AO CAIR DA NOITE
Na primeira vez que a vi, sabia que estava perdido. Foi uma paixão fulminante, dessas que só acontecem uma vez na vida e outra na morte. Atravessei o portão às pressas, precisamente no momento em que o relógio da matriz batia a última badalada das seis horas. O dia estava morrendo, frio e chuvoso, naquele fim de tarde de inverno, e eu estava louco para esticar as pernas depois de tanto tempo sem fazer absolutamente nada. Foi quando olhei para o ponto de ônibus em frente, e lá estava ela: branca como a neve, olhos e cabelos negros, boca carnuda e sensual, pernas de parar o trânsito. Usava calça jeans e uma camiseta curta e preta, que deixava à mostra seu umbigo tentador. Não trajava casaco, e lembro de ter pensado que ela parecia não sentir o frio que fazia naquele dia. Apressei-me em atravessar a rua, e parei a dois passos de onde ela estava.
- Oi. - falei.
Ela pareceu se assustar .
- Desculpe...não era minha intenção te assustar. É que eu te vi, lá do outro lado, e foi amor à primeira vista. Fiquei com medo do teu ônibus passar, e eu nunca mais te ver...
A princípio ela pareceu confusa. Aos poucos, porém, percebeu que aquilo era uma cantada, e um sorriso tímido se insinuou em seus lábios. Ela simpatizou comigo.
- Do outro lado?...Bom, ali só tem o cemitério...
- Eu sei!... - sorri. - Eu estava na calçada...
Conversamos por muito tempo naquele dia. Seu nome era Beatriz, ela estava indo para casa, depois de um dia de trabalho. Não falou muito sobre sua vida, na verdade, eu falei bem mais do que ela, mas o importante é que ficou entre nós aquela sensação maravilhosa de que já nos conhecíamos há muito tempo. Ao nos despedirmos, trocamos o nosso primeiro beijo. Um beijo rápido, tímido, quase roubado, mas que me deixou radiante de felicidade. Lábios macios e frios, eu sabia que seriam os últimos lábios que beijaria em minha vida.
Nos encontramos nos dias que se seguiram, sempre naquele ponto de ônibus. Engraçado é que nunca havia mais ninguém ali, só nós dois. Parecia que o destino conspirava para que ficássemos a sós. Convidei-a para irmos a um outro lugar, mas ela sempre desconversava. No início, contentei-me com aquela situação, mas com o passar dos dias começei a pressioná-la, eu não entendia o porquê daquilo, parecia que estávamos nos escondendo das pessoas. Ela argumentou que sua família era muito fechada, que seus pais eram rígidos e jamais permitiriam nosso namoro. Mas eu não desisti, estava apaixonado e queria mostrar a todo mundo o motivo da minha felicidade.
- Você não entende. Se nós fizermos isso, será o fim do nosso namoro. Você não disse que me ama?
- É claro que te amo, Beatriz. Por isso quero fazer as coisas direito. Você é a mulher da minha vida, quero ficar com você para sempre...
- Ah, Beto, se você soubesse...
Era sempre assim. Ela desconversava e acabava não me explicando nada. Eu estava cada vez mais incomodado com aquilo.
Dias depois, resolvi que seria a última tentativa de fazer com que ela me contasse qual o segredo que a impedia de me assumir. Eu a amava, mas não estava disposto a viver daquela forma.
Ela ouviu minha argumentação, fechou os olhos por alguns instantes e suspirou. Pegou a minha mão, e me olhou como se fosse a última vez que faria isso:
- Está bem, Beto. Eu tentei evitar isso, mas talvez você tenha razão: é uma situação insustentável... E você merece saber a verdade...
- Desse jeito você me assusta, garota. O que pode ser tão impossível assim, que nos impeça de ficar juntos?
Ela me puxou pela mão e disse:
- Venha comigo. Você vai ver...
Deixei-me conduzir por ela. Atravessamos a rua e chegamos em frente ao portão.
- Mas isso é o...
- Cemitério, eu sei. Venha, vamos entrar. Você vai entender...
A noite já havia chegado, estava escuro e deserto quando atravessamos o portão e entramos no cemitério. Andamos em silêncio por entre as catacumbas pintadas de branco, eu não fazia a menor ideia do que aquilo queria dizer, mas o meu coração sentia que estava prestes a conhecer um terrível segredo.
Paramos. Beatriz me olhou profundamente, olhos tristes, parecia estar chorando silenciosamente por dentro.
- Quero que você veja uma coisa. - apontou para algo atrás de mim.
Fui me voltando aos poucos. Era uma lápide de mármore.
- Mas o que...
- Leia o que está escrito... - as lágrimas começaram a rolar em sua face.
- Você está chorando...Por...
- LEIA... - ela me interrompeu, imperativa.
Eu li. A princípio, não entendi. Mas, aos poucos, tudo foi ficando claro em minha mente: o portão, o relógio da matriz, aquela sensação de frio... Fiquei aterrorizado! E quando me voltei para Beatriz, ela procurava me abraçar, sem conseguir...
- Beto, Beto...
A última coisa que vi antes do mundo inteiro desaparecer da minha frente foi a lápide, a maldita lápide..
AQUI JAZ CARLOS ROBERTO NASCIMENTO.
NASCIDO EM 12/12/1985 - FALECIDO EM 20/02/2007.
SAUDADES ETERNAS DOS PAIS, IRMÃ E SOBRINHOS.