Não é humano

NÃO É HUMANO

Miguel Carqueija


(NOTA: este conto homenageia o escritor norte-americano H.P. Lovecraft (1890-1937), criador dos "Mitos de Cthulhu")




Quando a noite chega, invariavelmente recordo os terríveis acontecimentos que agora me proponho a narrar. Medito, muitas vezes, na singular qualidade de eventos que conduziram inadvertidamente minha existência até aquele ponto crítico — o ponto da voragem, do horror que se instalou em minha mente e me tornou um homem neurótico, dependente de tranqüilizantes.
Não tenho coragem e nem vontade de divulgar em vida o que testemunhei. Acredito, porém, que colocar minha pavorosa experiência no papel funcionará, ao menos, como um derivativo salutar para a minha enferma psique. Após a minha morte, que já não deve andar distante, quem vier a ler estas páginas fará o que quiser com elas. Provavelmente as destruirá, convencido de se tratar de mero sonho louco de um homem velho e esclerosado. Será melhor assim. Até porque o que tiver que vir, se vier, não será agora nem depois — será, que Deus o permita, num distante futuro. Ou talvez não venha nunca — como uma sombra negra que se aproxima ameaçadora mas, pelo fato de ser uma sombra, não será capaz de nos tocar.
Lembro-me bem daquela tardinha em que, distraído com o vôo alegre das carriças, aproximei-me da Biblioteca Municipal de Pedra Torta, onde vivo há muitos anos. Tem sido esta preguiçosa cidade o meu refúgio de tranqüilidade — ou assim foi até aquela data. Hoje... mas não antecipemos.
Eu geralmente procurava livros de forma aleatória, e me decidia mais ou menos ao acaso. Naquele dia, depois de trocar um dedo de prosa com Berta, a velha bibliotecária, dirigi-me a uma estante esquecida, no fundo de uma ala empoeirada e sem muita luz. Dera-me a vontade de ir lá no fundo, garimpar alguma raridade. E foi lá, entre lombadas sebosas e gastas, que enxerguei um título incrível, já mal visível por faltarem pedaços do papel. Perplexo, retirei o volume a custo — havia muito aperto — e confirmei na capa: NECRONOMICON. Só que, em letras menores, lia-se: volume II.
Tanto a capa como as páginas estavam roídas de traças, mas o texto, aparentemente, ainda não sofrera mutilações. Fitei espantado, mais uma vez, o título, e mais embaixo, as palavras: “autor desconhecido". Há muitos anos atrás, em Miskatonic, na Nova Inglaterra, eu vira o Necronomicon, atribuído a um autor oriental, e ignorava a existência de um segundo volume. Não lera de todo aquele estranho livro — era muito pesado para o meu estômago ainda jovem. Lembro-me porém vagamente da coleção de horrores que o compunha, do princípio ao fim. Era talvez a obra mais horripilante do mundo, baseada na insistente idéia de que forças pavorosas se emboscam permanentemente nas sombras, na zona do crepúsculo, vigiando a humanidade, esperando, esperando... um monstruoso ressurgir.
Agora eu tinha nas mãos o segundo volume, editado pela Typographia Oceanno — assim, com esta grafia — em 1921. A tradução era de um certo Carneiro Guedes, e não existiam outras indicações salvo esta informação: "traduzido do original armênio".
Embora nunca tenha sido muito ligado em assuntos esotéricos, deu-me vontade de ler aquela raridade. Por curiosidade científica, de professor aposentado. Levei-a para Berta anotar o empréstimo e sentei em frente à sua mesa, passando-lhe a obra. Ela olhou, algo admirada, e comentou: — Hum! Faz muito que ninguém lê essa coisa...
— Você já leu?
— Eu? Eu não! Isso não faz o meu gênero...
Começou a preencher a ficha, apondo carimbo datador e assinatura. Nesse ponto alguém se aproximou de nós.
— Por favor...
Voltei-me. À minha esquerda surgira um homem alto e magro, com um terno surrado e cinzento — apesar do calor que fazia — de rosto esquelético e olhar estranho.
— Desculpem, mas eu estava atrás desse livro.
— Chegou tarde, moço. Ele já foi emprestado a este senhor aqui — Berta me indicou.
— Sim, mas eu tenho urgente necessidade dele. É para uma pesquisa. O senhor não poderia desistir de levá-lo hoje? Depois o senhor levaria.
Era uma proposta tão esdrúxula que nem cogitei em aceitá-la. Afinal eu pegara primeiro e isso tinha que ser respeitado.
— Meu amigo, dentro de quinze dias eu devolverei esse livro. O senhor não pode esperar?
— Não, não! O senhor compreende... é para uma tese que eu preciso completar. Tenho prazo. Fiz uma longa viagem porque soube que este livro estava aqui... não posso me demorar quinze dias... preciso dele agora.
Aquilo me pareceu ridículo e abusivo. Eu duvidava daquela história. Talvez ele fosse apenas louco, acromaníaco ou esquizofrênico, sei lá; de qualquer modo eu não via razão alguma para atendê-lo.
— Lamento muito mas não posso ajudá-lo. Eu também sou um pesquisador.
Voltei-me para Berta:
— Não haverá outro exemplar?
— Tenho certeza que não.
Ela sorria amarelo, e sua expressão me dizia: — Que fazer, de vez em quando surgem esses tipos excêntricos.
Quando me voltei para o desconhecido, creio poder dizer que tive um choque. Tentarei explicar o que se passou, pois foi tudo num relance. O homem estava meio inclinado para frente, seu narigão apontado para o livro, talvez a uns setenta centímetros de distância. Analisando depois sua atitude, era como se, naquele momento, ele estivesse prestes a se atirar sobre o alfarrábio, arrebatá-lo e sair correndo. O tipo da coisa que normalmente ninguém faz. Pareceu-me também que ele estava extremamente nervoso e, finalmente, houve também a forte impressão de um odor acre, estranho, embora pouco perceptível. Tudo muito vago para que eu pudesse ter qualquer tipo de certeza.
Mas enfim eu me ri, intimamente, das próprias tolices. O sujeito se desculpou e saiu contrariado, em passos duros e desgraciosos, como se as pernas fossem muito artritadas. Voltei-me para Berta:
— Que tipo esquisito! Já o conhecia?
— Eu? Olhe, estas rugas aqui já testemunharam muita coisa, mas esse tipo eu nunca vi... mas você não o escutou falar que fez uma longa viagem? Ele não é daqui.
Fui para casa com o Necronomicon cuidadosamente embalado num plástico que costumo carregar para isso mesmo. Cheguei na minha casa, onde moro sozinho, salvo uma idosa governanta, que está comigo desde os tempos em que minha esposa era viva, e o Gonçalo — Nome muito humano que eu dera ao meu pastor belga. Idalina, porém, ausentara-se para visitar a filha durante alguns dias, de modo que preparei eu próprio o lanche — habitualmente, já não janto há 30 anos — composto de torradas com maionese e folhas de brócolis, um chá de camomila, azeitonas e pudim de ameixas. Mais tarde fui para o meu gabinete e, levado por irresistível curiosidade (atiçada pelo incidente), pus-me a ler o livro emprestado.
A partir deste ponto hesito em continuar escrevendo. O abismo de horror inumano que se abriu diante de minha imaginação, e que até hoje me consome, é indescritível. Não quero remoer estas coisas, mas alguns trechos daquele livro maldito precisam ser aqui mencionados:
"Quase todas as pessoas julgam que o Homem é o Rei da Criação, ou quiçá o único habitante inteligente do Universo. Entretanto isto nem é verdade somente em relação à Terra. Nosso planeta é antiquíssimo, ao menos para os nossos padrões, e através das incontáveis eras geológicas, antes de Adão, outras raças aqui estiveram e dominaram. É possível que a graça divina somente tenha se estendido à raça adâmica e que , portanto, os seres que aqui antes estiveram sejam essencialmente malignos, e por esse motivo mergulharam no oblívio, incapazes de permanecer à luz do dia. Não se trataria de um privilégio da raça humana, mas antes de uma condição assumida por seres que, como Lúcifer, sabendo e podendo demais, quiseram demais. Assim o Grande Cthulhu, que hoje jaz no fundo do oceano, inerte, e que sonha voltar um dia à glória antiga, de 50 milhões de anos atrás. Antes de Cthulhu, porém, há 100 milhões de anos, existiu uma poderosa raça, no tempo em que os dinossauros pululavam sobre a Terra. Os Saltodontes eram também dinossauros, com duas características que desde já devem ser mencionadas: 1ª) eram racionais; 2ª) até os dias de hoje são totalmente ignorados pela Ciência Humana. E isto aconteceu porque, até agora, a Ciência Humana recusa-se a abandonar a sua postura preconceituosa, e recusa o quanto pode a tudo que eventualmente venha a abalar os seus esquemas. Ora, assim como o homem pode ser considerado um primata, sendo porém imensamente superior a qualquer macaco ou lêmure, assim o Saltodonte era de todo superior a qualquer sáurio irracional. Tiranossauros, iguanodontes, tricerátops, plessiossauros, alossauros, titanossauros eram todos seres irracionais e estúpidos. O Saltodonte era civilizado, possuía veículos e escrevia livros, embora fossem de aspecto diferente dos livros atuais.
A raça dos Saltodontes é, atualmente, uma das raças das sombras. As catástrofes que, na passagem de Nêmesis, eliminaram os dinossauros, destruíram a sua civilização. Eles lograram se refugiar em algumas cidades subterrâneas e, posteriormente, tudo fizeram para eliminar vestígios de sua passagem pela superfície. Vestígios que os cientistas humanos possam ter encontrado foram desprezados como serão desprezadas todas as evidências de que entes racionais não humanos já existiram no mundo ou talvez ainda existam. A humanidade só acreditará quando eles efetivamente voltarem — e isto será inevitável, pois eles querem voltar e são poderosos. Aguardam apenas o momento propício para retornar o controle da Terra... eles e outros seres não humanos que aqui já estiveram e que hoje, exilados, sonham com a restauração dos seus poderes. Dia virá em que estas diversa raças se confrontarão, e nesse dia os humanos não serão mais do que insetos, se uma força superior não os proteger."
Já havia se passado bem mais de uma hora quando percebi de súbito que não estava mais sozinho. Meus sentidos talvez estivessem superexcitados tendo em vista a hediondez absurda de tudo aquilo que vinha lendo, apesar de meu ceticismo. O lado emocional humano é muito vulnerável. Como quer que seja, levantei de repente os olhos do velho livro e enxerguei o intruso no momento em que ele empurrou a porta do gabinete. Um gabinete quase invisível da rua, já que no andar de cima e rodeado de estantes que chegam a obstruir a janela — razão pela qual coloquei verdadeiras luminárias para dispor de iluminação razoável.
Era o mesmo tipo estranho da biblioteca.
Naquele momento eu AINDA não senti medo. Limitei-me a perguntar indignado: — Que quer o senhor aqui? Como entrou?
— Professor Fiúza — disse ele — lamento, mas existe um motivo muito sério para que o senhor não continue a ler este livro. Existem aí conhecimentos secretos que não podem ser postos ao alcance de qualquer um. Na verdade este livro não deveria ter sido escrito e nós confiscamos o que pudemos de todas as edições em todos os países onde saiu. Este é um dos poucos que escaparam à nossa caçada. Portanto, entregue-o!
A idéia de estar diante de um louco fez com que eu pensasse com rapidez.
— Como sabe o meu nome? E, repito, como entrou aqui?
— Tenho meios para penetrar em residências e sei fazer pesquisas. O senhor é uma pessoa conhecida por aqui.
Abri a gaveta e puxei o revólver.
— Pois bem. Agora não tente nenhuma gracinha.
Ele fitou a arma, aparentemente sem medo. Com a mão esquerda, alcancei o telefone.
E então deu-se a metamorfose.
O susto foi tão grande que eu pulei para trás e deixei cair o revólver, presa de um acesso de tremor violento, como se sofresse de Parkinson. O ser à minha frente — porque, de fato, não era um homem — transformara-se. As roupas se rasgaram, a pele tornou-se esverdeada, como um Hulk, mas também não era nenhum Hulk. Como se aquela epiderme fosse apenas uma estrutura contida, sob algum tipo desconhecido de pressão, AQUILO retornou à sua forma primitiva: horripilante, abominável. A forma de um réptil ancestral. parecia ser um velociraptor, embora muito menor. Tinha uma cabeça enorme, pintas e manchas amarronadas pelo corpo obeso, garras preênseis. Seu olhar não era apenas feroz, no sentido que se dá em relação a um leão, por exemplo. Era uma ferocidade antiga, antediluviana, de uma profundidade que os homens não conhecem. E aquele cheiro amargo, agora evidente, empesteava o ambiente.
Sua voz também mudara para um sussurro demoníaco:
— AGORA você entregará.
— QUEM é você? — consegui balbuciar, encostado à parede, num trecho onde não havia estante, esquecido da arma que jazia no carpete.
— Você já deve ter lido. Eu sou um Saltodonte, represento a maior e mais gloriosa raça que já habitou este planeta. Uma força cósmica nos aniquilou, mas nós voltaremos. A raça adâmica é miserável e desprezível, e não merece saber a verdade a nosso respeito.
Eu procurava ganhar tempo.
— Como você podia estar disfarçado em forma humana?
— Eis uma prova da nossa superioridade. Nós podemos plasmar nossas formas externas e até as internas. Os nossos que estão infiltrados em seu mundo geralmente não são submetidos a autópsias. Tomamos precauções contra isso. Mas se acontecesse, dificilmente descobririam algo estranho.
— Há... há muitos de vocês? — eu continuava paralisado, encostado à parede.
— Bastantes, mas não tantos quanto ao tempo em que a maldita Nêmesis...
Aqui ele proferiu algumas blasfêmias que não me atrevo a reproduzir, como se odiasse o plano divino que colocara a Humanidade na Terra, ou como se a sua raça estivesse em conluio com o Príncipe das Trevas, cuja rebelião seria, pois, antiquíssima, de um tempo inimaginavelmente distante no passado... quando vestígio algum havia do Homem. Talvez a primitiva rebelião fosse mais antiga que a Terra, que o Sistema Solar, que a Galáxia. Quantas outras raças, ao longo das incontáveis eras cósmicas, pudera aliciar, até que o Verbo se encarnasse para deter a onda maligna e salvar o Universo? Tudo isso eu julguei compreender ou entrever num relance, numa revelação. Podia ser que aquela especulação nada tivesse a ver com aquela realidade prática que eu tinha diante de mim e que era suficientemente terrível. Até aquela data eu era um agnóstico. Hoje, nem sei.
— E o que vocês pretendem fazer?
— Limpar o terreno, evidentemente. Hoje induzimos a sua raça a recriar geneticamente os dinossauros, o que um dia conseguirão. Veja toda a propaganda que existe em torno do assunto. Todos esses animais, nós podíamos utilizar em nossa civilização. E serão nossa grande arma contra Cthulhu, se este nosso inimigo retornar das profundezas do mar.
A idéia de que a Terra houvesse sido ou viesse a ser apenas o campo de batalha entre forças monstruosas e maléficas repugnou-me em extremo. Tomando uma decisão, abaixei-me para pegar a arma. O Saltodonte avançou e pulou sobre a mesa, mas eu já correra para outro canto da sala, onde ele procurou me encurralar com seus grandes dentes à mostra.
Tentei disparar mas a arma, que nunca fôra usada, mascou. Ele avançou com a horrível goela aberta...
O mastim atacou.
Por alguns momentos não foi possível distinguir claramente o que estava acontecendo, aquela massa dupla revolvendo pelo carpete em luta mortal, sem que eu pudesse intervir ou soubesse como fazê-lo. Aquele turbilhão, vertiginoso como um desenho animado, logo porém cessou juntamente com uns grunhidos horríveis.
E Gonçalo, meu pastor belga, veio até mim, mancando da perna esquerda, pingando sangue... mas inteiro e válido.
E um cadáver repulsivo ali estava, estendido no carpete, a garganta dilacerada a dentadas.
O ser pré-histórico cometera um erro, ao achar que o cão estava preso no quintal. Havia uma portinhola de cachorro, e ele a usara ao perceber que algo de anormal estava ocorrendo dentro de casa.
Consegui ainda nervos suficientes para realizar algumas investigações. Aquele monstro possuía garras muito interessantes que talvez pudessem abrir fechaduras; mas ao entrar estava em forma humana. Descobri em suas roupas um curioso aparelho, que até hoje guardo, e que, como pude verificar, abre qualquer fechadura... pelo menos as que experimentei. Por que ele não entrara logo? Provavelmente perdera a minha pista, quando eu saí em meu carro da biblioteca. Este aparelho, aliás, eu enterrarei após completar minhas anotações. Não quero deixar provas do que escrevo.
Também não quero me demorar na desagradável descrição de como desmembrei o corpo e me desfiz dele aos poucos, jogando pedaços no mar, enterrando roupas, desinfetando o gabinete, trocando o carpete, inventando uma desculpa para os ferimentos e a pata quebrada do Gonçalo. Ninguém ficou sabendo de nada.
Estes acontecimentos datam de cinco anos atrás. Desde então o pesadelo tomou conta de minha vida. Ao passar pelas ruas, imagino quantos daqueles homens ou daquelas mulheres serão na verdade dinossauros disfarçados. O meu medo maior, porém, reside no livro, aquele amaldiçoado livro que eu não tive a coragem de destruir. Tive que devolvê-lo à biblioteca e lá está ele, escondido no seu canto escuro, ainda com aquelas informações subversivas, testemunha muda da tragédia que se abateu sobre mim e me consome dia a dia. Minhas noites são povoadas de pesadelos, de criaturas ferozes e de dentes pontiagudos, que me espreitam e emboscam. Se outro agente dos Saltodontes obtiver a pista deste exemplar e vier a Pedra Torta, verá o meu nome na ficha de empréstimos e provavelmente me procurará, para me silenciar. Isto se AQUELE que morreu em minha casa não tiver o seu paradeiro rastreado. Temo, a cada dia, ser descoberto. Eles não me poupariam.
Idalina, é claro, notou a decadência de minha saúde emocional e física, mas atribui sem dúvida esse efeito à minha idade. Só quem sabe e compreende é Gonçalo. O bom e velho Gonçalo, que hoje, já sem dentes tão fortes, talvez não repetisse a façanha.
Agora só me resta esperar, esperar... e rezar.



imagem google (H.P. Lovecraft)