Da Lama a Lama - DTRL 26 Duplas

DA LAMA A LAMA

“Não foi acidente. Não foi fatalidade.”

Carlos Eduardo Pinto, Promotor de Justiça

Impossível não relembrar: minha avó chamava-se Mariana e morreu afogada no açude do sítio; ninguém sabe como se afogou. E quando minha irmã caçula nasceu, um ano após, minha mãe a batizou de Mariana para homenagear minha avó. Um dia minha mãe estava dando banho na minha irmã, o telefone tocou e ela foi atender. Não demorou nem três míseros minutos, mas foi o suficiente para que a pequena Mariana, de três aninhos, se afogasse na sua banheira de plástico.

Com essa fatalidade minha mãe enlouqueceu.

Sacudi essas lembranças indesejadas da mente quando cheguei à pensão de Dona Mariana. Foi uma viagem longa e eu estava morto de cansado. Aquele horário não havia mais jantar, então peguei a chave e subi para o quarto. Ainda bem que tinha uma pacote de bolacha na mala para o jantar. Tomei um banho rápido e me entreguei ao manto de Morfeu.

Estava tão cansado que nem sonhei. A noite foi como um piscar de olhos. Acordei num domingo de tempo bom, vesti-me, fiz minha higiene e desci para o desjejum. A pensão de Dona Mariana serve refeição para outros clientes também; parece uma daquelas hospedarias americanas de cidades pequenas que vemos nos filmes.

Pedi meu preferido: o clássico pingado com pão na chapa. Com contrato de um ano de trabalho como novo químico da mineradora, teria bastante tempo para experimentar as iguarias da cozinha local, mas naquele momento, só queria saber do meu pão na chapa com pingado. Foi engraçado que precisei explicar para a cozinheira o que era um pingado.

Quando terminei o último gole do meu pingado vi uma sombra comprida crescendo sobre mim. Olhei para cima e vi um homem alto, magro, velhas vestimentas do que parecia ser o que sobrou de um hábito de padre, pálido como um cadáver, parado na minha frente. Esbocei um sorriso de canto de boca e ele falou numa voz grossa e firme, desproporcional à sua figura:

“Então você é quem chamaram para explicar o que a ciência não pode explicar, não é? Meu jovem, afirmo que o que você vai encontrar não tem parâmetros de medição, não há reagente físico que possa revelar suas propriedades.” — inclinou-se, chegando o rosto repugnante mais perto de mim e continuou — “É resultado do coração imundo e desumano, cheio de ganância daqueles que dirigem aquelas instalações.”

Virou-se e foi embora sem sequer olhar pra trás.

“Que padre sinistro!” — falei para a cozinheira que me trouxe mais um pingado sem que eu pedisse — “É pároco daqui?” — ela apenas abaixou a cabeça e saiu de perto sem dizer nada.

Cidadezinha pequena é assim mesmo; todo mundo sabe quem você é antes que chegue.

Saí para passear e aproveitar o domingo ensolarado. O sol da primavera deixa as cores mais reais; é como se sua luz fosse mais pura. Aproveitando esse momento poético, admirei o canto dos passarinhos nas árvores, as flores, o cheiro de ar puro, as ruas de casas simples e bonitas, colinas ao longe. Poucos carros, hora ou outra passava uma moto ou bicicleta ou ainda uma carroça puxada por jumentos ou cavalos. Uma escola na esquina, uma farmácia ali, uma quitanda adiante, um boteco cheio de homens conversando. Tive a impressão que as pessoas paravam o que faziam para me ver passar.

Andei até a hora do almoço e voltei para a pensão. A comida estava divina! Subi para o quarto a fim de descansar um pouco do passeio. Peguei o celular e entrei na internet para encontrar o que não se pode ver apenas com uma caminhada. Sei que poderia ter perguntado para Dona Mariana, mas achei aquela gente um pouco esquisita. Encontrei uma cachoeira e fui orientando-me pelo GPS do celular. Estava deserta para um domingo de sol, mas afinal, outubro é mês de provas finais e crianças e ginasiais costumam se matar no fim de outubro e inicio de novembro pra compensar o que não estudaram no ano inteiro. Também já fui assim.

A água estava boa e nadei como se estivesse numa piscina. Queria revigorar as energias para começar bem o trabalho no dia seguinte e a água é revigorante. Saí da água e deitei numa sombra, fechei os olhos e aproveitei a brisa. Acabei adormecendo.

Acordei assustado com um barulho que parecia vir de algum lugar indefinido, talvez da mata fechada. O sol já estava se pondo e eu precisava correr para aproveitar a luz que ainda restava para achar o caminho de volta. Vesti as roupas e comecei a seguir o GPS. Um barulho mais forte de coisa quase líquida se movendo, vindo da direção da cachoeira, me fez virar para olhar.

E lá estava um monte, uma massa indefinida, parecia de lama e não estava lá antes. É como se estivesse se erguendo de dentro da água. Fiquei encarando a coisa que parecia um gigante, com cabeça, tronco e braços. Os raios do sol poente não se refletiam naquele corpo disforme, contrariando algumas leis da ótica. A impressão que dava era que a massa de cor fosca apagava os raios do sol. E aquilo desapareceu da mesma forma que apareceu.

Ainda parado no mesmo lugar, atônito, comecei a sentir uma sensação esquisita; tipo um mau pressentimento. Pus-me a caminho, com mais pressa, mas acabei chegando depois da janta outra vez. Fui ao meu quarto, tomei um banho e me deitei, ainda com um resto daquela sensação ruim. Exausto, nem me lembrei de comer os biscoitos que sobraram da noite anterior. Dormir seria difícil com a imagem daquele gigante disforme surgindo da água, mas vencido pela exaustão...

O despertador do celular tocou às 6h. Meu primeiro dia de trabalho e a partir de então teria mais com que me preocupar do que com monstros de lama, provavelmente da minha imaginação. Queria acreditar que sim. Tomei meu pingado com pão na chapa sossegado e logo o carro da empresa chegou para me buscar.

O complexo da mineradora era gigante! Maior do que eu pensava. Conheci toda a área administrativa e algumas pessoas. A sala da diretoria que estava fechada e de luzes apagadas e no final do corredor estava o laboratório onde eu trabalharia.

Na verdade não tinha cara de laboratório; parecia mais uma oficina adaptada. Estava empoeirado e os instrumentos e materiais foram guardados com o cuidado desleixado de quem não é do ramo. Despi meu jaleco para não sujar e solicitei que fizessem uma faxina sob minha supervisão. Nem me ocorreu de perguntar se não havia instalações mais adequadas para um trabalho tão sério; dinheiro parecia não faltar.

Havia a porta de entrada e uma porta balcão no outro extremo. Logo um rapaz chegou naquela porta e me entregou uma caixa cheia de reagentes e produtos novos, dentro da validade. Substitui os velhos e vencidos, colocando os vidros empoeirados dentro da caixa, enquanto ele esperava.

Aquela faxina levou a manhã inteira. Meu laboratório improvisado não oferecia condições para cumprir adequadamente com meu trabalho. Com aquela estrutura seria preciso fazer mágica. Fiz a solicitação de vários novos equipamentos, com a promessa de que os teria em breve. Após o almoço, fomos conhecer as barragens. Três lagos enormes lotados de rejeitos de mineração. Uma bomba química e fui contratado para decifrar e avaliar seu conteúdo.

Estranhamente alguns elementos se ligaram a outros resultando em reações químicas inesperadas. Meu colega que ocupou o cargo antes de mim chegou a fazer um relatório de suas análises, mas teve um ataque de fúria e incendiou o laboratório e tudo se perdeu. Disseram que ele fugiu para sua cidade natal e se matou. Isso explicava, em partes, porquê eu não tinha um laboratório equipado com decência.

Alguns técnicos e engenheiros estavam lá para avaliar as condições da estrutura das barragens, mas parecia que apenas riam e conversavam entre si, sem se preocuparem com o trabalho.

“E aí pessoal? Como está a barragem?” — perguntei tentando me enturmar.

“Tá de pé ainda, então eu acho que está tudo bem…” — eles acharam graça; eu não.

Comecei a coletar amostras de cada uma das três grandes barragens e depois de horas nesse percurso entrei no laboratório. Aquela água barrenta me lembrou minha vó, não sei o motivo. Resolvi ligar para o meu pai e perguntar como minha mãe estava.

“Ah filho, ela teve outra crise forte. Não tivemos outra opção senão deixarmos ela internada dessa vez.”

“Me passa o número pra eu ligar pra ela, pai.”

“Vou pegar, depois te envio por mensagem de texto.”

Nos despedimos encerrando uma conversa curta, como sempre, desliguei o celular e comecei a trabalhar. Alguns resultados iriam demorar para aparecer, afinal, os equipamentos bons foram queimados pelo meu colega anterior. Precisava me virar com o que tinha e não era lá aquelas coisas.

A semana passou, e a minha rotina era a mesma. Acordava, tomava o café da manhã, esperava o carro, seguia pelo mesmo corredor vazio da sala da diretoria até chegar ao meu laboratório. Recolhia mais amostras e fazia testes e mais testes, a maioria pouco conclusivos. O carro me levava de volta à pensão da Dona Mariana, eu jantava, tomava meu banho e dormia.

Também fez parte da rotina daquela semana que o celular de ninguém pegava, independente de qual operadora era. E eu ainda não tinha recebido o SMS com o telefone do hospital onde minha mãe estava internada.

No sábado, voltei à cachoeira, mas sem me demorar muito dessa vez. Na volta para a pensão, passando pela praça fui interceptado pelo padre sinistro, alto e cadavérico. Ele segurou meu braço, fazendo-me parar e me disse:

“Meu filho, você deveria fugir enquanto pode! Enquanto seu coração não é infectado por toda a maldade que os homens de posse têm na alma. Enquanto sua alma ainda pode ser salva!”

Não dei muita importância, mas senti uma fraca sensação parecida com aquele mau pressentimento da semana passada. Eu já estava me sentindo um pouco desanimado, porquê não tinha como fazer o que sei fazer de melhor com aqueles equipamentos num laboratório improvisado. Não parecia o emprego que eu tanto quis. E ainda vinha aquele padre louco falar coisas sem sentido e me deixar mais para baixo ainda.

Domingo antes do almoço saí para uma caminhada rápida, só até a praça. Ainda não havia feito uma amizade sequer com aquela gente fechada. Fechada pelo menos para mim. Passando pela igreja da matriz ouvi a voz vigorosa do padre desajustado e resolvi entrar. Sentei no último banco e prestei atenção:

“Espasmos em alta volatilidade prenunciam agouros submersos. Ao submundo incompreendido segregados, em processo de trevoso retorno estão. Paixões medidas pelo metro do ódio. Chafurdam na lama dos próprios corações iluminados por arremedo de sol vermelho pálido. Sem dia, sem noite, sem dignidade conhecida. Fermentando decomposição de rejeitados corpos. Rancores silenciosos tal qual gás do pântano. Em momento igual de todo momento o pálido céu vermelho sucumbe. Esgueiram-se por frestas descomunais tal qual dos próprios corações. Emergem em mar de lama como cabeças explosivas. Em hora semelhante de todo dia, mais e mais cabeças emergem. Encrespam a superfície da lama. Estremecem a barragem.” — lá do púpito, no altar simples e arrumado como que por alguém com mania de arrumação, ele olhou para mim e acrescentou: — “Ineficientes instrumentos de medição. Imprecisas análises químicas. Imaginações desprovidas de risco. Nada anormal vislumbram em cabeças explodindo à flor da lama.”

Por mais que não tenha feito o menor sentido, suas palavras arrepiaram os cabelinhos da minha nuca e aquela sensação de mau agouro voltou com mais força. Saí da igreja, atravessei a praça e entrei num boteco. Precisava relaxar, aliviar aquela sensação opressora. Pedi uma cerveja e dono ficou me encarando enquanto abria lentamente a garrafa. Ele encheu o copo e falou:

“Você é o novo cientista da mineradora, não é?”

“É. Sou eu mesmo.” — cidade pequena é assim. Tomei um bom e refrescante gole.

“O outro cientista ficou louco. Ainda me lembro dele vindo aqui pedir uma cerveja, assim como você. Só que ele falava coisas sem sentindo.”

“Ele deve ter ouvido o sermão do padre!” — tentei brincar, mas ele continuava sério — “Mas, falando nisso, esse cientista... Quem era ele?”

“Ora, ele era neto do antigo dono das terras onde foi feita a mineradora. O avô dele era cheio do dinheiro; perdeu quase tudo no jogo. Na época, meu avô era dono deste bar e eles ficaram devendo um dinheirão aqui. Pra tentar não falir de vez, o velho viciado em jogo surpreendeu todo mundo e vendeu as terras para os donos dessa empresa aí. Ninguém nunca nem viu a cara deles. Vira e mexe um carro todo preto vem aí e logo vai embora.” — pegou um copo e serviu-se da minha cerveja, tomou um bom gole e continuou: “Quando o filho mais novo ficou sabendo que o pai ia vender tudo, ficou enfurecido e mandou matar o irmão e o pai, pra tentar parar o negócio e ficar com toda a fortuna, sem que o velho perdesse no jogo e ele tivesse que dividir com o irmão. No meio da confusão, os capangas dele acabaram matando também a esposa do irmão. Só sobrou ele e seu sobrinho ainda bebê.” — tomou mais um gole — “Parece que se arrependeu e decidiu ir criar a criança longe daqui. O bebe cresceu, estudou e virou cientista que nem você.” — esvaziou seu copo e disse: “Aí veio trabalhar aí, depois se matou dentro do laboratório.”

“Ouvi dizer que ele fugiu para a cidade natal e lá se matou.”

“Mas se a cidade natal dele é aqui...”

“E o tio que o criou?”

“Dizem que também morreu. Virou pinguço igual ao pai, encheu a cara e caiu numa lagoa e se afogou. Dizem que quando encontraram ele a barriga dele era pura pinga e lama!”

“Nossa! Quanta tragédia!” — pedi outra cerveja e ele abriu a garrafa e serviu nós dois. Não reclamei, pois ele parecia ser meu primeiro amigo por lá.

“Ih doutor, dizem que essas terras são amaldiçoadas há muito tempo. Falam por aí que o verdadeiro dono disso aí é o Tinhoso em chifre e pessoa. Ele contrata quem administra as terras dele via contrato de sangue. Mas sempre que num gosta do serviço puxa o administrador pras profundezas junto a ele.”

“Mas não entendo... Por que o antigo químico se matou?”

“Ele dizia aos quatro cantos que as terras eram dele. E que ia arrumar um jeito de tê-las de volta! Era orgulhoso! Mas sei lá porque, queimou o laboratório todinho e se enforcou depois numa árvore bem em frente a uma das barragens. Pelo menos esse num morreu afogado em lama como todas as histórias que a gente ouve.”

Aquela semana havia começado mais difícil do que imaginei. Parecia que todos ao meu redor sentiam um mau agouro, um incomodo, um medo sem explicação. Tive a impressão que o chão vibrava sob meus pés. Eu não conseguia descobrir o que havia de errado na lama dos rejeitos da mineração; os resultados eram imprecisos e até impossíveis de interpretar. Os equipamentos novos que pedi não chegavam, os outros técnicos e engenheiros sentiam o mesmo mau agouro no ar, mas continuavam com a mesma postura irresponsável.

Lembrei-me da trágica história da vó Mariana, da minha irmãzinha, da minha mãe que estava internada e eu tão ocupado comigo mesmo, nem tentei contato com o meu pai. Já era quinta-feira e nada dos celulares funcionarem. As análises imprecisas podiam esperar, aí peguei o telefone fixo do laboratório e comecei a teclar o número de casa. De repente escuto meu celular dar sinal.

Era a mensagem de texto que meu pai enviou com o telefone de onde minha mãe estava internada. Ele me enviou naquele mesmo dia que nos falamos, “Clinica Mary Anne. Tel.: XXXC-6598”

Estremeci involuntariamente quando me dei conta que Mary Anne, em voz alta, se assemelha a Mariana…

Naquele momento o chão deixou de vibrar e passou a tremer. Ouvi gritos vindo na minha direção e saí para o corredor para ver o que estava acontecendo

“A barragem começou a vazar! Vai estourar tudo!”

“Se desmoronar…”

“A cidade lá embaixo vai ser engolida!”

Mesmo com todos correndo que nem loucos para tentar evitar o desastre, não ouvi um sinal de aviso para os moradores lá embaixo. E os telefones haviam parado novamente.

A água da barragem parecia estar em um caldeirão quente, borbulhava e exalava gases. Peguei uma amostra daquela lama que parecia em efervescência e corri para o laboratório. Havia mais alguma reação acontecendo e se descobrisse o que era, poderia evitar o aumento da pressão, mas os resultados não faziam o menor sentido. Havia gás metano e enxofre em proporções nunca antes imaginada numa lama de rejeitos de mineração! A expansão desses gases é devastadora. Era por isso que o chão estava vibrando. Nada disso estava lá no começo da semana ou na semana passada! Se eu tivesse equipamentos novos a tempo poderia prever isso!

Corri novamente para a barragem, e a cena que vi era surreal: nuvens escuras encobriam o sol e o dia anoiteceu ainda no meio da tarde. Como as pessoas lá embaixo na cidade não viam isso? Como não entraram em desespero com os raios e o cheiro forte de enxofre!

De dentro da lama borbulhante começaram a emergir bolhas que não estouravam e ficavam vez maiores. Uma dessas bolhas ficou muito grande e disforme e nela identifiquei aquela criatura de lama que vi no meu primeiro dia na cidade. Aquele era gigante, mas esses deviam ter uns três metros de altura!

Corremos para longe. O barulho da pressão causada pelo metano e enxofre era imenso e tudo tremia, causando histeria em todos nós, até que a barragem começou a vazar e daí até ruir por completo foi pouco tempo.

As palavras do padre sinistro vieram-me à mente: “Espasmos em alta volatilidade prenunciam agouros submersos...” “...em processo de trevoso retorno estão.” “Fermentando decomposição de rejeitados corpos.” “Rancores silenciosos tal qual gás do pântano.” “Esgueiram-se por frestas descomunais tal qual dos próprios corações.” “Emergem em mar de lama como cabeças explosivas.” “Estremecem a barragem.”

E aquela loucura do padre começou a fazer sentido e se materializar.

Os monstros de lama já tomavam todo o complexo e em meio ao barulho inimaginável do ruir da barragem, eles corriam atrás das pessoas, com movimentos desengonçados, mas rápidos, fazendo um barulho líquido-viscoso, com bolhas de gás estourando por toda a massa entre grunhidos ásperos e graves. Com o que pareciam bocas descomunais, engoliam meus colegas de trabalho em meio aos seus gritos arrepiantes de pedidos de ajuda e eram levados em direção à lama borbulhante.

O padre cadavérico havia dito:

“Fermentando decomposição de rejeitados corpos.”

Será que era a isso que se referia?

Enquanto um tsunami de lama avançava da rompida barragem em direção a cidade lá embaixo, eu fugia de uma daquelas coisas, correndo com uma força que não sabia que tinha, esquecido do mau agouro, desprovido de qualquer cansaço, lutando para sobreviver. Aquele ruído de coisa mole se mexendo e a quase asfixia por gás metano me fizeram vacilar e escorreguei num rastro de lama grudenta, viscosa e quente e bati a cabeça na parede. Desorientado, fui engolido, sofrendo a pressão viscosa e pesada da lama viva...

... acordei. Ou estava acordando...

Desorientado, luminosidade fraca, imagens embaçadas, vultos, ruídos de movimento, sons cadenciados como a lembrança de uma conversa. Gosto de metal na boca, dor atrás da cabeça.

Os sentidos voltando devagar: cheiro de hospital, vejo na memória a imagem da minha mãe, depois de pessoas correndo, lama por cima de mim...

Estou cansado, quase que paralisado. Sinto roupas secas e limpas, parece que estou num hospital. A luz parece fraca. Identifico uma conversa:

“... e quando chegamos atirando, nada acontecia com aqueles monstros de lama...”

“E de quem foi a ideia de acabar com eles jogando água?”

Me lembro do mostro de lama atrás de mim. Lembro de barulho de coisa viscosa se mexendo, cheiro de gás metano ou enxofre?

“Esse aí estava dentro de uma daquelas coisas e quando ela começou a se diluir à água, ele apareceu no meio da enchurrada, Quase não conseguimos pegar ele.”

Não tenho forças para chamar ninguém. Há um tuno na minha boca que vai até a garganta. Parece que me ajuda a respirar. Uma mulher aparece. Talvez uma enfermeira. Suas roupas brancas tem respingos de sangue e lama.

“Olha só quem acordou. Não se mexa, não se preocupe que vou chamar a Doutora para te examinar.”

Ela vai em direção ao que parece ser a saída de uma tenda, vira e me diz antes de sair:

“A Doutora Mariana não vai demorar.”

Tema escolhido: Catastrofes

Por Dany Bass e Carlos Henrique Fernandes Gomes

Consultoria Técnica em Química: Eric Sales