A Velha dos Gatos

Das alturas, o Eterno enxerga as profundezas; não importa a distância, Ele sabe tudo sobre nós. (Salmos, 138:6)

----

Aconteceu há poucos anos em uma cidadezinha do interior de São Paulo.

Baba, como foi “batizada” pelos moradores da cidade – porque babava um pouco quando falava, feito um cachorro doente –, veio de ninguém sabe onde; simplesmente apareceu, empurrando um carrinho enferrujado de supermercado cheio de trapos, papelão e quinquilharias indecifráveis.

De aspecto repugnante, tinha o rosto deformado pelo que parecia ser algum acidente envolvendo fogo ou talvez ácido; sempre vestindo roupas esfarrapadas e escondendo parte dos cabelos grisalhos embaixo de uma touca de lã azul, caminhava com dificuldade, com aquele carrinho por diante.

Outros detalhes mais interessantes da aparência desta singular figura talvez fossem as mãos contorcidas suportando compridas unhas amarelas, os olhos prejudicados de cor leitosa, o nariz torto e desfigurado, a altura não superior a um metro e cinquenta centímetros, a esqualidez, a voz rouca, a falta de dentes e o fato de que, apesar de tudo, não cheirava mal – ainda pelo contrário. Exalava um cheiro interessante, almiscarado de incenso quando passava, que realmente não combinava em nada com a pessoa.

Baba também era conhecida como “a velha louca dos gatos”. Vivia esmolando e dormia nas ruas, sempre cercada de muitos gatos. Alguns deles inclusive tinham coleiras de identificação e eram muito bem cuidados, aparecendo somente à noite e, quando clareava o dia, provavelmente voltavam para suas casas. Os gatos da rua ficavam com ela permanentemente e a mendiga os alimentava melhor do que comia ela própria. Nunca fez mal a ninguém, embora as vezes os jovens malcriados rissem dela e fizessem chacotas e os donos de restaurantes a humilhassem.

O crime chocou toda a população. Estampava a primeira capa de todos os jornais locais e inclusive foi manchete em importantes jornais do estado e telejornais.

Baba dormia, com seus muitos gatos, seus trapos e carrinho, debaixo de uma marquise da principal rua de comércio. Era uma noite muito fria e o vento estava de cortar o rosto, talvez motivo pelo qual a velha não viu a aproximação dos delinquentes, já que tapara até a cabeça com um pedaço de pano.

Eram quatro jovens rapazes. Andavam bêbados fazendo arruaça na saída de uma festa. Atacaram Baba e seus gatos com chutes e socos e ainda lhes atearam fogo. A velha chegou a ser socorrida e levada ao hospital mas não resistiu aos ferimentos. Alguns gatos morreram, outros ficaram extremamente machucados e muitos conseguiram escapar. No local onde Baba dormia, restou uma grande mancha preta de trapos queimados, o carrinho e rajadas de sangue na parede. O dono da loja, assim que a polícia liberou o local, mandou que colocassem uma pequena capelinha com flores discretas ali.

Embora as câmeras de segurança dos estabelecimentos próximos tivessem filmado tudo, nenhum bandido foi identificado e ninguém tinha sido preso, até as duas semanas seguintes.

Foi quando chegou na delegacia, por volta das quatro horas da manhã de uma segunda-feira, um adolescente muito nervoso não falando coisa com coisa. No meio das incoerências que dizia, balbuciou “eu sou culpado!”. Os policiais, a princípio, acreditaram que o rapaz estava sob efeito de drogas e só tentaram acalmá-lo para mandá-lo embora, mas quando ele começou a relatar o que parecia ser uma confissão, ficaram atentos e procederam conforme o trâmite.

O jovem disse que tinha dezesseis anos, e que se chamava Maurício, entregando o documento de identidade. Antes que seus pais fossem acionados, chegaram na delegacia, desesperados, gritando que o filho deles estava louco.

Maurício chorava. Pedia aos pais que o perdoassem, e afirmava que era tudo verdade, coisa que ele precisava revelar às autoridades logo antes que “ela levasse sua alma”.

O relato de Maurício foi, resumindo, de que ele estava, há duas semanas atrás, em uma festa com mais três amigos. Um desses amigos, o Alisson, brigou na saída da festa e eles estavam muito irritados e bêbados. Foi quando passaram por “aquela velha esquisita” que dormia na calçada com um bando de gatos e de repente o Alisson, enfurecido, começou a chutá-la e a bater em uns gatos que estavam com ela. A partir daí, segundo Maurício, os outros moços, incluindo ele próprio, seguiram o exemplo de Alisson e também bateram na velha, até que tudo fugiu do controle e, com uma garrafa de absinto e fósforos, puseram fogo na mulher.

Estupefato, um dos policiais perguntou a ele o nome dos outros amigos e por que ele estava revelando tudo. Maurício contou...

Eram Alisson, Fabiano e Márcio. Ele estava contando tudo porque não aguentava mais a velha na cabeça dele. A velha perturbava o dia todo e não o deixava dormir... Dizia coisas assustadoras pra ele e mandava ele assumir o que fizera.

“Sentimento de culpa. Ele é muito jovem.” foi a conclusão. Com o endereço dos demais supostos culpados, a investigação agora tomava rumo. Maurício foi detido conforme a lei permite de acordo com sua idade.

No dia seguinte, o primeiro a ser procurado foi Márcio, que também era menor – quinze anos. Porém, não conseguiram falar com o rapaz, o qual os pais informaram estar em um hospital psiquiátrico há três dias, depois de um surto severo de esquizofrenia. A mãe disse que até os médicos se impressionaram com as reações do garoto, que conseguiu, entre outras coisas, quebrar as pontas dos próprios dedos tentando “cavar” a parede para fugir “da bruxa demoníaca”. Atualmente, como era impossível mantê-lo acordado ainda que com fortes calmantes sem que ele tivesse tais reações, estava em uma clínica especializada. Os policiais explicaram o que Maurício lhes dissera e os pais de Márcio ficaram horrorizados e diziam entender agora o porquê de o filho estar doente, afinal de contas, “não era algo da índole dele e ele então nem deveria ter participado, mas como viu tudo, adoeceu”. A velha arte que os pais dominam de tentarem se enganar.

Fabiano morava bem próximo à casa de Márcio e foi o próximo. Já tinha dezenove anos e morava com uma tia doente, que passava a maior parte do tempo na cama. Na verdade, era a única família que Fabiano ainda tinha. Quando os policiais bateram ele mesmo abriu a porta e, baforando um cigarro vagabundo, desabafou. “Esperava que vocês viessem”. Levado à delegacia sem oferecer resistência, o bandido confessou tudo confirmando a história de Maurício, ainda que numa versão um pouco diferente.

Disse que nunca teve medo de nada e que a bem da verdade, depois que seus pais foram mortos por assaltantes, não acreditava em nada nem ninguém, e odiava a raça humana em geral. Que pessoas como “aquela maluca” eram parasitas sociais; que mantinha esse pensamento independentemente de a cabeça dele andar lhe pregando peças. Questionado sobre isso, Fabiano tentou se mostrar racional e disse que, apesar da sua antipatia pela sociedade em geral, nunca tinha feito nada parecido e certamente seu sentimento de culpa que vinha do subconsciente andava fazendo ele ver e ouvir coisas e não comentou mais nada. Foi preso.

A maior surpresa no desfecho da captura dos culpados pela morte de Baba se deu quando Alisson foi procurado.

Ele morava sozinho, já tinha vinte e três anos; como ninguém abriu a porta, os vizinhos foram indagados sobre o moço e disseram que o viram entrar em casa há dois dias e não o viram mais sair, e que de vez em quando sentem um cheiro peculiar vindo de dentro da casa do homem.

Suspeitando de que algo pudesse ter acontecido ou mesmo de que o suspeito tivesse fugido, a porta foi arrombada. De súbito foram tomados por inteiro pelo odor forte do ambiente. Era um cheiro especiariado, de almíscar, feito incenso. Revisando os cômodos da casa se depararam com a terrível imagem de Alisson pendurado no suporte para saco de pancadas que tinha em seu quarto, enforcado com um cinto. Os olhos esbugalhados, os sangramentos e a língua roxa exposta denotavam que ele sofreu alguns bons segundos antes de morrer.

Em cima da cama desarrumada tinha um poster da banda Iron Maiden com uma caneta preta comum em cima. Ao averiguar o ambiente, um dos policiais bateu sem querer no poster que caiu no chão, com o verso pra cima. E no verso branco estava escrito, em caneta preta, as seguintes palavas:

“Já fui queimada muitas vezes, esta não é a primeira e posso apostar que não será a última. Atravessei muitas e muitas décadas e vi coisas que vocês, homens aleijados pela modernidade doente, jamais conseguiriam ver sem que ficassem completamente loucos.

Acompanhei o que vocês chamam de evolução. Vi todos os seus valores morais sendo desfeitos como uma bela tapeçaria que é destruída através de um fio solto puxado por um perverso.

Todos me olhavam com nojo e repulsa, mas se pudessem ver as próprias almas como eu via e ainda vejo, sentiriam vergonha de si mesmos e se esconderiam no mais fundo buraco que encontrassem no chão. As suas almas são feias, perniciosas e fétidas. Tem enormes feridas purulentas que escorrem, enojantes.

E julgam-se melhores que os animais! Maltrataram meus adorados gatinhos. Aliás, os maltratam todos os dias, no mundo todo. Já tive pena de vocês um dia. Toda vez que presenciava a morte de alguém e via as mazelas terríveis que esperavam o morto do outro lado, eu chorava. Meu rosto retorcido ficava salgado por minhas sinceras lágrimas.

Mas a grande verdade é que nada daquilo que lhes espera é mais do que merecem! Vocês são uma grande úlcera incomodando a galáxia. O seu tempo na Terra não tarda, a Santa Morte muito em breve colherá, e eu estarei aqui, sem me preocupar com minha aparência, porque minha alma é bonita e sábia e tenho muitas coroas de ouro, enquanto vocês tem falsos ouros e pedras preciosas sem valor nos dedos e pescoços.

Já fui queimada muitas vezes, esta não é a primeira e posso apostar que não será a última.”

Assim que acabaram de ler as palavras atrás do poster, dezenas, talvez centenas de gatos cercaram a casa. Foi um fenômeno igualmente comentado pelos jornais. Alguns eram muito diferentes e nem pareciam de verdade, de tão grandes, lindos e exóticos; outros estavam com pelos e pele queimados e alguns ainda pareciam totalmente esfacelados. Miavam, num coro desconcertante e medonho. Em menos de um minuto foram embora, apressados, levando com eles o cheiro almiscarado que havia na casa.

Encontraram tinta preta nos dedos de Alisson, e a necropsia constatou que ele ingeriu algum líquido que lhe causou queimaduras internas, danificando seus órgãos. O grande mistério é como foi que ele conseguiu se enforcar naquele estado. Os legistas até hoje falam do caso entre si. Márcio nunca saiu do manicômio e Maurício já cumpriu sua medida e atualmente trabalha ajudando moradores de rua; Fabiano ainda está preso e os outros detentos dizem que ele é estranho e as vezes chora à noite.

Da capelinha montada para Baba nasceram flores ao redor, rompendo o cimento da calçada. Todas as madrugadas é possível que qualquer um veja a imensa quantidade de gatos que se reúne ao redor daquela singela homenagem. Ficam ali, deitam, miam, se enrodilham perto das flores. Tem ainda um gato muito especial. Enorme, negro, com grandes e lancinantes olhos amarelos, parece ser o “guardião” do lugar. Ninguém nunca ousa espantá-los dali. Certa madrugada, um bêbado relatou que viu quando os gatos saíram de perto da capelinha, e que o gato preto deu alguns passos na direção da escuridão e transformou-se em um homem, de chapéu e capa preta.

Nunca se soube quem era mesmo Baba, a velha dos gatos. Mas se acredita que seu corpo fora roubado do IML, pois o depósito estava vazio quando foram fazer a necrópsia.

______________________________________________________FIM

Femina Morituri
Enviado por Femina Morituri em 17/04/2016
Código do texto: T5607804
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.