. A sua voz era tão doce como o seu cheiro. O que era no mínimo estranho- Mas a questão não é essa... Você está realmente disposta a seguir com isso?

-Sim...- falei um pouco mais confiante tentando mentalizar a imagem da minha madrasta que era o motivo deu ter vindo. O ódio fez o medo passar. Ela merecia pagar por está tentando roubar o meu pai de mim e por tentar ser minha mãe.

Ela sorriu de uma forma misteriosa e disse:

-Antes quero que saiba quem sou. Sou a justiça para as vítimas e a punição para os culpados. Apesar da palavra vingança ser constantemente usada o que faço não é vingança. É justiça. Sempre sou justa. Faço o que não fizeram por mim. Quer mesmo continuar? Quer que eu faça a minha justiça?

Ela devia ter falado tudo isso para me assustar, mas não funcionou. Eu era a vítima por isso não tinha nada a temer.

-Quero.

O sorriso dela por algum motivo aumentou antes dela falar:

-A escolha foi sua.

Depois de falar isso virou de costas para mim e começou a seguir em direção ao banco. Fiquei sem entender nada. Ela não havia perguntado de quem eu queria me ving... de quem eu queria justiça. Ela pareceu ler meus pensamentos, pois parou onde estava. Se virou e disse:

-Eu sei de tudo, Laura. Meus olhos vem a verdade e a história por trás de cada um que me procura. Vejo o passado e o futuro. Por causa disso sempre sou justa.

Depois disso ela desapareceu na minha frente. Demorou um tempo até que eu conseguisse voltar para a minha casa.

No caminho de volta apenas conseguia pensar no que iria ocorrer com a minha madrasta. Como a menina iria se livrar dela. Se ela iria morrer ou simplesmente desaparecer. Para mim qualquer uma das duas alternativas eram ótimas. Apenas queria que ela saísse da minha vida e da do meu pai.

No dia seguinte, acordei cansada. Já passava do meio-dia. Me levantei da cama sem saber ao certo se o ocorrido na noite anterior havia sido realidade ou pesadelo. Será que eu teria realmente saído de casa?

A primeira pessoa que vi naquele dia foi a minha madrasta. Ela ao me ver abriu um de seus muitos sorrisos falsos e me desejou bom dia. Disse que estava feliz em me ver. Também sorri para ela. Não porque estava feliz em lhe ver, mas porque pensava somente em como estava perto o dia em que ficaria livre dela.

Durante o resto da semana aturei com um sorriso no rosto todas as tentativas dela de tentar tomar o lugar da minha mãe. A certeza que logo não teria que a aturar me dava forças. A mulher até estranhou, pois ela estava acostumada a minha forma, digamos, "normal" de a tratar.

Desde que ela se casou com o papai ele tenta de todas as formas ficar no lugar da mamãe. Tenta me agradar fazendo as coisas que a mamãe fazia comigo. Me levando aos lugares que mamãe me levava. Um dia chegou ao extremo de dizer que eu podia a chamar de mãe. Nunca a chamaria de mãe. Disse isso na cara dela. Tive uma única mãe que muito amei e por causa disso não irei permitir que essa mulher fique no lugar dela. Terei justiça pela minha mãe que não está aqui para tentar defender o seu lugar.

Tem vezes que também sinto raiva do papai. Ele não me entende. Não entende que em respeito pela memória da mamãe não devia ter se casado de novo. Mas logo a raiva passa, pois a culpa não é dele. É da minha madrasta. Depois que ela for embora voltará a ser somente nos dois e a memória da mamãe a nos acompanhar.

Com o passar dos dias a esperança de que minha madrasta sumisse foi diminuindo. Passava os dias e ela continuava bem. Passei a achar que tudo que ocorreu na praça naquela noite não passou de um pesadelo. Me sentir mal por ter me deixado levar pelo lado emocional. Devia ter ouvido o meu lado racional que dizia para eu mesma me livrar dela, se era isso que queria. Já tinha quinze anos. Não tinha mais idade para ficar acreditando em lendas contadas por avós e nem para contar com meninas sobrenaturais.

O mais estranho veio depois que desistir por completo de contar com a ajuda da menina da praça. Depois que passei a tramar uma forma de me livrar da minha madrasta com minhas próprias mãos. Comecei a sentir uma presença em meu quarto. Comecei a ter a impressão que alguém estava me observando. Essa presença ficava mais forte a medida que meus pensamentos contra a mulher ficavam mais fortes. Pensamentos estes que chegaram ao seu extremo quando a mulher que queria ser minha mãe anunciou que estava grávida. Não iria considerar essa criança minha irmã, pois ela não veio da minha mãe.

Os pensamentos eram muitos, mas me faltava a coragem. Coragem esta que veio junto com o anuncio da gravidez. Escolhi uma faca e a escondi em baixo do meu travesseiro. Na próxima viagem de meu pai daria um jeito na mulher e no seu monstrinho.

O dia da viagem chegou. Passei o dia todo entre momentos de certeza e de dúvida. Pensando nas consequencias. Só que dizia para mim mesma que faria isso por minha mãe. Para que a memória dela fosse honrada.

Durante o começo da noite fiquei em alerta. A cada segundo segurava no cabo da faca escondida. Em algum momento acabei dormindo.

Acordei assustada. O quarto estava na total escuridão. O que era estranho, pois eu detesto escuro. Sempre durmo com uma luz acessa, pelo menos um abajur. Mas o mais estranho não foi o escuro. Foi um familiar cheiro adocicado de rosas.

Sabia que ela estava ali antes mesmo de abrir meus olhos para encarar os seus olhos brilhantes. Fiquei feliz. Pensei que ela estava ali para me ajudar. Para finalmente realizar a justiça que me prometeu.

-Laura...- ouvi sua voz. Ela não era mais doce como naquela noite. Tinha um tom de raiva- O que pensa que vai fazer?

-Justiça pela minha mãe. Já que você prometeu e não cumpriu.-disse isso tentando pegar a faca que tinha escondida. Para meu espanto não a encontrei. Fiquei com muita raiva. Ela não iria me ajudar, porque se achava no direito de me atrapalhar? Minha mãe sempre me ensinou a nunca deixar ninguém se colocar em meu caminho.- Você não tem o direito de me atrapalhar!!

-Vocês mortais nunca lembram de quem sou... Tenho o direito de intervir, pois você permitiu. Você disse que aceitava que eu aplicasse a minha justiça e será isso que farei. Não permitirei que uma injustiça ocorra essa noite.

Só podia ser um pesadelo. Até uma criatura sobrenatural estava contra mim e favor da minha madrasta. Porque ninguém conseguia a ver como eu via? Abrir a boca para gritar. Para falar da injustiça que estava sofrendo naquele momento, mas antes que algum som saísse ela gritou:

-Cala-te

Fiquei calada. Não porque quis, mas porque uma força me obrigou. Eu abria a boca e gritava, porém nenhum som saia. Era como se tivesse ficado muda. Com que tipo de criatura fui me meter? Quem era ela? Será que ela era alguma entidade oportunista que se aproveitou da lenda local ou um ser mais perigoso que brincava com os mortais?

Ela pareceu ler meus pensamentos:

-Você sabe quem eu sou. Já lhe disse naquela noite. Mas vocês se fazem surdos para o que não querem ouvir. As caras mudam, mas as histórias são as mesmas.Sempre são...

Mal ouvia o que ela falava. Estava desesperada. Chorava e gritava, mas ninguém ouvia. Tentava me levantar, porém não conseguia. Meu maior desespero era porque sabia que a minha faca estava com ela. Iria morrer no lugar da minha madrasta ou teria um destino ainda pior. Isto não era justo!

Tudo começou a desaparecer lentamente... Não sentir dor alguma. Ela não usou a faca e nem arma alguma. De alguma forma sem tocar em mim sugou minha forças. Antes de apagar sentir o seu cheiro doce de rosas.

Quando acordei não estava mais em minha cama. Nem em qualquer lugar conhecido. Estava em um lugar escuro e sem forma definida. Não conseguia me mexer e nem gritar. Estava no mesmo estado em que estava em meu quarto. A única coisa definida no local era o cheiro de rosas. A menina não estava presente, mas o cheiro continuava. O aroma que antes achei doce agora me lembrava de algo doloroso. Meu coração pesava e eu choraria se conseguisse, pois o cheiro lembrava das rosas do enterro de minha mãe.

*

"A mentira mais frequente é a que se conta para si mesmo."

Friedrich Nietzsche

Temas: Mentiras e Sobrenatural

Ana Carol Machado
Enviado por Ana Carol Machado em 06/05/2016
Reeditado em 23/06/2020
Código do texto: T5627436
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