Noite da Loucura

“E todos aqueles que se aproveitarem de qualquer vício da carne ou da alma

Serão amaldiçoados e enlouquecerão, sendo levados incontinenti ao Inferno” (Trecho talhado em pedra de algum culto antigo desconhecido)

Das coisas que poderiam acontecer aquela noite, jamais imaginaria que aconteceria aquilo...

Toda noite de sexta-feira, eu saía de casa para encontrar na rua com dois amigos meus, João Carlos e Diego. O João era o louco da turma – alto, beeem alto, franzino, com barba e cabelo por fazer (pente não era seu forte) e fazia uso indiscriminado de bebida alcoólica e cigarro de palha – quando não maconha, embora escondesse esse fato de todos. Já Diego era mais calado. Era mais robusto que eu e João – e mais baixo -, mas também adorava bebida alcoólica e não podia passar uma noite de sexta sem elas. Já eu era exatamente o oposto de ambos, uma vez que por motivos pessoais nunca bebi ou fumei – gosto dos meus pulmões e do meu fígado.

E aí estava um pequeno problema. Tanto João quanto Diego eram apaixonados por um bar que havia na região central de nossa cidade – o chamado Cantinho da Alegria. Era um bar pequeno, bem apertado, que enchia muito nas noites sanjoanenses e que tinha um grande número de pessoas bebendo e fumando – no fúmodromo, logicamente. E lá estamos nós naquele dia, uma vez que João Carlos estava lá para fumar seu cigarro de palha. O local estava completamente lotado e eu praticamente tinha que apurar meu nariz para este sugar algum ar puro – tinha mais de vinte pessoas ao meu lado fumando. Uma banda tocava uma agradável música no palco frontalmente ao fumódromo. Mesas ocupavam todo o local, tanto o salão principal quanto os adjacentes - dois deles, que delimitavam o pequeno corredor de acesso ao bar. O local estava completamente abarretado de pessoas, dificultando – e muito – o deslocamento.

- E cadê sua namorada, Alexandre? – perguntou João para mim. De fato, eu namorava. Ela era praticamente da minha idade e se chamava Ana Clara – ou Clarinha. Era uma garota loira, de (belas) sardas no rosto e uma estoeante e branco sorriso – parecia propaganda de creme dental de tão branco. Ela morava em um dos bairros mais afastados da cidade – só se conseguia ir no local de ônibus ou carro; a pé era impossível, a menos que algum animado queira andar duas horas só para chegar lá. E por tal razão era praticamente impossível estar com ela à noite, ficando com ela apenas durante o dia.

- Está na casa dela. – respondi

- Ainda não consigo entender o porquê de ela te deixar sair sozinho à noite. – brincou João

- Ué, o dia que você tiver seu namorado, você o impede de sair sozinho à noite sem você. – brinquei. Diego e a prima de João, de nome Sarah, que estava conosco, começaram a rir a ponto de gargalhar. João fecha o cenho e me fita, irritado.

- Você não perde uma, hein?

Para responder, apenas dei de ombros. Em seguida, um forte cheiro doce me distrai – como sempre. Olho para o lado e percebo um sujeito encostado na grade que delimitava o fumódromo fumando um pequeno – pequeno mesmo – cigarro de palha. Aquele cigarro era a origem do cheiro.

“Maconha”, pensei. Balancei a cabeça e voltei com a atenção para João e Diego. Neste instante, o primeiro estava comentando algum evento bizarro da vida com os demais, e eu passei a prestar atenção e (tentar) entender:

- Não sei se você se lembra dela, Sarah? – perguntou João à sua prima. Esta balançou a cabeça negativamente. Era parecida ser bem mais nova que ele. – Você era bem nova quando ela faleceu. Aí, quando ela faleceu, o filho dela, o Marcos, tinha pouco mais de dois anos. Estávamos arrumando a casa dela e o Marcos estava sentado no chão. De repente...

Para minha surpresa, nesse exato momento um sino começa a tocar. A princípio estava longe, mas depois parecia estar sobre minha cabeça. “Sino, essa hora? Como assim?” Assustado, olhei para cima. Durante o dia, era normal escutar barulho de sino, uma vez que o centro da cidade era rodeado de, pelo menos, seis igrejas – e estávamos próximos a uma delas. Mas não aquele horário. No instante em que visualizou o céu ao meu redor, percebi um enorme brilho, como se fosse um relâmpago – só que imenso, do tamanho do céu. Em seguida, o sino cessou o toque, inesperadamente – da mesma forma que começou.

“Que porra foi ess...?”, me perguntei. Entretanto, escutei um barulho à minha volta e um sopro na minha nuca que arrepiaram toda minha espinha. Parecia um rosnado, a centímetros de distância de mim, no meu cangote. Voltei o olhar para a altura de meus olhos. Sobressaltei-me de tal maneira que acabei por deixar um “Puta que pariu” que ecoou por todo o lugar.

Eu não conseguia mais ver uma única pessoa normal naquele ambiente. Todos – incluindo Diego, João Carlos e Sarah – estavam completamente transformados. Rosnavam furiosos, como cães acometidos com raiva. Estavam paralisados, curvados para frente e com os braços pendendo paralelamente ao corpo.

“O que...?”, me perguntava. Minha mente estava, naquele instante, rodando a mil por hora, tentando entender o que estava acontecendo. Já o meu corpo se encontrava completamente paralisado, tamanho o torpor – não conseguia mexer um único músculo sequer.

Repentinamente, um rapaz de seus vinte e poucos anos, logo atrás de mim, deu um imenso e bestial grito, que parecia que iria destruir meus tímpanos. Tampei o ouvido, na tentativa infrutífera de tentar impedir o som de entrar. “O que...?”, perguntei-me novamente. Em seguida, para espanto meu, visualizei a cena que jamais imaginaria que visualizaria, nem naquele dia, nem em minha vida. Este rapaz – o que gritou – avançou sobre a moça que estava na frente dele – aparentemente sua amiga – e socou-lhe o rosto. Este foi o estopim pra carnicifina.

Em pouco mais de um minuto, todos os loucos estavam avançando um no outro. Eram ataques rápidos e certeiros. Além de animalescos. O rapaz do grito avançava sobre a moça que ele próprio jogou no chão e arrancava a pele de seu rosto, além dos olhos e nariz, com a mão. Uma moça arrancou os braços de uma segunda moça com as próprias mãos e bateu em um terceiro com estes. Um outro rapaz, distante dos demais, batia a cabeça de uma garota na parede até esmigalhá-lo, enquanto um segundo rapaz mordia e devorava suas costas, na região da omoplata esquerda.

Eu me encontrava completamente paralisado diante de tanto torpor. Nenhum músculo meu conseguia mexer – apenas tremia e tremia. Eu apenas olhava para os lados, à procura de alguma viva alma em sã consciência. Não consegui encontrar ninguém – mas parecia que havia dentro do estabelecimento, uma vez que haviam gritos incessantes de ajuda oriundos daquele local -; entretanto, acabei por perceber João e Diego vindo furiosos na minha direção. Surpreendi-me. Tamanha a surpresa acabou por só dar tempo de empurrá-los para trás. Estes forçaram para frente, empurrando-me para trás. Acabei por esbarrar na pessoa – ou ser – que se encontrava atrás de mim. “Merda”, pensei.

Rapidamente virei para trás. Visualizei um rapaz de pele morena e cabelos dread me olhando furiosamente, a poucos centímetros de meu pescoço. Em um só pulo, o rapaz segurou a parte de trás da minha blusa e tentou me puxar. Mexi o braço direito para trás, cravando o meu cotovelo várias vezes no rosto do rapaz, acabando por fazê-lo tombar. João – a qual estava segurado pelo braço direito – avança em minha direção, aproveitando-se do fato de eu ter momentaneamente largado. Meramente por instinto, seguro Diego – que estava sendo impedido de andar pelo meu braço esquerdo – e o jogo na direção de João, quase o derrubando. Neste instante, para sorte minha, Sarah – também completamente enlouquecida – pula nas costas de seu primo, mordendo a sua nuca e segurando a sua cabeça na tentativa de arrancá-la. Diego cambaleia, esbarrando fortemente em João e tenta vir em minha direção; entretanto, eu já havia saído do local, encolhendo o corpo e correndo entre as pessoas enlouquecidas.

Segundos depois, me encontrava novamente dentro do estabelecimento comercial. O local já estava completamente tomado pela carnificina. Haviam vários corpos destruídos no chão – com os peitos abertos, sem braços, com a cabeça completamente destruída; de tudo quanto é jeito. Poças e mais poças de sangue se formavam no chão – fora os borrões nas paredes. Várias pessoas destruíam umas a outras, enquanto duas garçonetes gritavam por ajuda sobre o balcão enquanto eram violentamente espancadas por braços e cadeieras.

Eu queria muito ajudá-las. Eram boas garotas e sempre nos atendiam bem – uma, inclusive, era amiga do João. Entretanto, não sabia sequer como ME salvar – imagina os outros. Apenas abaixei a cabeça e prossegui. Avancei pelo interior do palco – que estava vazio, eis que os cantores estavam no meio da multidão, matando ou morrendo. Agarrei o mastro onde se encontrava o microfone – jogando-o no chão, quase estourando novamente meus tímpanos – e o levei comigo – era bom ter alguma coisa em mãos; fazia-me sentir mais seguro.

Avancei pelo interior do bar. Para minha surpresa, eis que uma moça de vestido longo estampado e cabelo estilo hippie veio em minha direção, tentando segurar meu corpo. Desviei, o mais rápido que pude e cravei em sua face meu protótipo de arma. Naquele instante, sobressaltei-me. O monstro segurou o mastro e o puxou. A força daquela moça era sobrenatural – lógico, porque nenhuma pessoa normal arrancaria braços da outra com as próprias mãos – e ela rapidamente me jogou para trás, o mais distante que pôde. Atravessei todo o pequeno espaço do palco e bati com as costas na parede ao fundo.

Por sorte, não bati nenhuma das duas omoplatas na minha queda. Entretanto, da mesma forma bati com tudo minhas costas e caí ao chão, sem força. Uma insuportável dor alastrava por todo o meu corpo, impedindo momentaneamente o mesmo de agir. Percebi o monstro caminhando furiosamente em minha direção, ainda que estivesse com um violento galo no meio da testa.

“Merda, merda, merda”, fui falando incessantemente, enquanto evadia do local engatinhando, rapidamente. Em poucos segundos, adentrei em uma das divisões adjacentes à entrada principal. Percebi que, naquele local, se encontrava apenas duas pessoas se matando mutuamente à esquerda e algumas cadeiras e mesas jogadas para os lados. A saída daquele local estava tampada por um tapume enorme, que deixava apenas uma pequena abertura no teto. À direita desta saída havia uma segunda porta, aberta, que desembocava na parte de dentro de um balcão. Havia uma garçonete enfurecida matando um cliente batendo a cabeça dele várias e várias vezes no balcão. Pensei em retornar, entretanto, a outra saída era um corredor fino onde só se passava uma pessoa por vez – e não seria o melhor ambiente para fugir daqueles monstros enfurecidos.

Respirei fundo. O jeito era passar pela garçonete enfurecida. Às vezes ela estava demasiadamente ocupada para prestar atenção em minha presença. Acalmei meus nervos e avancei. Dois passos, apenas, pois logo uma cadeira – que veio sabe-se lá de onde – apareceu quebrando em minha nuca, jogando-me rapidamente para o chão. A dor – que já se encontrava pungente – se tornou insuportável. Parecia que tinham partido meus ossos. Os músculos do pescoço enrijeceram no mesmo instante. Pensei em ficar de bruços no chão do bar para sempre; todavia, escutei um rosnado logo atrás de mim e sabia que quem havia me acertado estava no meu alcance, querendo minha vida.

Virei de lado, mesmo meu corpo tentando impedir de todas as maneiras. Fitei a moça de vestido estampado caindo em minha direção, no sentido literal da palavra. Segurei-a – com a mão esquerda, parei o corpo, segurando seu peito logo acima dos seios; com a direita, parei a cabeça, segurando sua testa. Por instinto, minha reação foi segurar a boca dela encontrar meu corpo; porém eles não deram sinais de serem como os zumbis dos jogos e filmes, cujo interesse primordial seja devorar a carne das pessoas vivas. Aqueles monstros estavam apenas matando umas às outras e esse pequeno erro quase custou minha vida.

Por segurar apenas o corpo da moça, deixei os seus braços completamente à vontade. E estes rapidamente encontraram meu pescoço, impedindo o ar de atravessar livremente minha traqueia. Percebendo estar em maus lençóis, comecei a forçar a moça para trás. Não consegui. Resolvei apelar: dei-lhe um belo chute em seu traseiro, jogando-o para frente. Esta passou por mim e deu uma cambalhota no chão, batendo com as costas no local. Fiquei no chão alguns segundos enquanto deixava o ar retornar aos meus pulmões. Em seguida, levantei-me. Ali, certamente, não era o local mais adequado para se encontrar. Fitei a moça caída no chão, levantando-se rapidamente e não perdi tempo: desferi-lhe um segundo poderoso chute, dessa vez em sua cabeça. Esta foi jogada para o lado e bateu ferozmente no batente da porta, desfalecendo no chão enquanto manchava com sangue o local.

Ultrapassei o corpo da garota, adentrando no balcão. Naquele momento não havia percebido, mas havia, de fato, matado uma pessoa – ainda que estivesse enlouquecido. Depois meu cérebro ficou me martelando continuidamente: ela ainda era uma pessoa viva. E se esse efeito fosse transitório? De qualquer maneira, naquele instante eu havia me transformado em assassino. Só que naquele instante eu não havia me dado conta ainda. Estava apenas interessado em sair.

Adentrei o balcão e rapidamente me pus a saltá-lo para o outro lado. Pouco me importei com a presença da garçonete, que continuava destruindo a cabeça do cliente. Esta percebeu minha presença e largou sua vítima anterior para me segurar; porém eu havia sido mais rápido e os seus braços não me alcançaram. Ufa. Coloquei os pés no chão e já postei a evadir do local pela enorme porta frontal à minha frente. A garçonete, não obstante, aceleradamente saltou o balcão e veio em minha direção.

“Filha da puta”, pensei. “Quando eu queria que atendessem a gente, fugia igual o Diabo foge da cruz. Agora fica no meu encalço”. Acelerei os passos. Fitei uma motocicleta frontalmente àquela entrada do estabelecimento. Sorri. Era a minha. Procurei rapidamente no meu bolso onde se encontrava a chave da moto e sorri novamente quando percebi que ela se encontrava próximo de pegar. Já a retirei do bolso e procurei, no molho de chave, onde a chave da moto se encontrava. Ao encontrá-la, separei-a.

Saí do interior do bar poucos segundos depois. Encontrava-se em uma fina rua de mão única. Certifiquei-me de olhar para os dois lados da rua, a fim de visualizar se havia alguma pessoa enlouquecida perto de mim. Estava completamente vazia a rua. Aliviei-me. Corri em direção ao baú da moto e finquei a chave. Neste instante, escuto um rosnado perto de mim. Fitei. Era a garçonete, que estava correndo em minha direção, saindo do estabelecimento.

Naquele instante, desesperei-me por completo. “Puta merda”, pensei. Abri o baú o mais rápido que pude e retirei de lá o meu capacete. Segurei-o na mão esquerda e cortei o ar com o braço de mesmo lado. O capacete acertou duramente a face da garçonete, realizando um grande estrondo. A garota voou em direção ao chão.

- Bem feito. Morre, filha da puta. – estava tão aliviado naquele instante que acabei soltando algumas palavras inapropriadas. Em seguida, senti um arrepio atravessar minha espinha. Estava ficando com medo de mim mesmo. Estava aceitando facilmente a morte de uma pessoa. Pela segunda vez. Fitava o corpo da garota caída no chão, deitada sobre uma pequena poça de sangue oriunda da parte de trás de sua cabeça. Senti, naquele instante, pena dela. Ela tinha família, pai, mãe, namorado, às vezes. Namorado. “Clarinha”, lembrei-me instantaneamente dela. Naquele momento, percebi que meu celular vibrava furiosamente próximo à minha perna, dentro do bolso da minha calça.

“Meu celular”, pensei. Rapidamente o retirei do meu bolso e fitei sua tela. Haviam dezoito chamadas não atendidas e Clarinha me ligava – certamente pela décima nona vez. Postei a atendê-lo. Com toda aquela confusão, acabei me esquecendo por completo dela. Mas ficava feliz por saber que ela se encontrava bem.

- Oi? – eu disse

- Graças a Deus. – Clarinha deu um grito tão alto do outro lado que jurei que meu tímpano não sobreviviria naquele instante. – Quer me matar do coração, cacete? Eu tentando te ligar há horas e você não atende. – a voz dela era uma mistura de raiva com tristeza

- Desculpa. Eu estava... – o que eu responderia para ela? Acabei por dizer apenas: - ocupado.

Clarinha rapidamente se silenciou.

- Aconteceu aí também na sua família?

- Seus pais enlouqueceram? – perguntei

- Sim. – percebi a raiva evadir de sua voz e ficar apenas uma notória tristeza. – Repentinamente, deu um grande clarão no céu e meus pais enlouqueceram. Meu pai... – Clarinha tentava continuar, mas era notório que começara a chorar. – de repente, meu pai atacou minha mãe e a matou... snif, snif... na minha frente... snif, snif... amor, ele agora está tentando me matar. O que eu faço? O que eu faço? – rapidamente a voz de Clarinha mudou de tristeza para desespero

- Acalme-se. Acalme-se. Você está onde? Eu vou aí te buscar.

- Não, é muito perigoso. Estou no telhado, mas ele está embaixo só esperando uma deixa para eu cair e ele me matar. Aqui fora está ventando muito e está muito frio. O que eu faço?

- Eu vou aí te salvar. Pode ficar tranquila. Não demorarei mais que dez minutos.

- Está bem. – os choros dela cessaram. – Mas... o que aconteceu? O que fez meus pais surtarem? Os seus também surtaram? Você conseguiu fugir?

As palavras de Clarinha me fizeram acordar. Realmente, até agora não havia pensado sobre o que fez aquelas pessoas surtarem, e o motivo pelo qual pessoas como algumas garçonetes, eu e Clarinha não surtaram como os demais. E também não sabia se meus pais estavam bem ou não. Meu cérebro, até agora, estava preocupado apenas em sobreviver àquele Inferno.

- Amor? – perguntou Clarinha, ao perceber meu silêncio

- Estou aqui. – disse. Pausei – Estou pensando. Por que todo mundo à minha volta foi transformado, com exceção de algumas pessoas, como eu e você? O João e o Diego mesmo foram transformados, mas algumas garçonetes do Cantinho da Alegria não foram. A coisa em comum era que todos ali estavam bebendo. Menos eu, porque não bebo. E provavelmente as garçonetes por estarem em serviço. Menos uma delas, que todos sabem que é quase uma alcoólatra.

- Mas isso não pode ser motivo, amor. Eu estava bebendo com meu pai pouco antes de tudo acontecer. Por que meus pais transformaram e eu não? Me fala.

- Não sei. Eu vou tentar descobrir e te falo. – eu disse. – Agora eu preciso sair daqui antes que outras pessoas consigam sair do interior do bar e venham ao meu encalço.

- Está certo. Te espero aqui. – disse Clarinha. Despedimos e desliguei o celular. Aquela despedida doeu no meu peito. Parecia que jamais conversaria novamente com minha namorada. Afastei os meus pensamentos e pensei na estranheza de não ter ninguém na entrada principal do Cantinho da Alegria. Pensei, após, que eu deveria apenas agradecer pela sorte e evadir do local o quanto antes. Fechei o baú, coloquei o capacete, montei na moto e saí dali.

A rua não estava completamente deserta. Em uma rua perpendicular que eu atravessei, visualizei várias e várias pessoas se matando no enorme passeio frontal ao Shopping, que se encontrava fechado com as suas tradicionais grades. Acelerei a moto antes de os monstros perceberem minha presença. Minha mente se encontrava completamente encucada com os últimos acontecimentos. O que fez aquelas pessoas se transformarem? Por que praticamente todo mundo se transformou de um instante para o outro? E por que pessoas como eu e Clarinha não foram transformados?

Eu acreditava em uma hipótese. Parecia loucura, mas com todo aquele cenário nada era desprovido de lógica por completo. Havia alguns escritos antigos que castigavam as pessoas “impuras” – eram vários escritos, na realidade. Alguns diziam que as pessoas que faziam sexo deliberadamente, o chamado “pecado da carne”, sem que tivesse pudor, seriam punidas. Outros faziam menção às pessoas que tinham o chamado “pecado da alma” – ou seja, que eram más, pecadoras, cruéis. Outros já faziam menção às pessoas que possuíam algum vício – incluindo o sexo. Diziam que o Inferno chegaria à Terra para punir todos que eram viciadas – seja em álcool, cigarro, sexo. Partindo do pressuposto que meus sogros e as pessoas que se encontram no Cantinho da Alegria – incluindo João e Diego – eram bebedores contumazes – e alguns faziam uso de cigarro e até mesmo maconha – e eu e Clarinha não – mesmo que ela bebesse às vezes -, talvez fizesse algum sentido. Lá em casa meu pai bebe sempre e minha mãe fuma diariamente. Provavelmente se transformaram e estão se engalfinhando a essa hora – por isso que não atenderam o celular. Talvez. Muitas dúvidas. Nenhuma resposta.

Continuei a avançar pela rua onde me encontrava, completamente deserta até aquele momento. À esquerda, havia um posto de gasolina; à direita, uma praça, completamente tapada por tapumes. Sorte minha. À frente, havia um alargamento da rua, mas não o conseguia enxergar por completo de onde eu me encontrava – por causa do tapume. Somente quando eu o atravessei que visualizei a cena à minha frente. E juro que não queria ter visto.

A rua praticamente dobrada de tamanho, havendo um pequeno canteiro central. No meio, uma rua perpendicular – também com canteiro central – a atravessava ao meio – a famosa Avenida Nossa Senhora do Pilar. Após a Nossa Senhora do Pilar, havia um enorme colégio centenário, de cores azuis, que ocupava todo o canto direito do cenário. Já à esquerda, havia um prédio na horizontal, de fracas cores alaranjadas – a Santa Casa de Misericórdia -, com uma igreja neogótica ao fundo. Entre o colégio e a Santa Casa, haviam dezenas de pessoas na rua, em uma cena que me chocou e que me marcaria para sempre.

As pessoas – e sãs, ao que tudo indica; ou melhor, as não transformadas – estavam fatiando aos poucos pessoas transformadas amarradas nos muros da Santa Casa, com facas de cozinha e cutelos, causando-lhes pequenos cortes pelo corpo antes de realizarem uma enorme incisão no abdômen e tórax, enquanto riam debochadamente. Ao centro, haviam algumas outras pessoas em volta de uma grande fogueira e ao lado de um amontoado de vísceras e pedaços de gente. À direita, em cima do ponto de ônibus que existe no local, haviam três homens de calça abaixada, que transavam – ou estupravam – três mulheres aparentemente transformadas, com os braços amarrados para trás. Petrifiquei-me, tão logo visualizei a cena. Não conseguia imaginar que não havia se passado meia hora, talvez uma hora, que tudo havia acontecido e as pessoas já estavam naquele nível de sadismo. “E eu preocupado por ter matado uma única pessoa”. Realmente, naquele momento, eu, fitando aquilo tudo, fiquei em paz comigo mesmo. Eu ainda era ser humano, afinal.

Para minha surpresa – e desespero -, eis que repentinamente um dos homens que estavam queimando as vísceras dos monstros percebeu-me ali paralisado – talvez pelo barulho do motor da motocicleta, que não fora desligado e gritou, em alto e bom tom, para todos ouvirem:

- Olha lá. Mais um!

Acordei-me de meu torpor. “Como assim, mais um?”. Eu não estava transformado e não aparentava sequer ter passado pela transformação. Todavia, no fundo eu sabia que aquelas pessoas estavam matando qualquer pessoa que passasse pela sua frente – “normal” ou transformada. Todos viraram os seus respectivos rostos para mim e correram em minha direção – com exceção dos estupradores, que pouco se importaram com minha presença. Percebendo a situação, acelerei a motocicleta. Para se chegar onde a Clarinha se encontrava, era necessário seguir em frente. Não dava para continuar por aquela rua por ocasião da fogueira no centro da pista, mas o único caminho era adentrar na rua lateral e torcer para lá estar melhor que aqui.

Acelerei a motocicleta o máximo que pude. Os homens também estavam em alta velocidade, brandindo suas facas, cutelos ou pedaços de madeira em chamas. Alcancei a Avenida Nossa Senhora do Pilar no mesmo instante que os homens e virei a motocicleta, para adentrar naquela avenida – na contramão mesmo. Pouco me importei com isso. Era preciso apenas sobreviver.

Percebendo que estavam próximos de mim o suficiente e que em breve eu iria escapar, alguns homens saltaram com suas armas na tentativa de me acertarem, enquanto dois lançaram-nas em minha direção e os demais continuavam correndo. Os primeiros, felizmente, não me alcançaram a tempo. Abaixei a cabeça para desviar de um cutelo que passou zunindo sobre minha cabeça. Em relação à faca, entretanto, não tive a mesma sorte. Esta cravou em minha perna direita, pouco acima da canela, fincando-lhe. Senti novamente uma imensa dor na região, fazendo-me quase perder o equilíbrio. Percebi estar dirigindo em direção a um veículo estacionado e voltei a motocicleta ao normal. Com a mão direita retirei a faca e a atirei dentro dos muros da Santa Casa. Continuei pilotando sem cessar. Constatei que os homens não desistiram e continuaram no meu percalço. Acelerei a motocicleta e abaixei a cabeça – fiquei com receio de algum deles me atirar novamente outro cutelo ou faca. Atravessei em poucos segundos o espaço compreendido entre as duas perpendiculares àquela avenida e virei à direita, contornando a Santa Casa, pouco me importando com o fato de o sinal estar fechado para mim e de entrar na contramão. Queria apenas sobreviver àquele Inferno.

À esquerda, frontalmente à Santa Casa, havia um antigo prédio de dois andares, que abrigava o cinema da cidade. Percebi nos pequenos degraus que davam entrada ao local que havia uma mulher jogando um homem no chão e, em seguida, completamente furiosa e transtornada, arrancou os seus braços fora, escampando-lhe brutalmente com os mesmos. Aquilo, naquele momento, transformou-se em algo normal, batido já. Parecia que meu mundo já era aquele desde que nasci, e que não vivenciei nenhum momento diferente da minha vida – exceto quando o meu cérebro fazia questão de me lembrar de como o mundo antes da transformação era bom e tranquilo, com meus pais vivos e eu podendo andar normalmente pela cidade sem ser atacado pelas pessoas – transformadas ou não.

O que me chamou mais atenção naquela cena foi no fato de haver, próximo à mulher assassina, duas garrafas de vinho e um cigarro de palha ou maconha jogados no local. “Talvez ambos estivessem bebendo e fumando antes de transformarem.”, pensei comigo mesmo. Avancei. Fitei outra cena que me chamou a atenção. Em uma das duas pequenas vielas que separavam o Cinema e as residências ao lado – e que, àquela hora, estavam trancadas por grades dos dois lados, havia um casal de pé, completamente nus, com a garota em frente ao rapaz e com as nádegas coladas à região peniana dele – ou seja, estavam transando. Até ali, nada de mais – tirando o fato de: primeiro, o casal estar transando completamente nus em local facilmente visível, ainda que à noite; segundo, o mundo se transformou por completo e o rapaz estava ali, transando de boa, como se nada tivesse acontecendo. Porém, notei que ambos estavam transformados e, ainda que os órgãos genitais de ambos estivessem conectados, um tentava louca e desesperadamente matar o outro – o homem segurava o cabelo comprido da mulher, puxando-o para trás, enquanto segurava o seu pescoço com a outra mão; a mulher tentava virar para trás e jogava os braços naquela direção, na tentativa de alcançar algo. “Que bizarro”, pensei comigo mesmo. Como assim? Um casal transando transformados em seres demoníacos, enquanto tentam um matar o outro? Não tive como deixar de soltar um pequeno riso, que aliviou todo o meu corpo.

Alívio este que rapidamente desapareceu quando escutei passos apressados atrás de mim. Virei-me para trás e percebi os mesmos homens ainda no meu encalço.

- Ali está ele. – gritou um deles, apontando para mim. Não perdi tempo; acelerei o veículo e deixei para trás aqueles homens, a mulher ensandecida e o casal transante.

Pouco mais de cinco minutos depois, eu me encontrava no interior de um grande cruzamento de ruas. Eram seis no total, que se encontravam em um ponto comum, cujo centro tinha uma linha férrea. Havia um semáforo no local; entretanto, o mesmo era desligado à noite, o que o fazia piscar em amarelo. Naquela situação em que nos encontrávamos, era mais do que óbvio que eu não ficaria parado no sinal esperando minha vez. Eu queria era fugir e encontrar Clarinha o mais rápido.

Encontrava-se, como dito anteriormente, dentro desse encontro de ruas. Contornei a Estação Ferroviária da cidade e adentrava-me de encontro a outra rua, que desembocavam ambos em uma ponte à minha direita. Projetei minha moto para adentrar na dita rua e já avançaria em direção à mesma quando, repentinamente, escuto uma violenta buzinada à minha direita, seguida de uma frenagem. Olhei para o lado assustado e visualizei um automóvel Fiat 147 em minha direção, a pouquíssimos passos. Por puro instinto, coloquei a mão direita à minha frente, protegendo-me o rosto. O veículo bateu na lateral direita da minha moto e a jogou para a esquerda. Eu, por força da inércia, fui jogado violentamente sobre o veículo, batendo minhas costas no capu e depois no para-brisa. Uma dor lacinante avançou por toda a minha costa, enquanto pequenos pedaços de vidro iam cravando no local e rasgando minha carne. “Só me faltava essa...”, pensei comigo mesmo. Por fim, rolei um pouco por cima do carro até escorregar e cair à esquerda – por sorte, sobre meu ombro esquerdo, não fazendo os cacos cravando nas minhas costas fincarem dentro do meu corpo.

Caí no chão, ficando completamente imóvel. Meu corpo doía por inteiro. Da porta dianteira do veículo, à minha frente, sai um homem exaltado.

- Filho da puta. Olha só o que você fez no meu carro.

“Sério que num momento como esse você vai reclamar por que bateu o carro?”, pensei comigo mesmo. Pessoas materialistas. Podem morrer mas não podem destruir seus bens.

- Querido, acalme-se. – gritou a mulher, possivelmente no banco do carona.

- Papai. – gritou uma criança ao fundo. Além destas vozes, eu escutei outra, mas não consegui distinguir.

- Seu filhote de merda. Por que você fez isso? Agora como que eu vou me refugiar na Igreja?

“Sério que você é daqueles católicos fervorosos?”. Naquele instante, enquanto me levantava do chão e retirava os cacos de minhas costas, pude reparar no homem à minha frente. Era alto, magro, com seus quarenta e poucos anos e utilizava de roupas consideradas “caretas” pela sociedade – um sueter marrom sem manga, uma camisa xadrez por baixo, suspensórios e calça social bege claro. “Sério que um sujeito que falou mais de trezentos palavrões em um minuto quer fugir para a Igreja? Vai pegar fogo na hora que colocar os pés lá dentro”.

- Seu vagabundo. – o homem desferiu um violento chute em direção ao meu chute. Virei a cabeça para a esquerda e o deixei chutar o capacete. Um estrondo ocorreu no local e o homem recuou, com a mão sobre a perna, gritando e saltando de dor.

- Querido, pare. Deixe o pobre rapaz. – gritava a mulher.

- Papai, papai. Pare. Por favor. – gritava a criança

- Seu maldito. – gritou o homem. Saltou em minha direção. Eu não entendia o porquê daquela raiva.

- Pare, pare. O que eu te fiz? O que eu te fiz? – eu perguntei a ele, enquanto o segurava de avançar sobre meu pescoço

- Morra, morra. – gritava o homem. Percebia as veias de seu pescoço saltitaram, furiosamente.

- Grande religioso você é. – eu gritei – Quer matar um homem por pura raiva. E o perdão, ficou onde?

- Seu filho da mãe. Para de agir como se soubesse sobre mim. – o homem utilizou mais força em seus membros. Prevendo que brevemente eu seria esganado, levantei a perna direita e desferi um violento chute no escroto do homem. Este rapidamente me soltou e caiu no chão, de quatro, curvado, enquanto segurava o próprio escroto.

Rapidamente levantei e peguei a primeira coisa que se encontrava ao alcance da minha mão. Não vi o que se tratava, apenas que era pesada e retangular. Ergui o corpo e desferi o objeto com toda força na têmpora esquerda da cabeça do homem. Fez um estrondo maior do que imaginei. O homem foi ao chão, com um afundamento de crânio no local da ferida, junto com sangue.

Assustado, fiquei minha mão. Era um paralelepípedo. “Merda”. “Merda, merda, merda, merda. Eu não queria matar o homem. Eu não queria. Mesmo. Juro”. Encontrava-me completamente paralisado no local, sentado no chão. A mulher e a criança gritavam desesperadas. Percebi choro na voz da última. A porta lateral dianteira abriu e uma mulher com um vestido marrom e recatado sai do interior do veículo, desesperada.

A mulher rapidamente avançou sobre o marido e o retirou do chão, colocando no seu colo. Chorava demasiadamente e tentava reanimá-lo, sem sucesso. Eu e ela já sabíamos que ele estava morto, mas ela não queria aceitar a morte do homem que amava. Senti uma enorme pontada no peito, como se eu tivesse naquela cena e Clarinha nos meus braços, morta. Todavia, lembrei-me do meu objetivo: resgatar Clarinha. E para isso era necessário tudo, até mesmo sacrifícios.

Ainda com o corpo todo doendo – mas extasiado por causa da adrenalina -, visualizei minha motocicleta completamente destruída no chão. Ela não mais funcionaria, tinha certeza disso. Era preciso outro veículo. Percebi o carro do casal à minha frente. “Desculpe-me, mas preciso desse carro”, pensei comigo mesmo. “Sacrifícios. Sacrifícios”, pensei novamente. Não era ladrão, mas precisaria ser naquele instante se quisesse me manter vivo – e salvar Clarinha.

Rapidamente adentrei no interior do veículo pelo lado do motorista e dei partida. Uma criança sentada atrás de mim começou a socar a parte de cima do banco e a chutar a parte traseira. Afastei as costas e nem dei bola. Liguei o veículo. A mulher do homem percebeu e se levantou, deixando o marido no local. Dei ré e comecei a me afastar dali. A mulher rapidamente alcançou o veículo e adentrou pelo lado do carona.

- Mamãe, mamãe, esse homem está nos sequestrando.

- Não. Só estou indo buscar minha namorada. O pai dela está tentando matá-la e ela está presa sem água nem comida no telhado escorregadio. Salvando ela eu devolvo o veículo. Prometo. – disse, enquanto fechava a porta do veículo do meu lado, somente olhando para frente.

Atravessei a ponte que trespassa o pequeno córrego canalisado de mau cheiro que corta a cidade e adentrei em uma das grandes avenidas da cidade – a Avenida Leite de Castro. Era um avenida de mão dupla, com um canteiro central onde anteriormente era usada para o transporte ferroviário e atualmente as pessoas normalmente fazem caminhada e. Mas não naquele instante. Quem “caminhava” por ali naquele momento eram os monstros transformados, que literalmente corriam em busca de algo para quebrar - e percebi, naquele momento, que “algo” se referia a qualquer coisa, uma vez que os monstros estavam se batendo furiosamente nas árvores ou nas paredes, quebrando vidro ou portas.

- Vândalos. – pensei comigo mesmo, antes de frear por causa de uma lixeira desavisada que cruzou o meu caminho. Em seguida, avancei com o veículo novamente. – Nem depois de se transformar, param de quebrar a cidade.

A mulher ao meu lado se encontrava completamente silenciosa, olhando perdidamente para frente; um olhar vazio e profundo. Sua silhueta era de quem estava completamente triste – e não era menos, lógico. Eu, no entanto, estava assustado comigo mesmo. Já havia matado três pessoas desde que essa loucura começou. No início, era aceitável e justificável as mortes: eram pessoas transformadas, cuja única vontade atualmente é depredar, devastar, destruir e matar. Mas aquele homem foi diferente. Ainda que ele estivesse tentado me matar, ele ainda era uma pessoa comum. E para piorar a situação, eu me encontrava com a família dele dentro do veículo, como se fôssemos uma família – ou que eu era, efetivamente, um sequestrador.

Algo repentinamente me acorda dos meus devaneios. Desde que adentrei no veículo, escutei um barulho abafado vindo do mesmo, mas não sabia do que se tratava. Naquele instante, entretanto, o barulho se tornou maior e mais audível. Percebi vir do banco de trás do carro. Olhei para trás. Havia uma garota de pouco mais de sete anos, cabelos aloirados e branca igual leite sentado à direita, encolhida no seu banco, olhando tristemente para o vazio. Ao seu lado, logo atrás da mulher, havia um garoto de seus dezesseis anos, de terno e gravata, amarrado com grossas correntes defronte ao peito. Estava com uma fita tampada com a boca, fatiada ao meio, onde o percebi rosnar aos quatro ventos – ali era a origem do som que eu escutei. O grande problema naquilo tudo foi que o rapaz estava... TRANSFORMADO!

Isso mesmo que você leu: o rapaz estava transformado! Ao fitá-lo, freei o veículo no mesmo instante. A mulher, surpresa, foi jogada violentamente para frente, onde bateu a testa, e voltou em seguida.

- Ai, por que freou? – perguntou a mulher, com a mão sobre o local da batida

- Que porra é essa? – perguntei, surpreso, apontando para o rapaz

- Não fale assim. Ele é meu filho.

- Ele está transformado.

- Sabemos disso. Ele foi transformado porque era viciado em álcool. Deus está punindo todos os viciados. Mas eu e meu marido estávamos para levá-lo à Igreja. Com certeza lá ele seria perdoado de seus pecados e voltaria ao normal. Só precisava aguentar mais um pouco.

Pessoalmente, não escutei mais nada depois de “Deus está punindo todos os viciados”. Tão logo escutei tal frase, meu cérebro mergulhou em um imenso devaneio. Eu já tinha dito sobre essa tese por causa de alguns escritos antigos, mas não imaginei qeu fosse verdade. E talvez de fato fosse. Isso explicaria o porquê de Clarinha, por exemplo, não ter se transformado, mesmo tendo o hábito de – esporadicamente – beber cerveja. Ela não tinha o vício. Já pessoas como o pai dela, o meu – acreditando que ele se transformou, já que não atenderam o telefone -, Diego, João e outros se transformaram exatamente pelos vícios. Talvez agora faria todo sentido.

- Oi, está me escutando? – perguntou a mulher, sabe-se Deus quanto tempo depois de eu adentrar em meus devaneios.

- Oi? – perguntei, como se ainda estivesse acordando.

- Eu disse que precisamos sair logo daqui. Têm muitos deles vindo em nossa direção.

Olhei instantaneamente ao meu redor e fitei vários monstros correndo em nossa direção, por todos os lados. Não perdi tempo. Acelerei o veículo. Um deles ainda adentrou na frente do carro, mas acabei o atropelando – sem querer, porque nem deu tempo de frear -, retirando um grito abafado da mãe e filha.

- Desculpa pelo susto. – eu disse

- Tudo bem. Eu também faria isso. – a mulher olhou para trás. – Tudo bem, minha filha?

- Tudo, mamãe. Mas pede pro rapaz dirigir melhor que ele dirige pior que papai.

A mãe soltou uma risada e eu acabei rindo também.

- Verdade. – disse a mãe. Silenciou durante alguns segundos. - A propósito, qual o seu nome?

- Rodrigo. – respondi.

- Clair. – respondeu a mulher, olhando novamente para frente.

- Matilde. – respondeu a garota, animada. E repentinamente parecia que o clima bom estava adentrando no veículo.

O veículo já havia avançado por grande parte da Avenida Leite de Castro. Era considerada grande para o tamanho da cidade, de pouco mais de oitenta mil habitantes, e ligava os bairros Colônia – onde Clarinha morava - e Matosinhos com o centro da cidade.

A avenida estava cheia. Haviam vários deles perambulando por aí, enquanto as ruas estavam tomadas de veículos abandonados – e muitos sujos de sangue. Havia também algumas batidas pelo caminho, incluindo um poste atravessado na outra pista. E quanto mais ao final da avenida iríamos chegando, mais cheia estava a mesma. Naquele momento, estávamos ultrapassando um posto de gasolina, completamente tomado pela loucura – haviam dezenas de pessoas correndo desesperadas pelo local e quebrando o que via pelo caminho. Carros tampavam o caminho. Transformados também tampavam o caminho. Tudo nos dificultava naquele instante. Era preciso ser preciso e rápido.

- Você não deveria abaixar um pouco a velocidade do veículo, não? – perguntou Clair, assustada por eu estar dirigindo a 80 Km/h quando certamente eu deveria estar há, no máximo, 30.

- Se eu for devagar, eles nos alcançam.

Clair acabou por ficar em silêncio. Continuamos naquele mórbido silêncio durante alguns segundos, até que Matilde deu um grito logo atrás de mim, chamando a atenção de todos para si.

- Ah, mãe. Ele se soltou. Ele se soltou. – gritou a garota, desesperada. Clair e eu rapidamente viramos para trás, na tentativa de ver o que estava acontecendo. Consegui fitar Alfredo – o filho transformado de Clair e Jorge, o (ex-)marido dela – solto das correntes, com estas presas entre suas duas mãos. Clair estava virando para trás; todavia, Alfredo foi mais rápido – passou as duas mãos para frente e começou a estrangular Claire. Esta começou a entrar em desespero, tentando salvar a própria vida. Eu, por puro instinto, levei minhas mãos para o lado da mulher, para tentar se libertar das correntes. Por instinto mesmo, porque acabei por esquecer que estava dirigindo e acabei por soltar o carro. Eu consegui segurar o braço de Alfredo e comecei a forçá-lo para frente, para soltar as correntes. Repentinamente, percebi que o carro começou a ficar desgovernado e me toquei que o mesmo estava sem direção. Soltei o braço de Alfredo e voltei com a mão ao volante, enquanto pisava rapidamente no freio.

Mas não deu tempo. O carro estava em alta velocidade. Bateu com toda força a lateral direita do veículo em um poste, que adentrou no veículo. Clair foi para frente e voltou. Tinha certeza que havia batido com a cabeça no poste.

Com o impacto, Alfredo acabou por soltar sua mãe, acabando por desmaiar na traseira do veículo. Clair também estava desmaiada, com um profundo sulco no pescoço – além das pernas, que certamente estavam presas.

Meu cérebro ainda estava sacudindo violentamente dentro da cabeça. Com o barulho da batida, vários transformados vieram em nossa direção. Recuperei-me rapidamente e virei para ver como estava o cenário. Alfredo e Clair estavam do jeito como descrevi. Matilde estava desmaiada no banco traseiro, com um pequeno galo na testa.

Percebendo a aproximação dos monstros, rapidamente me desfiz do cinto de segurança e desci do veículo. Abri a porta traseira e desprendi Matilde do cinto que lhe assegura. Em seguida, saí correndo, o rápido que pude. Meu corpo doía incomensuravelmente e parecia que iria parar de funcionar há poucos instantes. Minha perna doía por causa da facada e da queda. Meu corpo doía por causa da adrenalina, da queda e da batida. Minha cabeça girava e parecia que desligaria em breve.

Porém, minha vontade de viver era maior. Eu precisava salvar Clarinha. Era meu dever como namorado. E isso me dava ânimo para conseguir fugir. Os transformados começavam a cercar o carro onde nós estávamos. Olhei para frente. Percebi algum deles tentando arrancar Clair do interior do carro. Como não conseguiram, começaram a chutar e a socar a mulher. Voltei o olhar para frente. Felizmente, Matilde estava dormindo. Sobre mim, de repente, ribomba um trovão junto de um clarão, que revelou uma imensa nuvem de tempestade sobre nós, prestes a cair.

- Clarinha. – pensei. Era só o que me faltava chover.

Mas começou a chover. E não foi pouco. Em poucos segundos, eu e Matilde estávamos completamente encharcados. A Avenida 31 de Março – principal avenida do bairro Colônia – estava praticamente se tornando um rio, com grande quantidade de água escorrendo pela sarjeta – junto de um líquido de cor avermelhado que, com toda certeza do mundo, era sangue. Matilde tremia de frio. Eu também estava sentindo bastante frio, principalmente por causa do vento gelado.

- Alô? – eu disse, ao telefone, muito embora eu sabia que era Clarinha no telefone

- Cadê você? Está chovendo forte aqui. – perguntou a garota, completamente tomada pelo desespero

- Estou chegando. Estou na entrada da 31 de Março. É porque sofri um acidente e...

- Ai, meu Deus! – gritou a garota, cortando por completo minha fala. – Você está bem?

- Sim, estou sim. Mas minha moto deu PT. Preciso achar outro veículo pra chegar aí.

- Por favor, não demora. Meu pai continua aqui e eu estou começando a sentir cansaço e vontade de ir ao banheiro.

- Não vou demorar. Prometo.

- Que bom. Não demora.

- Está certo.

- Beijos. Te amo.

- Também te amo, amor.

Em seguida, desliguei o celular e o guardei no bolso.

- Sua namorada? – perguntou Matilde.

- Sim, sim. – respondi.

- Como ela se chama?

- Ana Clara, mas a chamo de Clarinha.

- Eu e ela poderemos ser amigas?

No mesmo instante, abri um largo sorriso.

- Claro, Matilde. A Clarinha adora criança.

Matilde me retribuiu o sorriso.

- Que bom.

Continuamos andando. A Avenida 31 de Março estava, naquele ponto, completamente vazia, mas era notório o barulho dos rosnados ecoando pelo cenário – o que demonstrava que se encontravam próximos. Caminhamos pelo local rapidamente, evitando, contudo, fazer muito barulho – muito embora o pisado no chão molhado já fazia generosa quantidade de barulho.

- Ela mora muito longe? – perguntou Matilde

- Não muito. – respondi. – Mas não dá para ir a pé.

- E como faremos então?

- Teremos que roubar outro carro.

- Papai me ensinou que roubar é feio.

- É sim. Mas quando não temos outra opção e o dono não se importar muito... podemos abrir uma exceção.

- E como roubaremos um carro se não estamos vendo nenhum?

- A gente terá que... – para nosso sobressalto, eis que somos supreendidos por um estampido logo acima de nossas cabeças. Percebemos que os dois pares de prédios pequenos que nos cercavam estavam com algumas luzes acesas. Nas varandas dos apartamentos, vários corpos dependurados, com cordas em seus pescoços – claramente em sinal de enforcamento -, alguns ainda mexendo agonizantes e outros completamente inertes. Havia um outro corpo, que ainda ia para cima e para baixo, o que demonstrava ter sido recém-empurrado para a forca.

Tão logo visualizei a macabra cena sobre minha cabeça, também os olhos de Matilde com minha mão.

- O que...? – perguntou a garota, surpresa – O que está acontecendo, moço?

- É melhor você não ver essa cena. Sério. – disse. – Vamos. – continuei. Virei Matilde de costas e postei a afastá-la com ela, distanciando-a o máximo que pude daquela cena macabra.

Pouco tempo depois, um estrondo. Certamente a corda não aguentou o peso do corpo e o fez cair no chão. Mas aquilo pouco me importava. Já era passado.

- O que faremos, moço? – perguntou Matilde. Estávamos escondidos ao lado de uma casa abandonada em um dos cantos da 31 de Março. À nossa frente, vários transformados tomavam conta da avenida, cercando um veículo que havia batido – de leve, ao que tudo indicava – na parede de outra residência. Havia mais quatro veículos no meio do caminho entre nós e os transformados, inclusive uma motocicleta. Pensei em levá-la, uma vez ser mais leve e fácil de manobrar do que um carro; entretanto, era demasiadamente perto dos monstros. Se algo desse errado, estaríamos em maus lençóis.

- Eu ainda não consegui bolar nenhum plano. – eu respondi para Matilde. Enquanto isso, os transformados avançavam sobre o veículo, abrindo suas portas. Era nítido o barulho de dois gritos distintos oriundos do interior do carro – de um homem e de uma mulher. Os transformados arrancavam o casal do interior do veículo e começaram a golpeá-los com chutes, socos e até a porta do carro, sob os gritos incessantes de piedade e desespero de ambos.

Matilde estava chocada. Fechou os olhos e tampou os ouvidos com toda força possível. Eu percebi que aquela poderia ser uma boa hora para furtar a motocicleta e comecei a caminhar em direção à moto. Pouco tempo depois, Matilde percebeu minha ausência ao seu lado e parou de tampar os olhos e ouvidos. Virou em minha direção e perguntou, o mais baixo que pôde:

- O que você está fazendo?

- Shhh. – eu disse, fazendo sinal com a mão para ela ficar no local. – Fica aí. – cochichei.

Afastei-me de Matilde e caminhei em direção à motocicleta, o mais silencioso que eu pude. Era necessário ser silencioso e rápido – e normalmente ou você é uma coisa, ou você é outra. Atravessei em poucos passos o espaço compreendido entre nós e a motocicleta. Fitei os transformados. Ainda se deliciavam na morte do casal.

- Ufa. – aliviei-me. Fitei a motocicleta. A chave não se encontrava na ignição. Isso é um péssimo sinal. Olhei o chão ao meu redor. Achei um molho de chaves perto de mim, a apenas alguns passos. Fitei novamente os transformados. Continuavam no mesmo lugar. “Talvez não cause nenhum problema”.

Distanciei-me da motocicleta e caminhei em direção ao molho de chave, o mais silencioso que pude. Dei poucos passos e abaixei-me para pegar as chaves. Escutei, neste instante, um grito de Matilde, que ecoou pelos quatro cantos da Avenida, certamente chamando a atenção de todos.

“CUIDADO, TIO!”

Por mero instinto, olhei para frente. Sobressaltei-me, ao visualizar um transformado há poucos centímetros de mim, correndo em minha direção. Era um homem moreno e bastante robusto.

“Merda”, pensei. O homem trombou comigo, me jogando no chão. “Merda novamente”. Já não caí o suficiente naquele dia não? Minhas costas, coitada, já estavam muito castigadas. Teria que ficar uma semana de molho. No mínimo.

Bati com toda força as costas no chão, causando um grande estrondo. O homem caiu sobre mim. Ele tentava de todas as formas me atacar com seus braços ou com a boca, mas eu conseguia segurá-lo. Percebi, pelo canto do olho, uma movimentação à minha direita. Eram os transformados, que estavam olhando para mim. “Agora ferrou tudo”. Como eu iria fugir daquele tanto de transformados estando sob um que quer minha morte a todo custo? Era o fim, com certeza.

Porém, escutei passos rápidos e largos à minha esquerda. Tentei enxergar o que era, mas não consegui. Repentinamente, perto de mim, escuto alguém gritando: “Ei, seus bobões. Estou aqui”. Assustei. Era Matilde! O que ela estava fazendo?!

- O que está fazendo, Matilde? – gritei. Estava desesperado. Matilde não iria conseguir fugir daquele tanto de transformados. Ela certamente iria ser pega e... senti, naquele momento, uma grande pontada no peito e um gigantesco nó na garganta. “Matilde”, pensei. Certamente ela estava se sacrificando por minha causa. Talvez ela preferisse a morte a sobreviver neste mundo, uma vez que já havia perdido seu pai, mãe e irmão. “Não faça isso, por favor”.

- Eu vou despistá-los. Você foge e me encontra no Mavi. – respondeu a garota

- O Mavi?! – perguntei, desesperado. – Mas ele é muito longe. – entretanto, era tarde demais. Matilde já havia corrido, distanciando-se de mim, provavelmente adentrando em alguma rua perpendicular. Não tinha como Matilde chegar ao Mavi – um pequeno e local supermercado localizado bem à frente -, uma vez que o mesmo era demasiadamente longe de onde nos encontrávamos. Porém, era necessário cumprir minha parte da promessa. Precisava estar lá no Mavi para encontrar com ela – ou resgatá-la. Poucos segundos depois de Matilde, passaram por mim os transforamados, ensandecidos.

- Agora só falta você. – disse, ao me virar para o transformado sobre mim. Desferi nele um violento golpe no estômago. O monstro urrou de dor e caiu ao meu lado, contorcendo-se. “Então, eles ainda são vivos”, pensei comigo mesmo. De fato, eram diferentes dos mortos-vivos dos filmes de zumbis do gênero, como os do Romero. Eles não se alimentam de carne humana – nem mesmo atacam somente humanos, uma vez que a maioria dos ataques dentro do Cantinho da Alegria foi contra os próprios transformados. Eles apenas são enfurecidos e destroem a pessoa que estiver pela frente – ou, na falta dele, o objeto, como na Leite de Castro. Depois, eles sentem dores como humanos e morrem como nós – sem precisar, necessariamente, de golpes na cabeça, o que nos dá uma certa vantagem. É por essas e outras razões que chamo essas pessoas de “transformados” ou “monstros” e não de zumbis – porque não se parecem nada com eles. Só fico me perguntando se essa epidemia vai muito tempo para frente, uma vez que os transformados precisarão se alimentar ou morrerão de fome... ou será que, aí, começarão a comer carne humana? Senti um arrepio subindo a espinha. Deus queira que não.

Levantei-me o mais rápido que pude. Desferi um violento chute no rosto do transformado, fazendo-o desmaiar. Corri em direção à moto e a ergui. Senti nela e procurei, dentre o molho, qual chave poderia ser de uma motocicleta. Encontrei. Cravei-a na ignição, rezando para dar a partida. Deu. Agradeci a Deus. Preparei a moto e saí dali o mais rápido que pude, em direção à Matilde.

A 31 de Março estava parcialmente vazia. Alguns transformados – tão logo escutaram o barulho da moto – saíram de sua quebradeira atual – normalmente um carro ou uma casa abandonados – em minha direção, mas deixei-os correndo para trás – e uma hora achei que fosse morrer, porque eu estava fitando os transformados correndo às minhas costas e não vi um quebra-molas, que me fez deslocar as nádegas do banco da moto; achei que fosse voar pra fora. Fora isso – e esse pequeno incidente -, nada demais.

Ao final, a avenida ia dilatando de tamanho, ficando duas pistas duplas. As casas estavam pouco a pouco sendo deixadas de lado e substituídas por terrenos baldios e matos. Ali era a saída para Belo Horizonte, mas naquele dia eu não iria a capital. Virei à esquerda em uma rua fina e deixei para trás a 31 de Março. Atravessei a pequena rua e desemboquei em uma segunda, paralela à 31 de Março. À minha esquerda, um pequeno e arrumado jardim à frente de um estabelecimento comercial fechado. Olhei para os lados. Nada de Matilde.

“Merda, merda, merda, merda, merda”. Com certeza Matilde foi pega pelos transformados. Meu peito apertou na mesma hora. Deixei uma lágrima escorrer solitário pelo meu olho. “Matilde”.

- Ei, tio. Demorou, hein? – disse alguém, em alto e bom tom, sobre minha cabeça. Olhei para cima. Sentada sobre a placa externa do supermercado estava Matilde. Sorri no mesmo instante. “Que bom”, disse, aliviado.

Ela estava viva!

“Super fantástico amigo/ Que bom estar contigo/ No nosso balão! Vamos voar novamente/ Cantar alegremente/ Mais uma canção/ Tantas crianças já sabem/ Que todas elas cabem/ No nosso balão/ Até quem tem mais idade/Mas tem felicidade/No seu coração”, cantavam eu e Matilde, animosamente, enquanto ultrapássavamos uma fina rua asfaltada, com um pasto escuro à esquerda e uma plantação de milho à direita. Matilde estava animada e feliz desde que subiu na motocicleta. Estávamos perto do nosso destino – a casa da Clarinha – e ela havia espantado com maestria os transformados. Do nada, durante o nosso percurso, a garota começou a cantar “Superfantástico”, música infantil famosa dos anos 80. E continuamos a música, dessa vez só eu cantando: “Sou feliz, por isso estou aqui/ Também quero viajar nesse balão!”. Matilde voltou a cantar, com tudo, praticamente gritando e com os braços esticados: “Super fantástico!/ No Balão Mágico/ O mundo fica bem mais divertido!”. Repentinamente, cortei a cantoria de Matilde. Havia um enorme árvore no canto da pista, cujos galhos adentravam na rua. Eram poucos galhos, facilmente afastados pelos veículos. Mas não de moto.

- Cuidado. – gritei, com o intuito de deixar Matilde alerta. Em seguida, abaixei-me. Matilde, entretanto, não conseguiu desviar a tempo, fazendo com que os galhos cravassem em seu rosto. Eram galhos pequenos, que não a fizeram derrubar. Ultrapassei-os. Percebi Matilde se recompondo.

- Tudo bem por aí?

A garota cospe ao lado da moto.

- Agh. Detesto salada.

- Bom que você fica fortinha. – brinquei, rindo

Matilde desferiu um soco com toda força na minha clavícula direita, dando um pequeno choque.

- Ai! – eu disse.

- Bem feito. – disse Matilde, emburrada

- Olha que eu te jogo de novo nas folhas, hein? – disse, novamente brincando

- Ah, eu sabia que era culpa sua. Você é mau, tio.

Eu ri.

- Sou mau como um pica-pau.

Matilde riu.

E assim continuamos nossa viagem. Eu havia visto o movimento existente nos campos e impedi de toda forma que Matilde visse – os transformados estavam matando com as mãos as vacas e bezerros, além de se banharem no sangue dos animais. O barulho dos movimentos dos monstros era demasiadamente alto, porém era tampado pela cantoria minha e de Matilde, além de nossa conversa – e eu fazia questão de manter o volume de ambas elevada exatamente para impedir Matilde de ouvir o movimento dos transformados e olhar com atenção para o pasto. A garota já havia visto o suficiente e eu faria de tudo para a saúde mental ser abalada o mínimo possível – ela não merecia aquilo tudo. Era apenas uma criança. E, com toda certeza do mundo, após o resgate de Clarinha, iríamos dar à Matilde uma nova família – eu, Clarinha e ela. Faltava só alguns metros.

Estávamos em uma rua de terra cercado de árvores, parcialmente escura. Encontrava-se com muito barro e poças de lamas em seu entorno, ocasionado pela chuva que ainda caía levemente sobre nós. Havíamos acabado de sair de um trecho completamente escuro da mesma rua, o que gerou enormes arrepios em Matilde – e, confesso, em mim também. Chegamos em um ponto da dita rua que havia um muro de pouco mais de 1 metro à esquerda, cercando o local de várias casas no mesmo terreno.

Ultrapassamos o total de quatro casas – uma mais afastada e três rentes à rua. Após, havia uma pequena cerca que demonstrava o início de uma passagem de terra que dava terreno adentro. Diminuí pouco a pouco a velocidade da motocicleta.

- Por que está parando? – perguntou Matilde.

- Chegamos. – eu disse. Em seguida, adentrei na passagem de terra.

- Sua namorada mora aqui?

- Sim. Ela mora na casa mais ao alto deste caminho. – eu disse, enquanto adentrava pelo corredor. O local tinha o tamanho de um caminhonete e havia um trilho de mato no meio. No mais, havia uma cerca dos dois lados. À esquerda, havia a lateral do terreno da quarta casa que ultrapassamos. À direita, havia um imenso pasto tomado por vacas, que se encontravam na cerca, fitando-nos inertes.

- Tio, essas vacas estão nos olhando de um jeito assustador. – disse Matilde, com tom de voz de pessoa assustada

Eu ri. – Calma. Elas são pacíficas.

- Tio... eu acho que não. – disse a garota, com mais medo de antes. Acabei por virar pro lado. Visualizei as vacas nos fitando com olhares amedrontadores. Algumas estavam afastadas da cerca, em posição de ataque. Outras nos olhavam com olhares de quem se encontra assustado.

- O que...?! – mas não deu tempo. Uma das vacas veio avançando em alta velocidade e bateu na cerca, arrebentando-a. Assustei e Matilde acabou soltando um imenso grito no meu ouvido. Acelerei a motocicleta. Mas não deu tempo. A vaca bateu na traseira da moto, fazendo eu e Matilde voar a toda velocidade no chão. De novo – vai gostar de cair no chão. E o pior: sem capacete.

Protegi a cabeça com os braços e caí no chão. Arranhei os braços e pernas – coitada delas – nas pedras que calçam o caminho. Ouvi um baque junto do meu e percebi Matilde caída, desacordada há alguns passos de mim. Mas não podia ficar no chão, ou iríamos acabar sendo pisoteados. Levantei-me, ainda que meu corpo todo doía incomensuravelmente. Percebi a vaca me olhando furiosa, parada no seu canto. As demais me fitavam assustadas, receosas, dentro da casa. Somente aquela estava brava – ou corajosa. Por que será?

Curvei o corpo, colocando a parte anterior da coluna para trás e ficando em posição corcunda. Levei as mãos à frente, em sinal de a vaca se acalmar. Matilde se levantava ao meu lado.

- O que aconteceu, tio?

- Fomos atacados. – disse, com voz baixa, sem deixar de olhar para a vaca. A garota fitou o animal à nossa frente e se assustou.

- O que...?!

- Levante-se e fique calma. – disse, calmo mas apreensivo. Matilde ficou de pé. A vaca assustou com o abrupto levantar da garota, mas fiz sinal novamente para ela se acalmar.

- O que faremos, tio? – cochichou Matilde, claramente amedrontada

- Vamos saindo lentamente, de ré, enquanto... – eu dizia, quando fui interrompido por um bestial grito oriundo do início do caminho – mas parecia ser de todo o cenário. Rapidamente visualizei várias pessoas correndo pela rua e adentrando em direção ao interior do caminho. Estavam ensandecidas e certamente eram transformados. A tristeza naquele instante é que percebi que vários dos que se encontravam ali transformados eram parentes de Clarinha – tios e primos dela.

Postei a correr, em direção ao morro. Matilde me acompanhou. Infelizmente, a vaca também. E ela era mais rápida. Em dois ou três passos dela, ela me acertou, batendo a parte de sua cabeça nas minhas costas e jogando-me para frente – como sempre. Não esperava o golpe e acabei sendo jogado para frente. Senti uma pungente dor nas costas. Senti meus ossos trincarem e saírem do local. Esperava conseguir andar, caso eu saísse vivo dali.

Com o golpe, fui jogado para frente e, sem querer, acabei acertando Matilde. A parte esquerda do meu corpo caiu sobre ela, jogando-o ao chão sob mim. Bati no chão e fui para frente, com o rosto no barro e na lama. Desviei a cabeça para o lado para não bater a parte esquerda da cabeça – incluindo meu olho – em uma pequena pedra que ali se encontrava.

Rapidamente girei para o lado e saí de cima de Matilde. Mexi-a. Reagiu, soltando um pequeno gemido de dor. Aliviei-me. Estava viva, afinal. A vaca me olhava furiosa. Parecia pronta para me atacar. E eu rezava para que não. Para minha surpresa, eis que os transformaram alcançaram-na. Um deles pulou sobre sua lateral esquerda e a jogou no solo, sobre outro transformado, que faleceu instantaneamente. Os transformados começaram a montar sobre a vaca, chutando-a e golpeando-a, o mais forte que puderam.

Alguns outros transformados vieram em minha direção. Levantei-me o mais rápido que pude e curvei meu corpo para erguer Matilde do chão. Entretanto, para minha surpresa, um dos transformados saltou sobre mim, jogando-me no solo – novamente! Terceira vez naquele caminho. Haja corpo assim.

Segurei o transformado com o intuito de o mesmo não avançar sobre mim. Percebi se tratar de Cláudio, tio de Clarinha que eu particularmente detestava, uma vez que, sem motivo, o mesmo me chamava de “bocó” e “idiota”.

- Filho da puta. Nem mesmo depois de transformado você não para de me dar sossego. – enquanto segurava Cláudio com a mão esquerda, procurava alguma coisa no chão com a mão direita. Senti uma pedra e a catei para mim. Bati-a na têmpora de Cláudio com toda força possível. Este rapidamente desfaleceu, caindo do meu lado. Certamente faleceria em breve, como aconteceu com o pai de Matilde.

Erguei meu corpo pela quadragésima vez, com o intuito de salvar Matilde. Todavia, naquele instante, fiquei cabisbaixo. Senti lágrimas querendo verter generosamente de meus olhos. Olhei para Cláudio desmaiado ao meu lado e desferi nele um violento chute na têmpora direita, descarregando toda minha fúria e tristeza. Em seguida, virei-me de costas e saí correndo, subindo o morro.

“Matilde”, pensei tristemente. Fiz um sinal da cruz.

O morro estava demasidamente escorregadio, uma vez ser bastante íngrime e de terra vermelha. Para piorar, o local era completamente escuro. Nem as luzes das casas de Clarinha e da debaixo eram suficientes para iluminar aquele trecho. Com as chuvas, transformou-se em um grande mar de lama. Em uma pisada em falso, meu pé deslizou para trás e bati o joelho direito no solo, sujando-o completamente de lama. Senti uma presença atrás de mim e visualizei Maria Etelvina, outra tia de Clarinha às minhas costas. Desferi um violento chute em sua cabeça, fazendo-a tombar para trás. Eu gostava bastante dela e não gostaria que ela tivesse se transformado – nem eu de a machucar -, mas eram ócios do ofício.

Continuei subindo o morro até chegar frontalmente ao portão de entrada da casa de meus sogros. O muro estava incompleto e tinha pouco mais de trinta centímetros de altura. Não havia portão, que era apenas o formato no futuro muro. A residência de meus sogros ficava no meio do terreno, que era parcialmente nivelado – havia um elevado de três ou quatro metros de altura na parte anterior do terreno, onde ficava a cozinha. Havia uma escada de acesso no local. Adentrei no interior do terreno de meus sogros e fitei Clarinha no telhado da casa.

- Amor. – disse uma alegre Clarinha. Seu grito ecoou por todos os cantos. – Finalmente.

- Ei, amor. – eu disse, alegre. Olhei no meu entorno. Estava demasiadamente escuro, pois havia pouca luz no interior da residência e não havia luz externa. Encontrei um pequeno galho de árvore caído no chão, debaixo de uma árvore dentro do terreno.

- O que você está fazendo?

- Estou procurando uma arma. Tente falar baixo porque seus tios estão perto da casa da Joana. – eu disse, enquanto pegava do chão o dito galho – Onde está seu pai?

- Em frente à porta da cozinha. – ela disse, após olhar para o chão

- Está certo. – disse, sério. Corri em direção à escada e a subi, o mais rápido que pude. Percebi uma sombra oriunda da quina da casa, logo após o final da escada. Segurei o galho com as duas mãos e o coloquei sobre meu ombro. Terminei o lance de escadas e desferi no vento um golpe ao que estivesse ao meu encontro. Meu sogro estava ali, completamente transformado. Acertei-o na cabeça com o galho, sem lhe dar chance de reagir. O golpe foi tão forte que o galho partiu ao meio, voando fragmento por quatro cantos. Meu sogro caiu no chão, desmaiado. Para garantir, desferi um segundo golpe – com o restante do galho – na cabeça de meu sogro, com toda a força possível. Por fim, soltei o galho no chão.

Dei alguns passos. Encontrava-me frontalmente a uma porta aberta e sob um lampião, que dava luz ao ambiente. À minha direita, havia uma pequena área sobre o telhado, que tinha ligação com o tamanho da residência. Era um banheiro e um pequeno cômodo à direita, um tanque à esquerda e, atrás deste, um pequeno espaço onde desembocava uma janela da cozinha. No chão, entre o tanque e os cômodos tinha uma poça de sangue.

- Pode descer. – eu disse para Clarinha, abrindo os braços. A garota, que se encontrava sentada na beirada do telhado, desceu, meio desengonçado e quase arrancou algumas telhas. Ela caiu literalmente sobre meus braços, caindo de costas.

- Olá. – eu disse. Abri um sorriso.

- Finalmente. – ela disse. Retribuiu-me com um generoso sorriso, olhando-me com seus olhos castanhos que brilhavam de felicidade. Auxiliei Clarinha a colocar os pés no chão.

Naquele instante, pude analisar minha namorada melhor. Encontrava-se com uma blusa regata, aparentemente sem sutiã e um short bem curto. Seus cabelos loiros estavam cacheados e colados no corpo. Clarinha estava completamente molhada.

Estávamos em uma época do ano quente, porém aqui era uma região gelada da cidade. Clarinha estava fora da casa, de noite, com roupas típicas de verão e debaixo de chuva forte, o que certamente a fez sentir muito frio – o que explicava o fato de ela estar segurando os braços com as mãos e mexê-las, na tentativa de mexer o corpo. Eu, prontalmente, percebendo o frio que minha namorada estava sentindo, abracei-a, dando-lhe um apertado abraço de urso.

- Finalmente. Achei que não fosse te rever.

- Eu também. Eu também. – ela disse, retribuindo meu abraço. Após, distanciamos a parte superior de nossos corpos, deixando-a entrelaçada nos meus braços. Fitei o seu rosto, a poucos centímetros de distância.

- Obrigada por ter vindo me salvar.

- É o que os namorados têm que fazer. – ela riu. – Eu nunca iria te deixar na mão.

Clarinha abriu um sorriso. Ficou em silêncio em alguns segundos.

- Te amo tanto. – ela disse. Abri um sorriso.

- Também te amo muito.

Aproximamos os nossos rostos no intuito de nos beijarmos. Apesar de ter visto Clarinha na tarde daquele mesmo dia, parecia que não a vi durante uma eternidade. Entretanto, para surpresa e desagrado nosso, eis que escutamos gritos assustadores. Eram oriundos do interior do terreno da residência de Clarinha, mas pareciam vindos do além.

Senti um arrepio subir pela espinha. Nunca tinha visto gritos tão amedrontadores quanto aqueles. Percebi que Clarinha sobressaltou ao ouvir os gritos e ficou assustada.

- O que foi isso? – cochichou

- Vamos. – respondi. Corri para o interior da residência de Clarinha, fechando a porta às minhas costas. Desembocamos dentro de um cômodo que era copa, à esquerda, com uma sala de televisão e cozinha, à direita. No centro, uma escada, que dava ao restante da casa. Descemos, a passos largos. Chegamos em um pequeno cômodo sem móveis, que desembocava em quatro outros, em formato de X – dois quatros, frontais, uma sala e um banheiro. Este último era o único cômodo da residência que não tinha janelas viradas diretamente para o terreno. Puxei Clarinha para adentrar no interior do banheiro e esta me seguiu. Entramos e fechei a porta, trancando-a. Era um cômodo fino e cumprido, com a pia a primeiro plano, o vaso sanitário no centro e o box com o chuveiro ao final. Corremos até a parede oposta e sentamos ali, no chão, acuados, com as pernas erguidas, como se estívessemos ali protegidos.

Devido ao silêncio, escutamos os transformados quebrando o vidro das janelas e portas da residência, enquanto urravam de loucura. Estavam realmente transtornados pela loucura. Quebravam os vidros sem motivo algum, ao que tudo pareciam. Alguns pareciam se encontrar já dentro da casa, zanzando sem rumo pela cozinha.

Passei o braço esquerdo sobre Clarinha e a puxei para perto de mim, abertando-a contra meu corpo. Ela estava triste e chorona.

- Te amo. – eu cochichei para ela

- Também te amo.

Após, apertei-a com muita força contra mim, colocando minha cabeça atrás de suas costas e esperando o despacho daquela Noite da Loucura.