Sombra e sangue
Desde o inicio, quando fomos deixados naquele mundo por nossos senhores, foi nos dito que os seres que nele habitam, chamados por si mesmos de homens, nos serviriam como alimento. Cabia a nós caça-los, a eles e todas as criaturas que lhes faziam companhia, e elimina-los para que um dia nossos senhores retornassem e tomassem posse daquele mundo, pois nossos senhores eram senhores de todos os mundos.
E por isso estávamos ali, caçando, nos alimentado e exterminando uma raça após a outra, assim como nos foi ordenado, assim como havíamos feito inúmeras vezes. Entretanto a raça que ali se encontrava mostrava-se teimosa, reticente, não disposta a aceitar facilmente seu destino, não se contentavam em morrer. Assim como nós eles também queriam matar.
"Joguei mais galhos na fogueira, o fogo crepitava alto, as labaredas fantasmagóricas projetavam sombras igualmente espectrais, dançantes. Alguns homens cercavam o acampamento, em vigília, outros se aqueciam comigo junto ao fogo, e em nossa companhia alguns cães, fiéis companheiros, também aproveitavam o abraço caloroso da fogueira. Próximo a nós, na carcaça de um velho Chevrolet abandonado, algumas crianças enganavam a noite, brincando jogos quase esquecidos que me faziam remeter a minha própria infância. E por um momento pensei ser eu mesmo uma criança, acampando com meu pai em alguma floresta escura cheia de feras inexistentes e histórias mitológicas."
Eles gostavam do fogo, domaram aquele mundo com o fogo. O fogo era estranho a nós, de onde viemos ele não existia, por isso nos amedrontava, era algo não natural. Entretanto era necessário enfrentar o fogo, pelo bem de nossos senhores era necessário exterminar todos os fazedores de fogo, e por isso assim que localizamos aquele grupo nos aproximamos mais e mais, vagarosamente, sem ruídos, mais de vinte corpos negros fundidos a escuridão.
"Alimentei novamente a fogueira quando um dos cães se levantou como um raio, pondo-se em posição de alerta, logo foi seguido pelos outros, todos rosnavam baixo, apontando em todas as direções. Larguei os galhos e busquei meu rifle, assim como os outros homens, os cães tinham sentidos mais acurados e sentiam o cheiro das feras antes de nós."
Onde quer que os fazedores de fogo estivessem também estavam aquelas pequenas criaturas. Pequenas, mas ágeis e corajosas, em certo aspecto parecidas conosco, tanto fisicamente quanto na devoção aos seus senhores. Felizmente as semelhanças terminavam aí, eram facilmente eliminados tamanha a fraqueza de seus corpos. Por isso aguardamos que viessem.
"Nossos cães avançaram na escuridão, vãos eram nossos chamados para que estacassem, as feras produziam neles fúria assassina incontrolável, provavam sua fidelidade e coragem com a própria vida."
As pequenas criaturas lançaram-se em um ataque feroz sobre nós, como eram determinadas! Porém sua força e seu número eram muito reduzido, nós os cortamos em pedaços, nos saboreando com sua exótica carne vermelha. Com o caminho aberto avançamos, podíamos sentir no ar o cheiro do choro produzido pelas pequenas crias dos fazedores de fogo.
"De dentro da escuridão o ganido triste de nossos cães denunciava seus fins. As crianças dentro do velho Chevrolet, que antes riam e brincavam, agora choramingavam, e eu também chorei dentro de mim, pois sabia que mesmo com todo nosso esforço elas estavam condenadas."
Avançamos, como líder de meu grupo ordenava a meus irmãos tomarem suas posições, fechamos um círculo na noite em volta do acampamento. E ao meu comando atacamos.
"Ouvi o grito rouco de uma das feras, provavelmente o líder, logo um enxame de umas vinte criaturas surgiu dentro do acampamento. Cada uma sobre um homem diferente, eles eram certeiros, e nós também deveríamos ser. Apertei o gatilho seguido de outros, perfurando a própria a noite com fogo e chumbo."
O metal quente penetrou minha carne, nada grave. Mas ao meu lado um de meus irmãos ganhou um terceiro olho e tombou. A visão de sua morte nos encheu de mais fúria.
"Ao tombar de seus companheiros as criaturas ficavam mais e mais ferozes, via meus companheiros sendo eliminados um a um, mas uma a uma eu também mirava a escuridão e disparava, tão furioso quanto aquelas feras invasoras."
Um deles era bom, sim, era bom em nossa arte, nossa arte de matar, o vi derrubar cinco de nossos irmãos, tentei chegar até ele, mas havia outros no caminho, outros aos quais eu cravava minhas pressas e garras, provando do liquido quente e nutritivo de suas entranhas, e foi então que ouvi o choro.
"O choro! As crianças choravam dentro do carro abandonado, me virei em sua direção. Uma das feras também havia ouvido o choro e partia para lá como um raio escuro nas sombras. Tentei chegar até ele, mas outro daqueles demônios ficou em meu caminho, me forçando a atirar."
Ouvi o grito de outro de nossos irmãos. Os fazedores de fogo estavam determinados, mas já quase não havia mais deles ou de suas armas atiradoras de fogo. Logo cheguei a carcaça de um veículo rudimentar e vi lá dentro o que procurava, quatro crias dos homens, e me lancei sobre elas e seus pequenos e suculentos corpos.
"Maldito seja! Maldito seja! – Oh Deus, porque permite isso? Porque permite que demônios andem sobre a Terra a caça de nossas crianças? Eu estava enfurecido, disparei a esmo, acertando cada demônio negro a minha frente. E a cada tiro que dava, um deles tombava, mas havia algo errado, eu não ouvia outros tiros senão os meus."
Restava apenas um, um único fazedor de fogo, aquele mais certeiro, eu o vi derrubar um a um de meus irmãos, ele olhava para mim com chama nos olhos e por um instante me perguntei se não era dali que eles tiravam o combustível para suas fogueiras. De repente senti outro pedaço de metal penetrar meu corpo, agora com mais violência, mas não o suficiente para me derrubar.
"Acertei! Acertei o maldito! Mas outros ainda vinham, e um deles me acertou por trás. Mas a providência me ajudou, cai de costas com a arma em riste, desferindo um tiro na cabeça do desgraçado."
Mais um de meus irmãos se foi. Aquele grupo havia acabado com quase todos, só restavam a mim e há mais dois, mas eles também haviam perdido bastante, só lhes restava aquele que me feriu, aquele que derrubou quase metade de minha família. Seria uma honra elimina-lo, porém era hora de nos retirar, nossa missão por aquela noite estava cumprida.
"As bestas estavam fugindo, contei três, mas pode ser que havia mais escondidas. Levantei-me com dificuldade, o ataque da criatura ao que parece havia me quebrado uma costela, mas a dor era suportável, insuportável era ver no que eles haviam reduzido meus companheiros e nossa crianças: simples restos, simples restos de nada. Aquilo não ficaria sem vingança."
Locomovo-me com dificuldade, meus dois irmãos percebem isso e tentam me apoiar, mas não temos mãos ou coisa parecida, por isso não avançamos muito. Então, de repente, sinto o peso de meu irmão da esquerda, no qual devia me apoiar, desabar sobre mim depois de um trovão cego cortar o silencio da noite.
"Acertei, acertei um dos malditos, mas não, não era o que eu queria. Mas ele seria meu, sim seria."
Meu irmão cai, sem vida, minha alma se enfurece. Como eram difíceis os fazedores de fogo, muitas raças em muitos mundos eu já havia enfrentado, mas encontro aqui, nessa terra esquecida por nossos senhores, um adversário a altura. Tão enraivecido como eu ficou meu outro irmão, que tomado pelo ardor inconsequente dos jovens partiu para o ataque.
"Logo percebi que estava ficando sem munição, mas não podia economizar. Como o vento, rasteiro e silencioso, ele surgiu, esvaziei a arma naquela sombra imunda, ele caiu e ganiu como um cão, se arrastando até mim ainda com suas pressas sujas com nosso sangue a mostra. Atirei gastando até minha ultima bala."
Foram todos mortos, todos os meus irmãos. E o fazedor de fogo ainda avançava. E eu me arrastava. Logo me alcançaria. Senti então um sentimento estranho, o pavor de ser transformado de caçador para caça, e então soube que aquilo era o medo.
"Ele estava ferido, eu o havia acertado no acampamento, sentia o fedor de seu sangue ou o que quer que seja que corria em suas veias. Desembainhei minha faca, a única arma que me restava, meu ferimento também doía, mas sabia que aquela dor logo passaria."
Ele me encontrou. É pequeno, não tem presas ou garras, também parece estar ferido, em uma de suas mãos vejo o brilho do metal. Rosno, mostro meus dentes afiados, não posso mostrar que tenho medo, não eu, seria vergonhoso frente a meus senhores.
"Ele grunhiu pra mim, mas seus movimentos são lentos, não me assusta, na verdade acredito que seja ele quem sente medo. Por isso ataco."
Ele vem veloz, certeiro, furioso. Crava-me o metal, cravo-lhe os dentes e as unhas, rasgo-lhe a pele enquanto ele rasga a minha. Sua pequena lâmina não penetra tão fundo, mas penetra o suficiente para provocar a morte, morte lenta.
"Seus dentes e garras são tão ou mais afiados que minha faca, meu sangue escorre em jatos, meus movimentos vão se tornando mais lentos, mas como um louco não paro de golpeá-lo. E continuaria golpeando aquele monstro até nós dois entrarmos no inferno."
Ele não desiste, é destemido. Seus golpes por fim me enfraquecem tanto que caio. Não posso lutar mais, apenas esperar a morte. Desonrei meus senhores, só espero que outros de meus irmãos, espalhados naquele mundo esquecido, não os decepcionem.
"A fera não reage mais, apenas respira cada vez mais fracamente, meu sangue escorre sobre seu pelo negro e eu continuo golpeando, golpeando, e tudo vai tornando-se mais negro, a fera torna-se mais negra, a noite torna-se mais negra e num último golpe eu soube que era o fim."
Texto inspirado em uma história que li há muito tempo numa edição da Isaac Azimov Magazine de nome "Um Conto de Inverno"