O Desencanto da Sereia - DTRL 27
Nunca tive motivos para gostar dos homens. Usaram-me, espancaram-me, atiraram-me nua ao rio, onde permaneci por séculos sem conta. Vinguei-me de quantos pude, sozinhos ou em bando, atraindo-os, enganando-os, sempre irresistível e letal. Em meu abraço eles pereciam, e eu tinha prazer em vê-los sufocar, afundando e engolindo água. Sequer deixava que suas famílias recuperassem os cadáveres inchados, devorados pelos peixes.
As águas barrentas do rio balançam com suavidade o barquinho de madeira, igual a tantos outros que já tive a honra de destruir. Apertando os olhos contra o sol, um rapaz raquítico rema vigorosamente em direção a uma das ilhas fluviais. O calor amazônico gruda na pele clara do moço, lavado por gotas de suor. Ainda assim parece apreciar a paisagem verde sob o céu turquesa. Sempre sob minha vigilância, seu olhar tristonho faz algo se partir dentro do meu coração. Tenho a impressão de estar violando algum segredo ao espioná-lo, como se algo pudesse ser proibido a mim em meus próprios domínios.
“Jeremias é seu nome”, sussurro, mergulhando com habilidade sob a correnteza. Os peixes se afastam enquanto nado. A água nunca será ameaçadora para alguém como eu. Pescadores solitários, garimpeiros, turistas ou apenas curiosos, esses sim têm muito o que temer se cruzarem meu caminho. Esse rapaz, entretanto, tem algo incomum que quase me cativa. Talvez a decisão com que rema, ainda que um pouco desengonçado.
Meu dom é chamar seus nomes como se fosse uma canção especial. Nada é tão doce quanto ser chamado pela voz da pessoa certa. O moço, o rio, o sol brilhante, tudo pode ser bonito, mas já faz muito tempo que não sou capaz de amar. Não é por acaso que estou aqui hoje, para ter minha solidão violada por um estranho. Gosto de me banhar no fundo das águas, arranhar-me nas pedras e espantar os peixes. Às vezes passo dias sem voltar à tona e talvez jamais o fizesse se o sol não me agradasse ao arder na pele. Tenho um motivo para emergir. Avisto muito bem o barco lá em cima, avançando sem pressa, já quase na metade do caminho. É assim que ataco.
“Jeremias”, repito mais alto, e dessa vez sei que ele me escutou. Piso no fundo do rio e tomo impulso em direção à superfície.
O ar fresco me faz lembrar da vida de outrora. Apoio as mãos na beira do barco e ele quase deixa os remos caírem na água. Normalmente meu olhar sobre os homens é sedutor e convidativo. Um chamado para a destruição, o beijo final da morte. Não tenho piedade daqueles que me destruíram. Mas por esse moço sinto uma curiosidade que não sei explicar. Onde está minha concentração? Assim vou acabar arruinando o feitiço.
-Para onde estás remando, Jeremias?
-Desculpa... será que eu te conheço?
Ele deve estar meio abobado por encontrar uma mulher se banhando sozinha em um lugar desses.
-Tu não me conheces... mas eu te conheço, e foi a ti que eu escolhi.
Tudo está saindo como de costume. Largo o barco, torno a mergulhar e volto à tona mais adiante. Caminho até a ilha que ele tenta alcançar. Meus longos cabelos são a única veste que trago sobre o corpo. Ele me olha fixamente de longe. Sei que se interessou, por que seria diferente? Todos os homens que cruzam meu caminho encontram ao mesmo tempo a sorte e o azar.
Mas ele... chora. Chora diante de mim quando deveria estar maravilhado.
-Me desculpe, estou tão triste... Pelo amor que eu perdi.
Estremeço de choque, indignada. Quem essa criatura insolente pensa que é? Como ousa ele pensar em outra mulher quando está diante de mim? Sou a Iara, a Ninfa do Rio, e homem nenhum se faz de esperto comigo. Decido que esse aí merece conhecer toda a minha fúria, já que meus encantos não foram o bastante. Entro no rio, deixando que a água cubra meus tornozelos. Dou um pequeno chute e a onda que criei vai se arrastando, espiralando, enreda o barco de Jeremias. Ele cai de costas no fundo do barco, rodopiando, sentindo todo o meu poder. Não é culpa dele ter me encontrado, e nem eu pedi para ser uma devoradora de vidas. Ele não grita, não reage. Sabe que nada pode contra mim. Meu rio suga seu barco, tudo desaparece.
Encaro a correnteza que prossegue como se nada tivesse acontecido, como se ele nunca tivesse passado por ali, tão igual aos outros e ao mesmo tempo tão diferente. Fico imaginando se fiz bem em afogá-lo tão depressa... Ora, nem cheguei a vê-lo mais de perto! Será um sinal de fraqueza voltar atrás? Preciso pensar melhor, não agir descompensada ao menos dessa vez. Por outro lado, não há muito tempo para se perder quando se trata de salvar uma vida.
Quando vejo, já mergulhei outra vez. Ele afunda e perde os sentidos, no ritmo da correnteza que já o clama para si. Mas aqui quem manda sou eu. Busco-o no fundo das águas. Tomo-o em meus braços como um menino pequeno, tão leve em meus domínios aquáticos. Deito-o desacordado sobre a areia, à sombra de uma palmeira, e meu rio devolve seu barco, intacto.
Deixo que sua cabeça descanse sobre meu colo enquanto seus olhos permanecem fechados. Tateio seu rosto como se tentasse enxergá-lo com as pontas dos dedos. Ele respira fundo como um bebê. Não sei dizer se é bonito, mas causa-me vontade de cantar, não para seduzi-lo, mas para embalar seu sono. Acaricio seus cabelos até que comece a despertar. Aproprio-me de seus sentimentos, e não consigo crer que me pareçam puros. Mas se assim não fosse, por que meu impulso agora seria zelar por ele, e não destruí-lo? Mas, se for mesmo genuíno, apenas aumenta meu pesar por não ter encontrado alguém como ele em vez daqueles que me fizeram mal. Afasto-me sentida, deixando-o a salvo na ilha, a sós para chorar suas mágoas.
Antes de mergulhar para sempre, encaro a água, meu único espelho, desfocado e sujo. Somente o rio me vê como realmente sou, ossos puídos pelo tempo, teias de aranha como longos cabelos, órbitas vazias condenadas a enxergar para sempre. Só de pensar que os homens me veem bela e resplandecente, tenho vontade de rir e toda piedade de matá-los desaparece. A partir de hoje, porém, ninguém será enfeitiçado pela Mãe d’Água.
Obrigada pela atenção!
Tema: criaturas aquáticas