CALEUCHE - A PENÚLTIMA PARADA - DTRL 27

Abri meus olhos pela manhã, acordada pela fome. Nos sonhos tão doces, estava em um banquete em um grande navio de madeira, pessoas estranhas me rodeavam, mas estavam tão felizes que não senti medo.

Acordar foi como uma bofetada. Ardia meu estômago e algumas cãibras me tomavam de repente. Minha mãe me dera de comer na tarde de ontem. Devia estar pior, tinha deixado de comer aquele pão velho para que eu não sofresse tanto.

Coloquei a roupa pra ir até a escola. Estava tão confusa com a fome, que esqueci meu caderno e o lápis. E quando me lembrava do banquete, com tantos peixes e sopas, a barriga rugia reclamando. Segui a pé pela praia com os chinelos na mão. Pensava se minha mãe conseguiu algo na feira para lhe forrar o estômago.

Estou tão magra. Nem me viam como a moça de quinze anos que era, me achavam com dez no máximo. E era bom que na escola nem soubessem, muitos tinham a idade certa. Estava tão atrasada, pouco sabia de escrever, mas me orgulhava do tanto que lia. Sabia de todas as nossas histórias, tinha até um livro de lendas que uma tia me dera: “As lendas da Ilha Chiloé”.

A aula foi tão confusa quanto o caminho que segui pela praia. Na volta passei mais perto do mar, estava escuro, uma tempestade se aproximava. Tão negro o céu e com relâmpagos ao fundo. Via algo ao mar. Parecia uma bóia velha, flutuando. Quanto mais forçava a vista menos entendia.

Aproximei-me lentamente, a água estava tão fria e o vento fazia as ondas tão fortes, que achei não ter forças para ir mais fundo. Quando vi estava com água pelo pescoço. Foi tão rápido, me sentia conduzida pela corrente e num certo ponto nem mais lutei e me deixei levar.

Estava de frente para aquele monte informe. Era imenso, do tamanho de um lobo marinho, toquei-o com as pontas dos dedos. Todo meu corpo formigava. Aquela massa negra e com um couro duro tomado de pêlos. Prendi a respiração quando uma parte do ser afundou e outra emergiu, estava curvado, agora entedia o que era… um Millalobo.

Perguntei a ele se eu havia morrido e se me levaria com ele para o Caleuche, o navio de madeira dos afogados. Conhecia a lenda de cor. Aquele ser baixou na água e a parte lobo marinho ficou abaixo do mar, junto com parte de cintura que mudava para um corpo de homem de pele cinza e olhos negros. Ficou de frente para mim, uma cabeça mais alta e nada disse. Com as mãos me fez contorná-lo. Subi nas suas costas e juntos fomos para o fundo do mar.

Quando acordei estava no navio. Era noite e deitada no convés de barriga para cima, vi todas as estrelas no céu. Alguém que me fugia ao foco se aproximou. Uma mulher muito bela e sorrindo me estendeu a mão.

Fui apresentada a todos os presentes. Eram quinze, contando comigo. Perguntei do Millalobo e olhares foram trocados. Um homem explicou que ele nunca ficava com os afogados no navio, só o viam uma vez na hora da morte, e raras vezes ele os observava de fora.

Conduzida por vários que sentiam uma necessidade de me puxar pela mão e me confortar, fui para todos os lados do navio. Ora um me levava para pendurar lanternas nas velas com luzes bruxuleantes. Ora ajeitava uma longa mesa com toalhas sobrepostas, coloridas e vários pratos, copos e talheres. Até de flores que estavam nos porões do navio em sacas de milho, tive que ir buscar. Foram espalhadas pelo chão e por cima até da mesa.

Estava consciente de que havia morrido, mas não me sentia morta. E sim viva e faminta. O banquete se aproximava. Sabia do meu papel, todos sabiam. Íamos nos divertir pela eternidade, ou era o que pensava.

Soube de suas histórias tristes e de suas decisões difíceis nas miseráveis vidas. Eram muito semelhantes a mim, senti que estava em casa. Ou quase. Foi quando contei minha história que até as conversas dos que estavam na ponta da mesa cessaram.

Não queria que ficassem tão sombrios, como com o passar da noite foram se tornando. Iniciei com os meus sonhos e esperanças de uma vida melhor. De ter o que comer e que minha mãe pudesse ter um bom emprego para nos prover. Ficou muito pior começar pela parte da esperança. Alguns choravam envergonhados e outros abriram sorrisos trêmulos.

Constrangida pedi desculpas e ia me retirar da mesa, quando um deles se levantou. Passou um sermão nos chorões, bruscamente pediu que apagassem os sorrisos e me deixassem contar como quisesse que já estavam todos ali há muito tempo. Uma moça o interrompeu e disse que eu era tão jovem por isso chorou daquela forma.

O mais novo na mesa tinha seus 23 anos, segundo me respondeu quando perguntei suas idades. Era um rapaz esbelto e parecia mais novo. Explicaram-me que ali seriam sempre saudáveis e belos durante a noite. Assenti e retornei minhas lamentações resumindo o resto em: a morte do meu pai, pobreza e fome.

O silêncio seguiu um tempo, mas aquele que se levantou e passou o sermão, agradeceu minha história e pediu que os presentes fechassem os olhos. Fizemos uma prece estranha para o próprio Millalobo e para o mar que nos levara.

Quando abri os olhos à mesa estava repleta de todos os tipos de pratos com frutos do mar. Comi mais do que seria humanamente possível e mais ainda. Não sentia a saciedade e então me alimentei a noite toda. Mas apesar da estranheza de tudo e do ar cada vez mais sombrio, estava feliz por ter a barriga cheia, ou imaginar estar cheia.

Quando o brilho do sol surgiu no horizonte, fomos todos para a cabine principal. Decorada com temáticas marítimas e com o chão cheio de almofadas coloridas. Perguntei aos presentes o porquê tantas almofadas? Fizeram-me sentar no chão e aconselharam que eu mantivesse as costas apoiadas na parede. Alguns se abraçaram. E o nosso companheiro dado a sermões e preces sentou ao meu lado e pegou na minha mão. As suas palavras foram como chicotadas.

Não imaginei que pudesse ser tão ruim. Quando o sol finalmente apareceu é que vi o quão triste estavam todos na noite do banquete. Vi o quão falsos eram os sorrisos. E vi o que os suicidas ganhavam por suas escolhas.

Eu sufoquei. Sentia os pulmões enchendo de água do mar, ardiam como brasas. Sufoquei por horas, e via todos ficarem azulado. Alguns arranhavam as gargantas, outros em espasmos por cima das almofadas. Eu batia a cabeça contra a parede no frenesi de morte, no meu afogamento eterno.

Quando pensei que nunca acabaria, comecei a expelir toda a água que inundava meus pulmões. Assim todos faziam e alguns vomitavam por cima uns dos outros, saindo só uma torrente de água salgada. Quando enfim estávamos vazios e alguns tentavam respirar, uma mulher pegou fôlego e começou a gritar frases, que a princípio eu não compreendia. Apelava ao Millalobo que me levasse, que não merecia aquele sofrimento, não tinha me entregado ao desespero e tirado minha vida. Outros gritaram que eu era só uma menina e outros ainda diziam da injustiça, pois foi um acidente e aquele tritão sabia que estava errado.

Entre gritos de tire ela daqui e apelos aos berros, iniciou-se o afogamento novamente. Estava chorando e não sabia como ajudar, já não me afogava mais. Vi todos se contorcerem e ficarem azuis, alguns abraçados outros de mãos dadas. Quando enfim colocaram de novo a água para fora, acharam forças para me colocar fora da cabine e o mais novo deles me levou ao parapeito. Nadando de um lado a outro estava o Millalobo. Estendeu-me os braços. Pulei trêmula para fora do navio.

Acordei na beira da praia. Devagar me sentei e ainda vi um vislumbre do tritão no horizonte. Era meio dia então, o sol a pino no céu e enquanto caminhava minha roupa secou. Fui para casa, primeiro andando dolorida e depois correndo trôpega.

Quando cheguei à porta estava aberta, algumas pessoas arrumavam a casa. Dois homens levavam os móveis para fora. Vi minha tia no sofá chorando. Falei com ela, gritei, tentei puxar sua roupa. Minha forma tremulava, era como ondas, menos que uma brisa. Passei pela casa, vaguei pelas ruas e nada via. Onde estava minha mãe?

À noite regressei ao mar. Peguei a carona nas costas do tritão e voltamos ao barco. Fui içada a bordo. Ela me esperava. Depois não vi direito mais nada, chorei oceanos sem fim e ficamos abraçadas. As estrelas povoaram o céu e o banquete se iniciou novamente. Minha mãe contou como me procurou por todos os cantos e o quanto sofria. Depois de meses, convencida que eu estava morta, acabou por se atirar ao mar.

O tempo era tão diferente ali. Quantos séculos se passariam enquanto nos banqueteávamos e afogávamos num ciclo infernal. Não ficava durante o dia no barco. Millalobo fora piedoso e me escolheu para ajudá-lo. Descobri que algumas pessoas iam embora, um pequeno barco as buscava ao amanhecer. Outras nem mais falavam, pouco se mexiam, largados aos cantos e com o tempo sumiam ao anoitecer.

Algumas manhãs eu fiquei no navio. Segurava a mão de minha mãe e a via sufocar. Era tão horrível e triste. À noite me pedia para perdoá-la pela vida miserável que tivemos. Eu dizia que não culpava ninguém por isso e muito menos ela. Mas nada a absolvia e com o tempo ficou pelos cantos. Tentei animá-la com histórias, às vezes até a arrastava para um banco na mesa. Quase fiquei junto dela a ponto de desistir.

Um dia, ela não estava mais lá. E no outro um barco chegou. Despedi-me e ajudada pela tripulação fui posta em um barco cheio de flores. Flutuei sem rumo para o mar profundo, seguindo para outra realidade bem além da pós-morte.

Alda M. J. D

Temáticas: Criaturas Aquáticas, cultura latino-americana e sobrenatural.

Alda MJD
Enviado por Alda MJD em 26/04/2016
Código do texto: T5616904
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