Aracnofobia
"Defenda seu mundo. Proteja sua família. Seja um homem de coragem."
As palavras que o velho lhe disse à beira da morte ecoavam na sua cabeça desde que a escuridão dominara seu mundo. As cenas que Alex presenciou aquela manhã o aterrorizariam pelo resto de sua existência. Vivia em uma cidade pacífica, em um país pacífico que jazia agora sob cinzas. A história daquele povo seria aos poucos esquecida, remanescente apenas na memória de alguns velhos sobreviventes. Se acaso houvesse sobreviventes durante muito tempo.
Alex acordara, como todas as manhãs durante 7 anos, ao lado da mulher de sua vida. O sol entrava pelas frestas da persiana mal fechada e ele despertou com a claridade em seus olhos. Olhou para o lado como fazia todas as manhãs, e acariciou a pele do ombro de Rafaela, sua esposa. A pele morena e macia que tinha um perfume particularmente inebriante. Ela sentiu o toque de seu homem, virou-se e esboçou um sorriso preguiçoso.
- Bom dia meu amor.
- Bom dia minha vida, – ele respondeu – durma mais, ainda é cedo.
Ela virou-se novamente e ele se levantou. Espreguiçou-se e tomou seu rumo rotineiro até a cozinha. Pegou um pedaço de pão e um pote de requeijão na geladeira. Ele sempre comia pão com requeijão (“porque pão rima com requeijão hohoho” ele dizia) desde que era um garoto. Comia antes de escovar os dentes, porque achava que a pasta deixava um gosto ruim na boca e tirava o sabor de qualquer coisa. Tomou uma xícara pequena de café, nada mais que um dedo, a cafeína lhe dava azia, mas era um vício irremediável. Olhou pela janela da cozinha que dava para a rua e observou algo peculiar. Veja bem, ele sempre acordava muito cedo, o sol despertava cerca de 6 horas da manhã, e Alex gostava de despertar junto. A essa hora nunca havia ninguém na rua, as pessoas costumavam ir trabalhar às 9, mesmo horário de entrada das crianças na escola e do passeio diário dos idosos. Mas lá estava seu vizinho da frente, o Sr. Barbosa saindo de sua casa. Ele devia ter uns 60 anos, pintava os poucos cabelos que lhe restavam na cabeça e o vasto bigode que ostentava com orgulho de preto azulado. Estava de pijamas, comicamente listrados, como algum personagem das séries de TV. O Sr. Barbosa olhava assustado para o lado esquerdo, como se tivesse ouvido alguma coisa e estivesse verificando. De repente o vizinho ficou lívido, um vento pareceu sacudir seus ralos cabelos e ele se virou para Alex. O terror em seus olhos era quase palpável. Ele começou a abrir a boca, para gritar alguma coisa, imaginou Alex, mas a voz não saiu. Ele ameaçou fazer um movimento de levantar os braços, um gesto de alarme e então um borrão azul passou fazendo um estardalhaço, acertando o Sr. Barbosa em cheio. Alex pode ouvir, junto ao barulho de metal em atrito com o asfalto, um barulho de ossos se quebrando.
- Santa mãe de Deus!
Alex ficou paralisado por alguns segundos, seu cérebro tentando digerir o que acabara de acontecer. Quando conseguiu se mover, correu até a sala da frente e forçou a maçaneta de prata da porta de mogno trabalhado que fechava sua casa. Demoraram mais alguns segundos até ele se lembrar de que a porta estava trancada e a chave pendurada em gancho ao lado da sua cabeça.
-Idiota!
Pegou a chave e destrancou a porta , passando pelo portão a tempo de ver outras pessoas saindo à rua, provavelmente despertadas pelo barulho daquela coisa atingindo seu simpático vizinho da frente. Sua primeira reação foi correr até o local onde estava o que restava do Sr. Barbosa. Mas pelo canto do olho percebeu uma grande movimentação à sua esquerda. Quando virou a cabeça naquela direção, a força abandonou suas pernas. Ele nunca foi um homem de coragem notável, nunca havia se metido em uma briga, e a visão do que parecia ser o pior dos seus pesadelos com certeza o derrubaria. Há dois quarteirões de distância havia uma criatura de mais ou menos 4 metros de altura e patas que ele, aterrorizado, não conseguiu contar o número, mas imaginava que seriam 8. Era negra, horrorosamente negra, e coberta de pêlos grossos. As patas eram compridas e faziam um ângulo acima de seu corpo, que parecia uma bola peluda de terror. Alex já tinha visto algumas aranhas de perto na sua vida, e sempre teve um medo irracional delas (“nada que tenha mais de 4 pernas pode pertencer a este mundo”). Ela vinha andando pela rua, destruindo e jogando coisas, ocasionalmente empalando algum desavisado que acordara com o barulho com uma de suas patas traseiras, que traziam duas grossas, e pelo jeito afiadas, pontas e algum material que talvez fossem suas unhas. O objeto azul que atingira o Sr. Barbosa era uma motocicleta que estava atrapalhando o caminho daquele monstro. Alex começava a ouvir os gritos das pessoas e provavelmente ficaria ali paralisado se não começasse a sentir o chão tremer. Ele se levantou de um pulo e a apenas alguns metros de distância, uma pata negra rompeu o solo, fazendo voar pedaços de asfalto. O chão começou a pulsar, prevendo que outra daquelas aranhas gigantes sairia dali a qualquer momento. Alex então correu para dentro de casa, encontrou sua mulher na passagem entre a sala e o corredor que dava para os quartos, apenas de camisola, que sonolenta perguntou que baderna era aquela que ela estava ouvindo.
- Pega a Julinha – foi a única coisa que Alex conseguiu falar.
- Mas p... – ela ainda tentou perguntar.
Mas ele já estava correndo para o quarto da sua filha de apenas 4 anos. A viu dormindo como se o resto do mundo não existisse, seu pequeno tórax subindo e descendo lentamente debaixo da coberta colorida. Com toda a delicadeza ele a sacudiu, e ela se virou.
- Papai?
- Filha, acorda, a gente tem que sair.
- Já ta na hora da escola? – ela perguntou inocentemente.
- Não filha, hoje não tem escola ta? A gente vai dar um passeio. – respondeu Alex.
-O que está acontecendo? – a voz agora visivelmente alarmada atrás de Alex.
Ele pegou a filha no colo, que instantaneamente pousou a cabeça em seu ombro direito para tirar mais um cochilo
- Rafa, põe uma roupa, rápido, tem algo acontecendo lá fora – ele disse se virando para a mulher.
Um estrondo abalou a casa, gritos invadiram lar daquela família que despertara aquela manhã para sobreviver o resto de seus dias. Rafaela gritou aterrorizada e se agarrou ao marido.
- Vai Rafa!!!
Ela correu para o quarto, pegou a primeira roupa que viu, pendurada em um cabideiro ao lado da cama. Um vestido vermelho e florido. O mundo parecia que estava acabando, porque eles estavam pensando em roupas? Ela arrancou a camisola e enfiou o vestido pela cabeça enquanto corria de para a sala. Alex estava encostado na passagem da porta que dava para a rua, com a filha ainda dormindo em seu colo.
- Rafa, a gente vai correr até o carro. Você leva a Julinha e pula o mais rápido que puder no banco de trás. Entendeu?
Rafaela sempre confiara em seu marido, era o homem mais gentil e inteligente que ela já havia conhecido. Se ele falou que era para correr, ela correria.
- Quando eu gritar corre, você corre atrás de mim, tá?
- Ok – ela respondeu.
Alex passou sua filha para os braços da mãe, que a aninhou em seu colo como só as mães podem fazer. Eles se olharam, por alguns segundos, certificando que estavam entendidos. Ele gritou “CORRE!” e partiu em disparada para a calçada. Rafaela partiu atrás dele. A rua estava um caos, gritos, barulho de coisas se quebrando, pessoas correndo, mas ala ainda não sabia porquê. Olhou sobre seus ombros e viu um enorme vulto preto mover-se rapidamente, a não mais que 10 metros de distância. Era uma das patas da aranha que só não buscara sua cabeça porque um bando de garotos dos bairros estava atrás dela, atirando pedras. Desviaram a atenção do monstro, evitando que a fuga daquela família acabasse antes mesmo de começar. Ela continuou correndo em direção à garagem, que ficava na lateral da casa. Alex já havia desativado o alarme do carro, e escorregava sobre o capô para alcançar o lado do motorista. Ela abriu a porta de trás e pulou para o banco no mesmo momento em que o carro era ligado. Ela deitou-se sobre a filha. Alex engatou a ré e pisou no acelerador. Quando saíram novamente para a rua, Alex virou o carro na direção oposta da aranha, engatou a primeira e saiu olhando para o retrovisor. Ele viu o aquele bicho maldito esmagar um dos garotos que tentavam combatê-la com o próprio corpo e se virar em direção à sua casa. Ela ergueu uma pata e desceu sobre o telhado, destruindo parte do que era a cozinha. Acelerou mais o carro. Virou-se para a esposa.
- Vocês estão bem? – perguntou.
- Sim, a-acho que sim – Rafaela respondeu.
Olharam para a filha e ela estava se sentando, já totalmente acordada. Estava assustada.
- Papai... o que era aquela coisa lá atrás? Estava batendo naqueles meninos.
Rafaela percebeu que sua filha estava com a cabeça em seu ombro esquerdo no momento da fuga, olhando para trás. Não sabia em que momento ela tinha acordado, estava muito assustada para ter percebido, mas pelo jeito vira muita coisa antes de pularem para dentro do carro.
- Não sei. – ele respondeu – Sinceramente, não faço idéia.
- Calma filha, - Rafaela disse enquanto a puxava para o seu colo – estamos indo para um lugar mais seguro, ok?
A menina apenas concordou com a cabeça. Alex continuava correndo em direção ao centro da cidade. Algumas pessoas de sono mais leve saíam para a rua, atraídas pelo barulho que vinha de longe, e olhavam o carro prata que passava a toda a velocidade.