CHAMADO -- DTRL 27
[Tema: Sobrenatural]
Busco ludibriar o pavor e puxar os fios da sanidade que aos poucos se entrelaçam em minha mente. Já não sei o que sou, nem se poderei suportar por mais tempo as sensações que me atormentam e consomem meus dias.
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Jurei não voltar a navegar pelos mares, meu tio havia morrido quando eu era só um mancebo imberbe de 15 anos e, sem ele, aquele sonho por aventuras não tinha mais o mesmo sabor. Não, o meu tio não era um pirata, um bucaneiro desbravador dos mares, nada disso. Ele ganhava a vida levando turistas em luxuosos cruzeiros pelo mundo afora, mas fingíamos que estávamos em outras épocas, ou dentro de histórias fantásticas, nutrindo na mente inúmeras fantasias.
Após sua morte deixei que a vida se encarregasse de enterrar muitos dos meus sonhos, mas quando fiquei viúvo e abandonado por dois filhos extremamente mesquinhos, achei que o melhor a fazer era tomar uma embarcação qualquer e passar o resto da vida no mar: o meu reduto, onde as águas ninam os navegantes qual mãe nina os sonhos de suas crias.
Assim, aos 52 anos de idade, aposentado e perdido em uma casa vazia, deixei de me importar se meus cabelos estavam embranquecendo ou se a barba estava, ou não, bem aparada, e me lancei no oceano. Visitei muitos lugares exóticos e construções que suportaram as intempéries do tempo: Ilha de páscoa, mausoléus da Europa, ruínas de cidades antigas e por último, o Mar Morto. Tal lugar possuía algo místico, espectral, que deixava minha imaginação aguçada. E por esse motivo me demorei naquela região explorando tudo ao máximo que podia.
Foi então que vi algo que marcou profundamente minha vida.
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Era inicio da tarde e eu vagava observando os vales e rochas que povoavam aquele lugar. Havia uma calmaria e uma brisa tão cálida, que me senti acolhido pela natureza. As águas estavam praticamente inertes e não via banhista em nenhum ponto por ali, mas logo algo chamou minha atenção. Sobre as rochas, não muito distante, vi sete homens altos vestindo túnicas vermelhas. Eles davam as mãos e balançavam o corpo de lá para cá como copas de árvores. Aquilo me prendeu e desejei observar mais de perto o que faziam.
Agachei-me dentre as pedras bem próximo a eles, e ao fazê-lo, percebi que as rochas rasgaram minha calça jeans, mas não dei muita importância, pois estava atento ao som das vozes daqueles homens. Eles entoavam um cântico em uma língua desconhecida para mim, e logo um deles começou a repetir rápido e inúmeras vezes as palavras:
SETE MARES;
SETE SELOS;
SETE VIRTUDES;
SETE CHAVES.
Depois a voz deste soou como um uivo de coiote, ecoando agudo e fino. Parecia que chamavam por algo ou alguém usando uma linguagem distinta. Os demais homens permaneciam entoando um coro e mantendo os lábios fechados provocando um som grave, que fazia algo vibrar dentro de mim.
Até aquele momento só sentia curiosidade, mas as mudanças de cores nos céus, de uma maneira estranha e brusca, fizeram o meu corpo todo se arrepiar, e depois, senti que poderia ter um ataque cardíaco a qualquer momento, pois vi surgir do chão um grande redemoinho enegrecido com seres indecifráveis muito mais medonhos que morcegos.
O pavor já me atormentava, mas meus olhos se abriam mais e mais para contemplar o que acontecia. As vozes e o uivo tornaram-se mais intensos e o redemoinho daquilo que só poderiam ser demônios, passou a circundar sobre os homens lhes retirando nacos de carne e fazendo-os sangrar e gritar. Minhas mãos e queixo tremiam compulsivamente, mas os acontecimentos seguiam prendendo minha atenção. Vi-os levitar lentamente sem parar de uivar, e logo, uma trepidação começou fazendo algo ascender das profundezas daquelas águas. Observei atônito, um eclipse dominar a luz do sol tornando o dia em noite, e o posicionamento das estrelas fazia formas indescritíveis nos céus, que mesmo agora, não consigo descrever com clareza. As águas se mostravam revoltas e uma ventania gelada irritava meus olhos.
Não sei ao certo se minha sanidade ainda estava comigo ou se imaginava tudo aquilo. Senti uma chuva grossa e protegi minha cabeça, pois caiam pedaços grandes de granizo que se espatifavam sobre as rochas. Ouvi um fragor horrendo vindo do Mar Morto, como se aquela fosse a resposta ao chamado proferido pelos sete homens.
Então tudo se anuviou à medida que aquele som adentrava e feria meus ouvidos. Perdi toda a razão e por momentos incontáveis permaneci aquém de mim.
Quando despertei, só restavam às túnicas dos homens sobre as rochas. Era dia e o sol irritava minha pele deixando marcas profundas de insolação. Quase não consegui tomar um veículo para sair daquela região e ir até minha embarcação. A viagem para casa foi difícil e cheia de visões insólitas. Recorri aos químicos diversos para tentar entorpecer a mente da realidade.
***
Hoje, meus dias se perdem em devaneios, tenho visões e ouço o estampido que ouvi naquele dia a todo momento. Aos poucos meu corpo deseja doses maiores de alucinógenos, mas o pior são as transformações que pouco a pouco me tomam. Já tenho o corpo coberto por chagas pustulentas, as vestes aderem e me irrita a pele, e meu rosto... Ah! Meu rosto... tornou-se apinhado de tumores que afetam a visão e o respirar. Minhas unhas caem e os cabelos não nascem mais. Tornei-me um recluso, um Lázaro. Quando saio nas ruas os cães ladram, as pessoas se afastam, e deixei de visitar os médicos, pois nada ameniza meu tormento.
Recorro a livros antigos de seitas e mistérios ocultos no tempo, e as revelações são sempre funestas e profanas. Passo dias montando na mente um possível quebra cabeças de recortes, mas tudo o que consigo é um amontoado de sentenças:
“Nas profundezas do Mar Morto se encontram as ruínas das cidades de Sodoma e Gomorra.”
“Goetia (do latim, a arte de Uivar), evocação de seres místicos agraciado a pessoas distintas. O Rei Salomão foi o primeiro a dominar tal sistema, que lhe concedia o poder de controlar demônios diversos.”
Talvez estas palavras façam algum sentido, talvez não. Tento buscar alguma lógica para o que acontece comigo, e às vezes, penso que não foi coincidência estar naquela hora e lugar. Quem sabe eu também fazia parte de tudo aquilo.
Apelo aos narcóticos.
Basta! Não quero mais pensar
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1- Texto criado sob inspiração do conto Dagon de H. P Lovecraft. No conto do autor o personagem (um náufrago) fica perturbado após presenciar um possível culto ao Deus Peixe e, por esse motivo, recorre às drogas.
2- H.P. Lovecraft é mestre em criar mitos e mesclar onírico com realidade. Dentre suas criações destacam-se: The call of Cthulhu e Necronomicon.
3 – O presente texto trata-se de uma republicação.