ROSAS DE SANGUE - DTRL 26 - DUPLAS
ROSAS DE SANGUE - DTRL 26- DUPLAS
Farol da Solidão – Junho de 1939.
O jardineiro se aproximou do penhasco, olhando as alfazemas que cresciam na beira do abismo. Quarenta metros abaixo, as ondas batiam revoltas nas rochas. O vento marinho agitava seus cabelos claros e ele se inclinou mais.
- Não estou vendo nenhuma bola! – disse o homem, e nesse instante ele foi empurrado.
Tropeçou nas flores, procurando torcer o corpo e equilibrar-se, mas acabou caindo. Arregalou os olhos tanto de terror quanto de surpresa por ter sido enganado. Perdendo o equilíbrio, despencou no vazio agitando os braços para agarrar-se em alguma coisa, mas nada havia, apenas o ar inconsistente e sua ridícula decepção por confiar cegamente nas pessoas de aparência frágil e inocente.
Ele caiu como uma folha no outono e espatifou-se nas rochas cobertas de espumas. Logo em seguida uma garrafa de uísque voou, quebrando-se ao seu lado. Restou apenas o marulhar das ondas.
***
Antes...
A casa do rochedo, próxima ao farol, era mais conhecida como Solar das Rosas. Foi construída entre 1928 e 1930, pelo próprio dono, o arquiteto Ronaldo Verona, recém-casado com Eleonora Spinoza, cartomante e ocultista. Ronaldo construiu uma estufa de ferro e vidraça ao lado da casa para cultivar uma espécie rara de rosa azulada, com bordas brancas. Ele contratou um jardineiro para cuidar das rosas enquanto estivesse viajando a trabalho. Nessa época, a filha deles, Beatriz, estava com 9 anos.
Certo dia, com o pai ausente e a mãe, como sempre, passeando pela estufa, Beatriz, já entediada, resolveu sair um pouco para tomar um ar e brincar no gramado.
Correu em direção a uma árvore onde seu pai havia feito um balanço para ela, mas ao se acomodar no brinquedo viu algo descer pelos galhos e disparar para o gramado. Um esquilo! Ao menos foi o que ela pensou ser. Saltou do balanço e foi a atrás do bichinho que fugiu em direção à estufa.
Beatriz o perseguiu, tentando não fazer barulho para não assustá-lo ainda mais. Ao chegar na porta da estufa, que estava entreaberta, a menina ouviu um som, algo como um gemido. Em princípio ela pensou que sua mãe, que provavelmente estava ali, havia se machucado. Aproximou-se preocupada, mas estacou surpresa ao ouvir também a voz de um homem.
Devagar espiou pela fresta na porta. Por entre os vasos e roseiras ela pode ver algo se mexendo. Prestando atenção viu duas pessoas sem roupas deitadas num tapete velho. De imediato reconheceu a mãe, e alguns instantes depois, o jardineiro.
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Solar das Rosas – Novembro de 2015.
Marlene acompanhava o trabalho dos pedreiros que quebravam uma parede no corredor que dava acesso à cozinha. Segundo o mestre de obras, na planta original da casa havia um porão naquele local. A mulher achou estranho que nenhum dos antigos moradores houvesse mexido ali.
Mas de qualquer forma, um porão viria a calhar. Espaço nunca era demais, pensava ela, por isso, quando encontraram a casa por um preço bem mais baixo que o comum, ela e Felipe, o marido, não pensaram duas vezes. Foram informados pela corretora que fizera a venda que havia ocorrido um incêndio na estufa que ficava na propriedade, há muito tempo, infelizmente com uma vítima fatal. Mas isso não os afetou.
Agora o local é apenas um emaranhado de metal enferrujado e retorcido. Segundo a corretora, somente uma família morou naquele lugar após os primeiros donos. Por motivo de dívidas e burocracia judicial a casa ficou muito tempo sem moradores.
Quando a parede finalmente ruiu por completo, Marlene foi surpreendida por uma porta escura com maçaneta antiga, marcada com um estranho desenho: um círculo contendo um hexagrama e letras desconhecidas. Lá embaixo havia um armário com livros, uma mesa e um tapete velho. Ela pegou alguns volumes empoeirados e folheou-os, curiosa. Constatou que ali havia uma pequena coleção que tratava de assuntos místicos indo da astrologia ao ocultismo. Como era bastante curiosa, achou tudo muito divertido, pelo menos no início.
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Solar das Rosas – Maio de 1939.
Beatriz queria irritar a mãe, chamar sua atenção. Não entendia o que viu naquela tarde, mas sabia que era errado. A mulher passava cada vez mais tempo na estufa na companhia de Victor, o jardineiro, deixando Beatriz sozinha. A menina se ressentia.
Como sempre fora proibida de entrar no porão, resolveu fazer exatamente isso, talvez assim a mãe voltasse a prestar atenção nela.
Esperta que era, conseguiu encontrar a chave da porta do porão e do armário de livros no porta-joias da mãe que estava, como todas as tardes, fazendo seu longo passeio pela estufa.
Havia um armário com diversos livros empilhados em duas prateleiras, uma mesa redonda com uma toalha vermelha. Sobre ela havia uma vela negra apagada, uma caixa aveludada e uma taça vazia.
Enquanto explorava o lugar, Beatriz pensou ouvir um sussurro que vinha do armário de livros. Um arrepio correu seu corpo quando a luz do cômodo piscou com um chiado. Cheia de medo e excitação a menina se esforçou para não recuar e foi até o armário de livros para destrancá-lo.
Examinou as lombadas gastas dos livros, alguns em línguas estrangeiras. Seus olhos foram atraídos por um volume de capa preta desbotada, quase escondido entre os tomos de títulos dourados. Nesse livro pequeno e sem graça, encontrou um feitiço para invocar um espírito e fazer dele um escravo. A imaginação infantil de Beatriz não permitiu que ela pensasse nos riscos de abrir um livro como aquele.
Mesmo sem saber exatamente o que fazia, Beatriz seguiu as indicações, e a todo tempo pensava que poderia mandar o espírito assustar Victor e fazer com que ele fosse embora para nunca mais voltar. Sentia medo, mas algo dentro dela ansiava por fazer aquilo.
Puxou parte do tapete vermelho e ali riscou com um giz o pentagrama e todos aqueles outros símbolos em volta, posicionou-se no centro e leu, com um pouco de dificuldade, palavras que chamavam o espírito pelo nome:
- Vaetus, Vaetus! Venha obedecer a mim, Beatriz Verona, sua dona de agora em diante.
A menina calou-se, esperando algo acontecer. Os minutos se passaram, mas nenhum gênio, espirito ou fantasma surgiu. Beatriz soltou um suspiro de decepção, apagou o desenho com o pé, guardou o livro e voltou a colocar a chave no lugar. De repente ela sentiu fome, muita fome...
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Solar das Rosas - Novembro de 2015.
Desde a conclusão da reforma, há duas semanas, Amanda, de 7 anos, filha de Felipe e Marlene Loredo, nunca tinha descido ao porão da casa. Ela sentia medo daquele lugar. Não sabia direito o porquê. Talvez por ter visto alguma imagem numa revista, ou assistido a algum filme de terror no qual o porão era um local misterioso e assombrado.
Porém, naquele dia sentiu uma vontade inexplicável de explorar as velharias que estavam guardadas lá embaixo. O pai estava trabalhando na cidade, a mãe escrevia seu livro no gabinete e ela estava chateada, sem nada para fazer. Então, afastando seus receios, dirigiu-se ao porão. Apertou o interruptor e uma lâmpada de luz amarelada acendeu-se lá embaixo e desceu os doze degraus lentamente.
Enquanto descia, olhava ao redor, descobrindo que não havia muita coisa, um armário com ferramentas que o pai havia guardado ali, cadeiras de praia, uma pequena escada de madeira, uma antiga escrivaninha, um espelho com moldura pendurado na parede, um armário com livros cobertos de pó e um tapete puído sobre o soalho de tábuas de cedro. As paredes eram revestidas de madeira, mas o que mais surpreendeu Amanda, foi aquela menina sentada sobre o tapete, brincando com uma boneca de pano.
- Como entrou aqui? - Inquiriu Amanda.
A menina de rosto redondo e olhar triste, olhou para ela, erguendo um ombro.
- Eu moro aqui. Quem é você?
- Eu me chamo Amanda e você?
- Beatriz.
- Você mora nesse porão?
Beatriz ergueu-se.
- Eu moro nessa casa.
Amanda achou estranha aquela afirmativa. Pensou que talvez Beatriz fosse um fantasma. Mas, ela parecia tão real e inofensiva!
Sentiu um pouco de receio, mas criou coragem para se aproximar e pegar a mão da garotinha. Era uma mão sólida e quente.
- Venha comigo. - disse Amanda e conduziu-a para a escada. Beatriz parou no primeiro degrau, olhando para cima.
- A porta está fechada! Mamãe me trancou aqui!
Amanda viu que a porta estava aberta, estava limpa e lixada. Lembrou-se de uma história que ouvira, sobre espíritos, que alguns ficavam presos aos lugares onde viveram e não conseguiam ir para o céu. Os motivos eram vários, mas ela não se deteve para pensar naquele assunto.
- A porta está aberta. Vamos, eu te ajudo.
Amanda puxou suavemente Beatriz pela mão. Lentamente, a menina subiu a escada. Chegando diante da porta trancada, parou desconfiada, mas viu que o selo não estava mais ali. Amanda puxou-a e ela passou pelo umbral. Voltou-se sorrindo para Amanda.
- Estou livre!
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Solar da Rosas – Maio de 1939.
A febre de Beatriz durava mais de quatro dias agora. Nenhum médico fora capaz de diagnosticar os motivos e nenhum medicamento ajudava.
A menina estava pálida, com os olhos fundos e perdera peso. Ronaldo havia chegado há pouco de viagem e havia se deparado com a filha naquela situação. Ele havia trazido um gatinho para a filha, mas achou melhor esperar que ela melhorasse para levar o bichano até ela.
Eleonora estava desesperada, pois a menina ficava irritada em sua presença. Com o pai, Beatriz ficava um pouco mais tranquila e até comia alguma coisa. Mas em determinado momento começou a balbuciar coisas estranhas.
- Desculpa, papai. Eu fiz uma coisa errada. – Ela dizia delirante. – Mas a mamãe também fez.
Ronaldo não deu atenção às palavras da filha julgando-as fruto de seu delírio febril. Por sua vez tentava acalmá-la e confortá-la. Porém o trabalho exigiu que viajasse novamente. Dessa vez prometeu à esposa que voltaria o mais rápido que pudesse, em um ou dois dias, no máximo. Percebeu o quanto transtornada a mulher estava e a aconselhou a contratar uma enfermeira para ajudá-la.
Naquela noite, Eleonora foi olhar se a filha dormia.Não entrou no quarto. Ficou na porta, olhando a garota dormindo abraçada a uma boneca de pano. O gatinho, que deveria ter subido até lá sem que ninguém percebesse, dormia a seus pés. Algumas lágrimas escaparam de seus olhos, um pouco por conta da tristeza, um pouco porque se sentia culpada de alguma forma.
Ela se virou para voltar ao seu quarto quando ouviu uma voz que parecia a de Beatriz, mas muito mais séria e um pouco rouca:
- Boa noite, mamãe.
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Solar das Rosas - Novembro de 2015.
Felipe acordava cedo, mesmo nos fins de semana. A mulher dormia ainda, pois ficara trabalhando em seu livro até tarde.
Levantou-se da cama e se dirigia à cozinha para preparar um bom café da manhã quando escutou um barulho que vinha do quarto da filha. Apurou os ouvidos e percebeu que a menina ria.
Foi até o quarto de Amanda verificar por que ela estava acordada tão cedo. Quando abriu a porta, viu a menina sentada no chão, de pijama, brincando com uma boneca velha de pano.
- Acordou cedo, Mandinha.
- Eu nem dormi. – Respondeu a menina sem tirar os olhos da boneca.
- Como assim? – O pai aproximou-se preocupado. – Ficou a noite toda acordada? Por que?
- Fiquei brincando com a Beatriz.
- Beatriz?
A menina olhou para o pai com uma ponta de indignação, como se ela estivesse falando o óbvio e ele não fosse capaz de compreender.
- É minha amiga, achei ela no porão. Ela estava sozinha e presa lá, porque ela queimou as flores da mãe dela.
Felipe admirou-se da imaginação da filha. Provavelmente a garota ouviu a corretora contando sobre o casal e a filha pequena que moraram na casa antes do incêndio na estufa.
- Não está com sono?
Amanda respondeu que sim. Estava com olheiras e descabelada. Com o dedo fez sinal para o pai se aproximar e sussurrou:
- Ela não me deixa dormir.
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Solar das Rosas – Junho de 1939.
Eleonora acordou assustada.
Sentou-se na cama puxando o lençol para si como se isso a protegesse de qualquer ameaça. Levantou-se lentamente e vestiu um roupão macio e quente. Olhou no relógio: 3:13 da manhã.
Foi até o quarto de Beatriz para verificar se a menina estava bem. A enfermeira cochilava recostada em sua poltrona. Aproximou-se mais alguns passos e percebeu, para seu espanto, que Beatriz não estava na cama. Um calafrio percorreu seu corpo, como um sussurro gelado de alerta. Ela percorreu um olhar pelo quarto. A menina não estava ali.
Foi até a janela para observar. A noite estava clara, mas não havia sinal de Beatriz lá fora. Acordou Verônica, a enfermeira, para ajudá-la a procurar.
A mulher ficou envergonhada e pediu mil desculpas, dizendo que sempre acordava a cada movimento da menina, mas dessa vez não havia despertado. Eleonora apenas insistiu que ela ajudasse a procurar a menina pela casa.
Beatriz não estava em nenhum dos cômodos, nem mesmo no porão, para o alívio de Eleonora, que resolveu procurar a menina fora da casa.
Estava frio! A grama já estava úmida e coberta por uma fina névoa. Era possível ouvir as ondas batendo com força nas pedras. Com o canto dos olhos, Eleonora percebeu uma movimentação em direção à estufa e foi naquela direção.
A porta estava aberta. A luz do luar refletia-se nas vidraças.
Eleonora caminhou lentamente por entre suas raras rosas azuladas, chamando pela filha. Parou quando escurou um risinho e logo depois um “shhh”.
- Beatriz, querida, isso não tem graça.
Um vaso veio voando em direção de Eleonora que, por instinto, teve um reflexo rápido o suficiente para se jogar de lado e evitar ser atingida. Ela caiu no chão e o vaso se espatifou na coluna de metal espalhando terra pelo chão.
Enquanto se levantava ela ouviu a voz da filha:
- Para com isso. Ela não!
Pelo som da voz ela encontrou Beatriz agachada embaixo de uma prateleira nos fundos da estufa. A roupa da menina estava suja de terra, assim como suas mãos. Havia algumas rosas arrancadas e espalhadas pelo chão.
- Por que fez isso? – Perguntou a mulher furiosa puxando a filha pelo braço. – Vou colocá-la de castigo.
Beatriz não disse nada. Apenas encarou a mãe por um longo momento, com um sorriso macabro e um olhar profundo demais para uma criança.
Então Eleonora percebeu...
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Solar das Rosas – Junho de 1939.
Victor, o jardineiro, estava ajoelhado no chão, arrancando as ervas daninhas que teimavam crescer entre os roseirais. Enquanto trabalhava, pensava em Eleonora. Ela havia dito que iria se separar do marido, que alugaria uma casa na cidade e deixaria o solar para sempre para ficar com ele, mas o tempo passava e a mulher não cumpria suas promessas.
A voz de Beatriz interrompeu seus pensamentos.
- Victor! Victor! – Chamou a menina da porta da estufa.
Ele ergueu-se, puxou um pano do bolso do macacão e limpou as mãos. A menina estava pálida e mais magra.
- O que é? Você não deveria estar na cama?
- Saí um pouquinho, a Verônica deixou. - Explicou ela. - Pega a minha bola? Eu estava brincando e ela rolou e foi parar lá na beira do penhasco. Tenho medo de cair!
- No penhasco? Você sabe que é perigoso brincar lá. Cadê a sua mãe?
- Foi na cidade fazer compras. Pega a bola?
- Tá bem. E você fica longe!
O jardineiro percorreu os cerca de duzentos metros que separavam a casa do promontório.
- Onde caiu? - Perguntou, olhando para a vegetação que crescia na beira do rochedo.
- Mais adiante.- respondeu Beatriz.
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Solar das Rosas – Junho de 1939
A tarde era fria. Ronaldo ainda não havia voltado de viagem e Eleonora passara o dia incomodada com a ausência de Victor, que não comparecia ao serviço há três dias. Com a indicação de Verônica, Eleonora tomou um calmante e adormeceu.
Beatriz dormia, e Verônica lia um livro na poltrona ao lado da cama. Sua concentração foi interrompida quando a garota começou a gemer. A enfermeira levantou os olhos e viu que Beatriz se mexia e fazia caretas. Aproximou-se dela para medir sua temperatura e tentar despertá-la daquele pesadelo. Tocou a testa da garota com carinho e sussurrou:
- Beatriz, querida, acorde. Está tudo bem.
De repente a mão da menina agarrou o pulso de Verônica com força, seus olhos se abriram e se viraram, tornando-se totalmente brancos, as veias saltaram em seu pescoço. Em meio as convulsões Beatriz arranhou com força o antebraço da mulher, que finalmente conseguiu segurar a garota pelos ombros até que ela se acalmasse.
Eleonora não despertou por conta do calmante. “Melhor assim”, pensou Verônica que voltou para seu assento confortável depois de fazer um curativo no braço.
Naquela madrugada, a enfermeira acordou com uma dor horrível no braço arranhado. Acendeu o abajur e olhou para o local do ferimento. Seu antebraço estava vermelho, com os arranhões infeccionados. Ela se sentia mal e pediu para Eleonora chamar uma ambulância.
Com o braço necrosado, Veronica foi hospitalizada e internada na UTI. Sozinha no quarto, ela acordou com fortes dores pelo corpo.
A infecção se alastrava velozmente. Veronica tentou chamar a enfermeira, mas não conseguiu, queria gritar, mas nenhum som saiu de sua garganta inflamada.
Erguendo-se da cama, deu algumas passadas em direção da porta do quarto e caiu de bruços, quando os pés se desmancharam. A mulher ainda tentou se erguer apoiando as mãos no chão, mas a carne e os ligamentos se tornaram numa massa mole e ela tornou a cair, o crânio reluzente tombou rolando, parou na porta, bem aos pés da enfermeira que chegava naquele momento.
O grito ecoou pelo hospital inteiro.
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Solar das Rosas – Novembro de 2015.
Marlene e Felipe estavam preocupados com Amanda, que adoecera de uma hora para outra. A mãe a havia encontrado desmaiada quando subiu ao seu quarto para chamá-la para jantar. Imediatamente colocou-a na cama e telefonou para uma ambulância. Os paramédicos chegaram 20 minutos depois. Fizeram todos os procedimentos necessários, mas a garota não melhorava.
Sua fisionomia sofreu uma mudança repentina. As faces se tornaram cinzentas, os olhos fundos, as veias do rosto e do pescoço entumeceram, dando aparência de que iam explodir. Amanda arregalou os olhos e soltou um lamento retorcendo-se sobre a cama.
Foi necessário que o pai e um paramédico a segurassem, enquanto o médico aplicava uma injeção. A menina acalmou-se em seguida, e adormeceu. A expressão de seu rosto suavizou-se voltando ao normal. Marlene ficou tão apavorada quanto os atendentes.
Quando a tiravam de casa na maca para levá-la ao hospital, Amanda acordou e começou a gritar e se debater, dizendo que não queria sair. Suas veias saltaram novamente, em seus olhos os vasos estouraram, deixando seus globos oculares vermelhos.
Seus gritos eram assustadores como uivos guturais. Enquanto se debatia, levantava os braços e os esticava para trás e gritava:
- Me solta! Me solta!
A garota só se acalmou quando foi colocada novamente em sua cama. Estava sedada e dormia. Marlene a observava tristonha, quando percebeu marcas de pequenos dedos nos braços da menina, como se alguém a tivesse segurado com muita força.
A mulher estremeceu.
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Solar das Rosas – Junho de 1939
Um pescador encontrou o corpo do jardineiro e avisou a polícia. Após as investigações e com o depoimento de Eleonora, afirmando que o jardineiro apareceu uma vez bêbado, e que ela o ameaçou despedir caso ele voltasse a beber, a polícia concluiu que tinha sido um acidente. Victor bebeu, ficou tonto e acabou caindo do rochedo.
Eleonora foi ao funeral do jardineiro, dar seu apoio aos pais dele. Quando chegou em casa, ao abrir a porta, encontrou Beatriz ajoelhada no chão. A menina olhou para ela com a boca e as mãos vermelhas. Eleonora levou alguns segundos para entender o que ela estava fazendo.
Quando a cena finalmente se tornou clara em sua mente, um terror imenso invadiu o coração da mulher. O corpo do gato jazia no chão com a barriga aberta, as vísceras escorriam por entre os pequenos dedos de Beatriz, que mastigava lentamente, enquanto olhava apática para a mãe.
***
No dia seguinte.
Após o incidente com o gato Eleonora finalmente admitiu que a doença da filha não era de natureza física ou psíquica. Ela lutou contra esse pensamento, mas por conta de seus conhecimentos sobre o oculto, concluiu que Beatriz poderia ser vítima de um espírito maligno.
Mas como? Ela havia protegido a casa e a família de todas as formas que conhecia. Então algo aterrador se fez claro: se alguma coisa ruim estava naquela casa, com sua filha, provavelmente alguém o deixara entrar.
Ela foi ao quarto verificar se a chave do armário onde guardava seus livros de magia, estava no lugar.
Sim, estava lá, dentro do porta joias.
Não satisfeita, Eleonora pegou a chave, desceu ao porão. Examinou cuidadosamente os livros no armário e viu que um dos volumes tinha a lombada manchada de giz.
Ela conhecia muito bem aquele livro, graças a invocações contidas nele ela fora capaz de conseguir o emprego que seu marido tanto queria, a bela casa na qual morava e o mais importante: conseguira conceber uma criança.
Buscando por mais pistas, Eleonora tirou o tapete do lugar e viu as marcas quase apagadas do pentagrama desenhado no assoalho. Estarrecida, teve certeza de que algo muito ruim acontecera com Beatriz.
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Solar das Rosas – Novembro de 2015.
Amanda já não falava mais sozinha nem mencionava Beatriz. Os pais imaginaram que a doença havia enfraquecido a criatividade da garota.
Marlene entrou no quarto com um prato de comida e um suco de laranja. Seu coração se apertava ao ver o estado da filha: pálida, olhos fundos, olheiras cinzentas e lábios ressecados.
- Está com fome filha? – A menina a encarou com um olhar odioso soltando um suave rosnado. – Eu fiz sopinha de macarrão com frango, que você tanto gosta. – Amanda não respondia. Em uma tentativa desesperada, a mãe olhou para um espaço vazio na cama e disse. – Beatriz, fala pra Mandinha comer.
A garotinha riu de uma maneira tão debochada que deixou Marlene desconcertada.
- A Beatriz não está mais aqui. – A voz de Amanda era rouca. – Só eu. – E sorriu.
Durante aquela noite, Marlene não conseguiu dormir. Pensava nas vezes em que vira a filha falando sozinha, parecia que estava conversando com alguém que lhe dizia o que fazer e que queria que ela mantivesse segredos. Não era como as outras crianças que tinham amigos imaginários e adoravam falar deles para os pais.
Amanda sempre se calava quando perguntavam de Beatriz, como se estivesse amedrontada. Mas agora a menina tinha assumido um aspecto um tanto adulto demais e ela quase não podia reconhecer a própria filha.
***
No dia seguinte:
Marlene passou horas pesquisando sobre os sintomas da filha, porém sua curiosidade de escritora, aliada a um pressentimento macabro, a levou a pesquisar sobre a história daquela casa e de seus antigos donos.
Foi até na biblioteca municipal para verificar os arquivos do ano de 1939, pois por incrível que pareça, encontrou muito pouco sobre esse período na internet.
As notícias sobre o incêndio na estufa eram conhecidas, mas ao ler alguns jornais da época ela descobriu que muitas pessoas culpavam Eleonora, esposa de Ronaldo, pela tragédia. Ela era conhecida na cidade por se envolver com ocultismo, e isso lhe garantiu os títulos de bruxa e satanista.
Também descobriu que a filha do casal, Beatriz, assim como sua mãe, desapareceu logo após a morte de Ronaldo. A corretora era obrigada apenas a mencionar a morte de Ronaldo, então não havia mencionado nada além disso. Talvez o resto da história a tivesse feito perder algumas vendas, mas isso não teria impressionado Marlene, que sempre fora cética.
Algumas notícias mencionavam a doença que acometeu a garota antes de toda a tragédia acontecer.
Mesmo com seu ceticismo, Marlene não pode evitar que seu coração se enchesse de medo.
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Solar das Rosas – Julho de 1939.
Ronaldo estacionou o carro perto da estufa e quando desceu, viu Beatriz entrando em casa. Já era madrugada e ele estranhou que a menina estivesse acordada.
Chamou- a, mas a ela não o ouviu.
Sentiu um cheiro de gasolina na entrada da estufa. Achando estranho aquilo, ele foi investigar. Viu que o chão e algumas roseiras estavam encharcados com gasolina. O cheiro era sufocante.
Algumas flores já começaram a murchar. Desde que Victor morreu, ninguém mais cuidou do roseiral. Havia um monte de capim seco ao lado do corredor, que não havia sido jogado fora.
Precisava urgentemente contratar alguém para cuidar das rosas, mas agora, com aquela gasolina espalhada por todo canto, com certeza as plantas morreriam! Ronaldo tentou imaginar por que alguém faria aquilo, mas logo seus pensamentos deram lugar ao desespero.
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Solar das Rosas – Novembro de 2015
O dia estava frio e uma fina chuva caía lá fora. Amanda ainda dormia. Estava pálida e com olheiras profundas. Reclamava de fome constantemente, mas não comia quase nada quando lhe ofereciam comida.
Marlene deixara o marido na cama. Não havia dormido muito, pois as informações sobre a casa e Beatriz a deixaram bastante perturbada. Decidiu ir até o porão, onde a filha disse que havia encontrado Beatriz.
A luz estava queimada, então teve de usar uma lanterna. Ainda não tinha se livrado de nada que estava lá dentro. Esperava aproveitar algum livro para sua biblioteca e até mesmo vender a mesa, que era muito bonita e conservada.
Com paciência ela começou a folhear os livros. Um dos volumes falava sobre invocações e seus riscos. Caso a pessoa que realizasse o ritual não fosse experiente o suficiente, era possível que o demônio ou espírito ficasse fora de controle, sendo impossível bani-lo, assim ele procuraria alguém com vontade fraca para possuir. Crianças estavam entre as principais vítimas nesses casos.
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Solar das Rosas – Julho de 1939
Beatriz perdera o controle de suas ações. A voz que ouvia na sua cabeça havia se tornado uma presença em seu corpo. Presa em sua própria mente não podia fazer nada, a não ser observar através de seus olhos os atos guiados por Vaetus.
Ela se desesperou quando entrou na garagem, onde o pai costumava guardar um galão de gasolina. Sentiu o peso quando pegou o galão com as duas mãos e se dirigiu para a estufa. Vaetus sorria enquanto jogava a gasolina sobre algumas roseiras e foi retrocedendo até porta. De repente largou o galão vazio, quando se lembrou que tinha esquecido de pegar a caixa de fósforos, afinal mesmo que fosse um demônio, o corpo infantil lhe limitava as habilidades.
Enquanto se dirigia para a casa para pegar os fósforos, Beatriz gritava com o demônio, pedindo para que ele não fizesse aquilo, exigindo que ele a obedecesse, pois assim dizia o livro.
Mas ela desistiu quando se aproximou da entrada da estufa, riscou o fósforo e jogou no chão. A trilha de gasolina pegou fogo, alastrou-se rapidamente atingindo também o monte de capim seco. As chamas se espalharam pela estufa. Beatriz ficou de longe olhando enquanto Vaetus gargalhava em seu interior.
Súbito, ela viu o pai sair do meio das chamas com o corpo pegando fogo. Ela viu a expressão de terror no rosto dele, ouviu os gritos de dor, quando ele caiu rolando pelo meio das rosas em fogo. Mas era tarde, ela não podia fazer mais nada senão, chorar silenciosamente.
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Solar das Rosas – Dezembro de 2015.
Marlene havia ligado para o padre Horácio e explicado a situação e ele prometera uma visita no final da tarde.
Quando ele chegou o sol já estava se pondo e Marlene o esperava impaciente. Felipe achava que aquilo não era necessário, mas aceitou para agradar a esposa. Quando a mulher acompanhava o padre até o quarto da menina, encontrou Felipe todo esbaforido no corredor.
- A Amanda não está no quarto dela. Eu só fui ao banheiro, não levou nem três minutos. Ela não está lá.
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Solar da Rosas -1939- Julho
Ao investigar a morte de Ronaldo na estufa, a polícia considerou a possibilidade de suicídio, já que Ronaldo tinha um caso com sua secretária, e a moça ameaçou revelar tudo a Eleonora. Porém, todos os que ficavam sabendo da tragédia, culpavam a mulher pela morte do marido.
Eleonora sabia que seria uma questão de tempo até que a polícia desse um jeito de incriminá-la, pois muitos eram os que a procuravam em busca de seus dons espirituais, mas isso não diminuía o desprezo que sentiam por uma mulher que tinha crenças e práticas muito distantes daquelas que eram confortáveis ás pessoas da cidade.
Mas agora sua principal preocupação era a filha. Beatriz, ou o que quer que fosse agora, não podia ficar solta.
Ela havia encontrado um gato de rua passeando pelo quintal e o pegou. Levou-o até o porão onde desenhou um selo de contenção no chão e colocou o tapete em cima. Sem ter tempo para pensar muito, pegou a adaga que ficava da caixa de veludo negro, cortou a garganta do gato e deixou o corpo sangrando sobre o tapete, na esperança de que aquilo atraísse o espírito demoníaco, que estava constantemente com fome.
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Solar das Rosas – Dezembro de 2015.
Marlene correu para fora da casa, seus instintos a levaram em direção à velha estufa. Atrás dela Felipe e o padre corriam. Viu a filha parada na entrada da estufa. A menina estava magra e tinha manchas pelo corpo.
- Amanda, você está bem? – Perguntou diminuindo o passo.
Amanda virou o rosto para olhá-la. Sua expressão era de dor e tormento, seus olhos estavam vermelhos e seu nariz sangrava.
- Mamãe, me ajude... – a frase terminou em um urro de dor e a menina correu para dentro da construção em ruínas.
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Solar das Rosas – Julho de 1939.
Eleonora usou os materiais usados para uma reforma no farol para construir uma parede improvisada que selasse a porta do porão. Enquanto ela empilhava os tijolos sem muita precisão, ouvia os lamentos de Beatriz:
- Mamãe, me deixa sair, por favor. – A garota chorava e soluçava, mas Eleonora sabia que não era sua filha que estava lá. – Eu juro que vou ser boazinha, abre a porta, por favor.
A mulher chorava, mas precisava acabar aquilo logo e ir embora.
- Você acha que esses selos vão me segurar para sempre? – A voz agora era calma, masculina e profunda.
Eleonora sentiu o sangue gelar nas veias, mas continuou a levantar a parede. Quando terminou, juntou suas coisas e partiu.
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Solar das Rosas. Dezembro de 2015.
Amanda gritava. Estava ajoelhada entre os escombros da estufa segurando a cabeça com as mãos. Marlene não se aproxima, estava muito abalada e era amparada por Felipe. Com o rosto congestionado pelo desespero, ele balbuciou:
- Aquele não é mais nossa filha!
O padre Horácio tirou um rosário do bolso, se benzeu, começou a rezar um pai nosso enquanto espargia água benta em direção da garota.
Amanda continuava gritando.
Seu corpo começou a inchar, como se ela tivesse sido atacada por um enxame de abelhas. Aterrorizado o padre Horácio se calou ao ver a pele da menina ceder como papel molhado enquanto o sangue escorria abundante.
Amanda crescia, se volumava, carne palpitando e se remexendo como se alguma coisa quisesse sair lá de dentro. O corpo, que já não servia mais como hospedeiro para o espírito maligno, começou a tremer, a pulsar e intumescer. Abriram-se sulcos profundos que se espalharam, as faces de menina se derretiam como manteiga na chapa quente. Sem a firmeza dos nervos, o queixo caiu, os olhos saltaram das órbitas, rolaram para o chão e de súbito, Amanda explodiu!
Os pedaços de carne e ossos se espalharam ao redor, caindo sobre as pessoas que observavam em choque.
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Farol da Solidão – 2016
O Solar das Rosas está para ser vendido ou alugado. Ao lado não há mais a velha estufa, nem rosas azuis. Mas, se você se aventurar por entre as ruínas de metal retorcido que ainda estão lá, poderá encontrar, em um local específico, rosas vermelhas, cor de sangue.
TEMA - Possessão.