Um salto no outubro - DTRL27

Naquele verão Davi e eu ainda brincávamos de super-heróis. Amarrávamos as toalhas de mesa no pescoço e fazíamos delas nossas capas. Eu era o Super Nico e ele era Boom. Ainda me pergunto por que diabos seu herói tinha um nome tão estúpido.

- Você não pode atravessar o mundo assim tão rápido! - gritou Davi enquanto eu corria em círculos o mais rápido que meus pés descalços permitiam. - Não assim tão rápido, é impossível!

- Não é impossível não senhor - eu respondi. - Super Nico pode correr na velocidade da luz.

Ele me olhou com uma expressão de curiosidade sincera.

- E o que isso quer dizer?

- Quer dizer que é rápido para caramba - respondi. - Quer dizer que posso atravessar o mundo assim ó...

Estalei os dedos para dar ênfase. Brincamos daquele jeito tanto e tantas vezes naquele mês que me sinto curioso - tão curioso quanto meu irmão deve ter se sentido quando eu lhe falei sobre a velocidade da luz - dos motivos pelos quais essa cena em particular aflora melhor na minha mente.

Talvez o estalar de dedos tenha um significado. Talvez simbolize o tempo que passou rápido, tão rápido que eu não percebi quando as coisas mudaram entre nós.

Davi e eu - ou Boom e Super Nico - salvamos o universo uma centena de vezes. Enfrentamos o Coringa, Magneto e Lex Luthor, mas na maior parte tínhamos nossos próprios vilões. Quase todos eram inspirados nos vizinhos rabugentos da rua doze: Guilherme Mecânico; Simão; Dona Lulu e até mesmo o Sorveteiro, que papai dizia ter um jeito estranho de encarar as crianças. Papai sempre fora um chato e por isso figurava como vilão, às vezes.

- Você sabe de onde vêm aquelas coisas? - perguntava quando eu implorava por alguns cruzeiros. - Sabe de onde vem aquele sorvete? Sabe se tem o padrão de qualidade?

Papai adorava os tais padrões de qualidade. Eles surgiram com tudo na década de 70. Quase todas as suas falas terminavam mencionando algum.

- Não senhor - eu respondi.

- Ótimo, então nada de sorvete - ele disse, tornando a folhear o jornal. - Soube que o filho do vizinho passou maus bocados, um dia desses.

- Sim senhor...

- E eu não quero filho doente... Deus, já bastam as contas que tenho de pagar! Não é fácil dar uma vida boa a você e seu irmão, o padrão de qualidade custa caro, sabia?

O vizinho que meu velho se referiu morava do outro lado da rua. Era um menino gordinho que brincava com a gente de vez em quando. Quando ele era apenas um bebê, caiu na piscina e quase morreu afogado. Por isso sua mãe se tornara uma maluca neurótica e ele só podia vir até minha casa escondido. Mas ele não era a única criança. De vez em quando outras se juntavam a nós.

Nelson - soube que virou contador; Vicente - fui no enterro, acidente de carro; Adriana - nunca mais tive notícias; Laura - veio a ser minha primeira namorada, uns seis anos depois -; Eustáquio, um moleque esquisito que gostava de explodir gatos - tive péssimas notícias sobre ele. Nessas ocasiões, como nos Cross-Overs da TV, formávamos a Liga do Universo e aí, malfeitor nenhum teria a mínima chance.

Eu era quatro anos mais velho do que Davi.

Naquele verão eu tinha dez e na incrível e inexplicável matemática do tempo, no ano seguinte, completei onze, embora parecesse ter envelhecido bem mais do que isso.

Foi rápido. Limpo e indolor, como uma operação médica em que dormimos sob o efeito de sedativo e acordamos com um dos pés amputado. Num dezembro eu salvara o universo na forma de Super Nicolas, no outro, era apenas um menino comum que mal limpava o próprio quarto.

Eu estava crescendo. Seguia o inevitável ritmo natural das coisas. Dois palmos para cima e um para dentro, dissolvendo a gordurinha infantil numa barriga lisa, com os primeiros sinais de penugem.

Davi não lidava muito bem com o fato. Continuava a vestir sua capa e empurrava a minha sobre meus joelhos. Eu fingia não entender aquele gesto e a simples menção do nome “Super Nico” soava quase como um insulto.

- Porque não podemos brincar? - ele perguntava.

- Tenho muita lição de casa. - eu respondia.

- E depois que você terminar...

- Vou sair com a turma.

- Mas, Super Nico...

- Eu já disse para não me chamar desse nome estúpido!

Mamãe costumava ralhar. Ela vivia dizendo que eu deveria dar mais atenção a meu irmão; que ele estava vivendo uma fase delicada onde a personalidade se moldava; que ele apenas queria brincar comigo; e que...

Bom, mamãe dizia muita coisa e eu ignorava a maior parte delas. Não dei atenção a Davi. Não brinquei com ele e tão pouco estava me fodendo para sua personalidade em formação. Meus dias de Super Nico estavam terminados, para sempre. E quando Davi aparecia na sala como Boom, eu fazia coro as risadas de meus amigos que iam lá para casa jogar no velho Comodoro.

Houve uma vez, que rimos tanto a ponto de Davi chorar. Depois, eu o vi brincando sozinho no quintal. Lutava contra o Super Nico, que traíra o bem e migrara para o lado negro da força. Eu me tornara seu vilão. De parceiro - mais parceiro que Batman e Robin; e Super gêmeos - me tornei um de seus vilões junto com papai e o sorveteiro.

Confesso que aquilo doeu. Embrulhou meu estômago de maneira esquisita, mas foi uma sensação momentânea. Logo veio o time de futebol, a natação na cachoeira e pescarias na represa do outro lado da colina com o pessoal da escola... Tudo isso me fez esquecer Davi completamente. Na prática, me tornei outra pessoa. Gostava de coisas diferentes, fazia coisas diferentes, pensava coisas diferentes e Davi me era tão estranho quanto eu era para ele.

Conheci Abigail, também. O primeiro beijo foi molhado, quente e confuso. Nós dois tínhamos doze anos e nenhum jamais havia experimentando qualquer tipo de contato físico com o sexo oposto. Contudo, ela certamente amadurecera mais cedo. Falava coisas legais, fazia coisas legais, gostava de coisas legais, enquanto eu ainda viva numa fase de panaca, fazendo e dizendo coisas de panaca.

Por mais que tenha arrancado a maior parte do Super Nico, alguma coisa dele ainda gritava sufocado. Meu quarto, que eu ainda dividia com Davi, estava apinhado de jogos de tabuleiros, bonecos de ação, armas que disparam luzes, figurinhas de coleção e gibis de super-heróis.

Deus, e se Abigail visse toda aquela tralha? O que ela pensaria?

Juntei tudo em quatro sacos plásticos e atirei no próximo caminhão de lixo. Sinto que Davi nunca foi capaz de me perdoar por aquilo. Ele amava cada um daqueles objetos, e eu também amava.

- Você não podia jogar fora! - ele chorava numa voz estridente. - Você não podia jogar nossas coisas no lixo.

- Aquela porcaria é coisa de panaca! - eu respondia, também gritando. - Quando você crescer você vai entender que...

- Vou contar para o papai, vou contar tudo para ele...

- Se você contar eu te mato!

Davi me fitou com aqueles imensos e redondos olhos de filhote de foca. Olhos castanhos, bonitos, marejados que faziam sua face parecer absurdamente pequena. Deus, não sei por que disse que o mataria. É óbvio que não mataria, ou mataria? Não sei, mas ele acreditou, engoliu o choro e me disse numa voz quase muda:

- Eu te odeio, Nico.

Ele me odiava. Não era apenas mais uma briga entre irmãos. Acho que dessa vez ele realmente me odiou. De verdade.

Quase não nos falamos desde então. Acho que Davi, em certas ocasiões, tenha tentando algo parecido com uma reconciliação. Quando fiz treze anos, ele me deu um porta canetas artesanal, sem cartão. Nunca agradeci, mas ainda tenho o objeto.

Sempre tive uma personalidade difícil, arrogante demais para pedir desculpas. Achava-me grandes coisas, mesmo depois de Abigail terminar tudo e começar a sair com um cara mais velho (não necessariamente nessa ordem). Tinha vários amigos, um emprego legal para um garoto de treze anos (trabalhava na loja do posto de gasolina) e havia alcançado uma popularidade razoável na escola.

Quando voltei para casa naquela tarde de agosto, Davi era a última coisa que ocuparia minha mente. Fiz o caminho de volta pelo Bulevar. As árvores que ladeavam nossa rua despejavam flores vermelhas que salpicavam o chão do pavimento e o ar quente de primavera umedecia meu pescoço. Já era finzinho de tarde e o último suspiro de dia era um clarão avermelhado.

Abri o portão de casa e atravessei o quintal. A grama bem cuidada fazia cócegas nas minhas canelas e os anões de jardim, que tanto Davi e eu combatemos quando éramos super-heróis, me saudavam com seus olhares vazios e inanimados. O cheiro de orvalho era o mesmo, mas havia alguma coisa diferente no ar.

Girei a maçaneta da porta e quando a abri, mamãe pulou sobre meus ombros, abraçando-me com força.

Davi pulara do telhado. Pulou da beirada da calha como um nadador. Vestira a maldita capa de Boom e simplesmente...

Simplesmente pulou.

Ele não morreu. Não é qualquer queda de cinco metros que mata um menino saudável. Mas houve danos. No caminho para o hospital, no sofá traseiro do velho Corcel de papai, teve uma convulsão - por ter batido a cabeça - e faltou oxigênio no cérebro. Alguns minutos, nada mais do que isso. Mas meu irmão se tornou um retardado mental e na maior parte do tempo, não faz outra coisa se não babar e resmungar por estar todo cagado.

Hoje fomento uma instituição para vítimas de danos cerebrais. Faço uma doação generosa todos os anos. Compareço nas festas de encerramento, recebo placas adornadas com meu nome e tiro foto com sujeitos tão burros que mal conseguem mijar sozinhos.

Eu os odeio; detesto seu cheiro, suas bocas tortas salivando... Nunca houve um dia em que eu não me pergunte: porque diabos ele pulou? Aquilo me perturba. Me assombra porque sei bem qual a resposta.

Meu irmão pulou porque acreditava que eu não havia partido, não completamente. Achou que se estivesse em perigo, eu vestiria a capa mais uma vez, uma última vez. Pensou que se pulasse o Super Nico estaria lá para salvá-lo...

Bom, eu menti. Ele acreditou.

Estou olhando para o porta-canetas que ele me deu. Não é um porta canetas-legal, mas um porta-canetas de panacas. Não tem figuras de ação e nem é colorido, mas simples e cinzento, ideal para um advogado, quem sabe... Um porta-canetas de panacas! Panacas... Só hoje eu percebo exatamente o que essa palavra significa.

TEMA: MENTIRAS

#######NOTA DO AUTOR #########

Confesso que demorei a decidir se este conto realmente se enquadraria no horror. Decidi que sim. Acredito que o terror moderno é mais do que vampiros, demônios ou apocalipse Zumbi. Ele é sútil, melancólico, e as vezes, até mesmo doce... E esse foi meu objetivo: fazer um terror doce. Acho mais fácil ir direto na jugular, então não sei se obtive êxito na minha proposta. Quanto a essa pergunta, deixo para vocês, leitores do DTRL, responderem. Espero que gostem, e não esqueça de avaliar essa história com um comentário!

Isaac Räja
Enviado por Isaac Räja em 25/04/2016
Código do texto: T5615452
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