JOGO DO EGO - DTRL 27

JOGO DO EGO

E de repente, senti uma pressão enorme em volta de meu corpo, como se estivesse sendo esmagada por toneladas e mais toneladas. Minhas veias dilatavam e não conseguia conter a força externa, sentia como se algo quisesse me reduzir a pó

Ao momento que essa pressão ia aliviando lentamente, tudo parecia estar encharcado em minha volta. Um frio úmido me tocava suavemente, gotículas geladas saiam dos meus poros, meu corpo e o ambiente esfriavam lentamente. A umidade me incomodava um pouco, sentia como se pequenas pedras de gelo escorressem por toda minha pele e derretiam a medida que rolavam pelo meu corpo. O frio começava me dar calafrios cada vez mais intensos.

A pressão havia aliviado. O frio começava a se transformava em um calor febril, iniciando pelo meu rosto e descendo pelo meu corpo. Logo, de frio estremo sentia meu corpo arder em chamas. Sentia como se estivesse me desintegrando, e cada átomo de mim dispersava. A pressão na minha cabeça e ouvidos começava a aumentar, cada vez mais, meus membros começaram a formigar, e sentia varias agulhadas furando minha carne.

Não sabia quanto tempo havia se passado, não tinha noção de tempo e espaço, agora sentia meu corpo derretendo. Sentia minha pele escorrendo assim como a cera de uma vela acesa. Todas essas sensações estranhas me causavam náuseas, quando um tremor incontrolável se iniciou na minha região pélvica se espalhando para o tronco.

Tinha vaga noção de quem eu era, não sabia onde estava. Não conseguia enxergar nada, ver nada devido a grande luminosidade, tudo era muito… Branco!

***

De repente, acordo de supetão no meu quarto. Sentada em minha cama. Começo a olhar em volta, tudo parece estar no lugar, as prateleiras com meus bichinhos de pelúcia, minha escrivaninha meticulosamente arrumada, o tapete felpudo rosa claro, e minha poltrona branca no canto. Tudo parece estar no lugar, e não estar ao mesmo tempo.

Ainda me sinto perdida, com uma consciência minha, mas não sou eu. Me sinto presa, mas não sei presa a que ou aonde. Estou no lugar que mais gosto no mundo. Não deixo nem minha mãe entrar aqui. Aqui é o meu refúgio, onde me sinto segura, mas ao mesmo tempo, me sinto presa, reconheço e não reconheço esse lugar.

Olho pela janela, o céu está azul e lindo! Tudo parece estar mais colorido, como num sonho. Mas, acabei de acordar, disso tenho certeza. Não sei o que significou aquele sonho que tive, só sei que tive muito medo, muita dor. O sonho foi muito real, não parecia que estava dormindo. Mas agora também não parece. Nunca estive tão acordada em toda minha vida como estou agora. Não sei como, mas assim que me sinto: Acordada, num eu que não sou eu…

Muita fome, tento olhar as horas pelo meu celular, mas ele não tem bateria. Coloco para carregar, o deixo em minha escrivaninha e desço para a cozinha. Abro a geladeira e me deparo com um pudim maravilhoso! Pego uma colher e devoro tudo como se não tivesse comido a um século. Não devia comê-lo todo. Afinal, não sei o que deu em mim, não como doce. Não posso engordar. Dentro de uma caixa no quarto , tem o meu vestido de formatura. Lindo, vermelho e provocante! Minha mãe não queria que eu o comprasse. Além de caro, ele é muito ousado. Me lembro de minha mãe agora com um aperto no coração. Nós brigamos hoje pela manhã, por causa das joias que eu queria usar. Eram as joias da minha avó, e minha mãe penhorou. Mesmo eu pedindo pra ela me deixar usar somente até a formatura. Ela mesmo assim penhorou. Eles iam ficar perfeito com o vestido vermelho, mas minha mãe não quis esperar. Ela poderia vender o carro dela, que eu não iria ligar, mas não as joias que eu queria usar! Mas, onde está minha mãe agora? Depois da briga eu me lembro de ter saído de casa. Mas não me lembro de voltar… Será que hoje é realmente hoje? Não faz o menor sentindo, mas hoje ainda é hoje, ao mesmo tempo que não é… o tempo parece diferente. Subo para o meu quarto e meu celular não deu sinal de vida! Não liga. nem o computador. Não consigo saber que horas são, nem ter ideia olhando pela janela.

Estou sozinha. Sempre fui a mais popular na escola, nunca fiquei sozinha e a queridinha da família. E agora é como eu estou. É como eu me sinto. Sinto como se nunca mais vou ver meus amigos, minha família, minha mãe….

Resolvi sair. O mesmo sentimento de antes, as ruas são as mesmas e ao mesmo tempo não são. Não percebi quando escureceu, já estava bem escuro, bem tarde da noite. As ruas estão vazias. Está frio. embora sem vento, mas mesmo assim o clima está gelado.

Ando pelas ruas, me distanciando da minha casa. Por que acho que nunca mais vou vê-la?

Logo a frente, na pracinha avisto a primeira pessoa em todo esse tempo, não consigo definir quem é, vou em direção a ela. Vou chegando mais perto, mas ainda não consigo definir quem é. Eis que fico de frente com ela, é minha melhor amiga, Andressa.

“Andressa, que bom que te encontrei. Estava me sentindo tão sozinha e...”

“Como sempre, tudo gira em torno de você. Tudo sobre como você se sente e o que você acha. Nunca foi capaz de ouvir o que os outros sentiam, oferecer uma palavra de paz a quem estava sofrendo!”

Fico espantada com tanto ódio saindo da boca da Andressa! fico sem palavras! Ela nunca havia falado assim comigo.

Mas de repente, meus olhos embaçam e a figura de Andressa se transforma num borrão, e a medida que vai ficando mais nítido, não é mais a Andressa, é o Gustavo.

“O que foi isso?” - estou muito assustada! “Que tipo de pesadelo é esse?” Mas não é pesadelo, sei que estou acordada.

“Isso não é pesadelo algum. Pesadelo foi como você me humilhou na frente de todos da escola. Sabia desde o inicio que eu era apaixonado por você, e tudo que você fez foi me usar. E quando se cansou de mim, me jogou fora!”

“Não Gustavo, não é assim…”

“CALA A BOCA! É bem assim mesmo! Você sabia que estava me magoando. Sabia que estava brincando com meus sentimentos, e mesmo assim, me fez sofrer e me fez de palhaço. Falou pra quem quisesse ouvir que eu era só o seu novo brinquedinho!”

“Gustavo, me desculpe, eu…” Começo a chorar desesperadamente, nem sei o que dizer. As palavras não saem da minha boca. Estou amedrontada!

Gustavo vira o borrão igual a Andressa. Quero correr, mas meus pés não se movem. O Borrão agora se torna na minha professora de português, Fabiana.

“É tão bom chorar quanto fazer os outros chorarem? Foi divertido pra você, mentir para o diretor para que eu fosse demitida do meu emprego!?”

“Sinto muito, Professora, eu…”

“Sente? Você sente algo? Sente pelos meus filhos que podem não ter o que comer?”

Me esforço ao máximo para sair dali. Puxo minhas pernas com toda a minha força, e surte efeito. Saio correndo dali, desesperada. Antes que aqueles borrões venham atras de mim. Mas, o que é isso, que pesadelo é esse? Tento me beliscar, mas não estou dormindo. Não quero mais estar aqui! eu quero ir embora!

Paro por alguns segundos para retomar o folego, quando uma buzina e uma luz muito forte vem em minha direção, é um ônibus. Vou para a calçada para não ser atropelada, mas parece que essa é a intenção dele. Saio correndo sem rumo, pulo cercas entro em parques e nada parece ser obstáculo para esse ônibus. Por que ele esta me perseguindo?

Tropeço em algo no chão e saio rolando morro abaixo em meio a matos e gravetos. quando finalmente paro de rolar, vejo que o ônibus não está mais atras de mim. Começo a chorar desesperadamente como criança. Mamãe, cade você? Eu quero minha mãe! Mãe, me tira daqui!!!

Tudo fica extremamente branco novamente, mas dessa vez, consigo enxergar minha mãe sentada. Junto com ela está minha tia Cláudia.

“Mãe, eu to aqui!”

“Por que isso foi acontecer com ela?” - Minha mãe chorando desesperadamente. O que aconteceu?

“Você tem que se acalmar. Não fique assim.” - minha tia abraça minha mãe.

“Se eu não tivesse brigado com ela. Ela não teria saído! Foi tudo minha culpa!!!”

“Calma, Maria! Vocês não tem culpa. Foi um acidente” - acidente?

“Nós mimamos muito ela! Sempre dando a ela tudo que ela queria. A culpa foi minha sim” - Mãe… me desculpa! um aperto enorme no meu coração. Minha mãe some, e o ônibus volta a minha frente, mas não fujo dele. Agora me lembro. Quando briguei com minha mãe, sai correndo e não vi para onde. Esse ônibus estava passando bem no momento…. Eu fui atropelada por ele!

Tudo fica branco de novo. Uma menininha vem ao meu encontro. não consigo definir seu rosto, mas não tenho medo dela.

“Não tenha medo.”

“Eu morri, não foi?”

“Sim, você morreu. Mas todos morrem. Todos antes de você morreram, assim como todos depois de você vão morrer.”

“Quem é você?”

“Eu sou você. A próxima você.”

“Aquele sonho….”

“Não houve sonho. Aquilo foi a dissolução dos elementos. Aquilo é morrer.”

“Eu estou no inferno?”

“Não há céu ou inferno. Tudo que você experimenta aqui são projeções de sua consciência. No estado latente, você tem o vislumbre de todos seus carmas que você cria em seu estado manifesto, e aqui você esta em estado latente. Aqui não se cria, e nem se modifica os carmas. Apenas no estado manifesto você pode transformá-los. Você morre, como você vive. Você viveu em estado de ira, criou carmas terríveis, você está os encarando agora em ira. Não pense que você está encarando tudo isso como castigo, isso tudo acontece apenas porque você caiu nas armadilhas do jogo do Ego. Seu apego a quem você era, o apego ao controle, apego a atenção que lhe era dada, os seus medos, tudo isso te prendeu a essa armadilha.”

“E eu vou sair daqui?”

“Sim, quando tiver causas e condições para isso, você sairá daqui.”

“Em quanto tempo?”

“Pode ser em alguns anos, pode ser em muitos kalpas. Depende de como você vai se comportar aqui, e de onde sua mente vai estar. Depende de quanto tempo você ficará jogando esse jogo do ego. E seu comportamento definirá se você vai conseguir um bom nascimento, e conseguir voltar para o reino dos humanos, ou se entrará em outros reinos como o reinos dos animais ou dos espíritos famintos. Nada está definido ainda”

“Mas se você sou eu, você é humana, não um animal!”

“Eu faço parte da sua consciência. Esta forma também é uma projeção sua, assim como tudo que você vê e sente aqui. Se você se soltar das amarras do apego em quem você era, você experimentará toda a sua consciência expandida. Diferente da consciência limitada que temos enquanto estamos no estado manifesto. Permita que a luz que está dentro de você se funda a luz do universo. Não tenha medo!”

***

Tudo fica escuro novamente. Estou sozinha, no frio, mas num lugar estranho dessa vez. O chão é de terra, troncos de árvores grossos e com galhos finos e sem folhas. Eu morri, nunca mais vou ver minha mãe, meus amigos…. Meu sonho do baile de formatura foi por água abaixo...

O Chão está mole, está difícil de andar. Parece que estou afundando no chão! A lama já está em meu joelhos, e não consigo sair. Eu afundo cada vez mais...

Os galhos das árvores se enrolam no meu tronco e meus braços, espinhos furam e rasgam a minha carne. O que significa isso!? Por que isso agora!? Os galhos agora apertam meu pescoço com toda a força, estou prestes a desmaiar!

Um trovão corta o céu! E de repente me encontro deitada no chão. Sem galhos, espinhos ou lama. Está calor agora. Estou com muito medo! Posso ouvir o choro da minha mãe, bem ao longe. Ela está sofrendo. Eu sinto o sofrimento dela. Sinto muito calor agora. Tudo que eu queria era o abraço dela, e seu colo. Como eu queria agora o colo de minha mãe...

As árvores estão pegando fogo! Tudo está em chamas. Vejo agora uma figura em chamas, e ela vem em minha direção! Estou morrendo de medo! Ela se aproxima, e tem vários braços! Várias pernas! Ela é feita de fogo! A medida que se aproxima vai se tornando cada vez maior! Um enorme buraco na cabeça dessa coisa parece querer me engolir… Não consigo fugir. O fogo dela me queima, meu corpo arde muito! Vou ser engolida por esse demônio!!!!

Trovão novamente. Tudo está vazio. Agora até a floresta de barro com árvores sem folhas desapareceu. Estou exausta. Começou a chover agora, os pingos de chuva são cada vez mais grossos e pesados. Que tipo de demônio vai me atacar agora? Estou com muito medo. Estou com frio. A tempestade está forte. Não consigo mais correr. Não tenho mais força. Ando me arrastando, sem rumo.

Começo a ouvir barulhos, muitos sons ao mesmo tempo. Tambor, cornetas, sinos, pessoas gritando, pessoas sussurrando. Não consigo reconhecer as vozes por causa de tamanho barulho.

Continuo andando por muito, muito tempo mesmo, e agora vejo uma caverna. Entro nela para me abrigar da chuva. Dentro dela se parece com a sala da casa da minha avó. Sentada no sofá lá está ela. Começo a chorar que nem criança. Não consigo me conter. Ela me abraça, me leva até o sofá, deito com a cabeça no colo dela e ela começa a afagar meus cabelos e cantar suas canções de ninar. Ficaria ali para sempre. Estou limpa e seca e protegida agora.

“Minha querida, não tenha medo.”

“O que disse, vovó?”

Quando olho para ela, ela pende a cabeça para traz, luzes saem dos seus orifícios, e ela começa a derreter. Dou um pulo pra traz e toda a sala começa a derreter.

O líquido viscoso que antes era minha vó começa a me seguir para onde quer que eu me arrastasse. À medida que tudo ia se derretendo, o ambiente branco e claro se mostra novamente, uma enorme entidade aparece na minha frente. Realmente gigante! Essa entidade Está vestida com uma túnica negra, um elmo negro em sua cabeça, e no lugar de rosto, tem um universo dentro de si.

“Vamos ver como será seu julgamento. Que Dosho e Domyo venham até mim.”

Neste momento dois demônios saem das minhas costas, em direção a grande entidade e entregam uma espécie de pergaminho a ele.

“Estes mensageiros celestes nasceram no mesmo momento que você, e desde então a acompanharam como uma sombra acompanha o corpo, jamais separando-se de sua pessoa por um momento sequer. Como eles anotaram todas as suas ações, não pode haver nenhuma margem a erro. Vejamos o que temos aqui. Você passou longe de ser uma boa menina. Os pecados que cometeu foram terríveis. Você foi uma garota mimada, mentirosa, dissimulada. Vejo aqui que por muitas vezes você roubou dinheiro da bolsa de sua mãe…”

“Perdão, eu….”

“Você pensou em dar veneno para a empregada!”

“Mas eu não fiz, eu só pensei!”

“Silêncio! Ao menos aqui você aprenderá a ouvir! Tudo que você pensou e falou também será julgado aqui! Continuando com seus pecado... Ah sim, você fugia de casa para causar medos e transtornos ao seus pais. Isso definitivamente não é uma coisa boa! Acusou injustamente sua professora de agressão! Mas foi você mesma que causou os arranhões em seu corpo, não!?… Ah essa lista de pecados é imensa! Você viveu sob os venenos do Orgulho, Avareza, Ira e Estupidez. Muito me admira você querer redenção após isso tudo!”

Enquanto o juiz lia meus pecados, eu chorava incontrolavelmente. Não tinha coragem de erguer a cabeça. Tantas maldades que fiz em vida. Eis que ouço uma voz dentro da minha mente me chamando. Era a menininha, o próximo eu. Ela estava aos pés da do juiz, o que fazia ele parecer ainda maior, e ela ainda menor.

“Não tenha medo, você sabe que mesmo tendo pecado, você também fez muita coisa boa.” - Nós estamos nos comunicando por telepatia.- “Dosho e Domyo também anotaram seus bons atos.”

“Quero sair daqui!”

“Não tenha medo, deixe que a luz dentro de você se funda com a luz do universo.”

“Como eu faço isso?”

“Sente-se em zazen, se concentre. Não tenha medo, não tente controlar suas alucinações. Siga seus instintos”

Sigo as instruções da menina. Sento em posição de lótus, tento de todas as formas, me acalmar, me concentrar. Embora difícil, pois mais demônios da minha mente vem para me assombrar, mas tento manter minha calma.

Aos poucos vou conseguindo me concentrar. O Juiz sumiu, e com eles os demônios. Tudo vai ficando mais calmo. Mais vazio. E eu finalmente me entrego a luz. Adeus mamãe, me perdoe.

****

Saio de meu estado de meditação. Já não sou meu eu anterior, e ainda não sou o próximo. Estou em meu estado mais puro de natureza. Não sou mais menina, tão pouco menino. Sou um ser de luz.

Já se passou muito tempo. No tempo no reino dos humanos, se passaram muitos anos.

Tudo que tenho das minhas existências passadas fazem parte do meu carma. Aqueles que vou carregar em minha próxima jornada.

Vislumbro casais em cópula. Cada um deles são meus possíveis novos pais. Todos aqui tem o as causas e condições para meu nascimento. Minha consciência, não mais limitada, me permite enxergar quais desses casais tem relações cármicas com minha próxima jornada.

Minha atração pelo meu futuro pai, me fará nascer como menina, mas se minha atração for pela minha futura mãe, nascerei como um menino.

Escolho um casal em meio de tantos. No exato momento de minha concepção.

E assim, eu renasço.

Tema: Religião

Inspirado no:

Bardo Tholl - Livro Tibetano da Morte.

E em outros ensinamentos budistas.