A Morte Não Sabia Sorrir
Essa história aconteceu em um fevereiro destes, na Região dos Lagos, há muitos, muitos anos.
Eu estava desanimada naquela época, e devido às constantes crises de ansiedade, resolvi tirar folga em meu trabalho, e me isolar em Iguaba, por alguns dias. Deixei o escritório de contabilidade de lado, e parti para o sossego.
No começo me senti sozinha. Meu namorado meu abandonara meses antes, porém, sua falta ainda era sentida. Minha mãe falecera drasticamente, aos cinquenta e dois anos, vítima de um enfarto fulminante. Ou seja, eu estava sozinha no mundo. Estava com a vida completamente revirada do avesso, e em meio aos pensamentos ruins de suicídio, ou de simplesmente abandonar tudo, eu confortei meu coração no silêncio daquela casa de praia. Ou melhor, casa de lagoa, como mamãe chamava.
Fevereiro faz calor. Geralmente faz, e os primeiros dias ali foram realmente quentes. Eu acordava cedo, antes do sol nascer, e corria pelos quarteirões. Depois, ia até a lagoa, e deixa as pequenas ondas baterem contra meu corpo, deitada sobre a areia. Era reconfortante, como se todo o peso tivesse saído das minhas costas. Eu estava calma. O mundo, que antes parecia um enorme Cubo Mágico qual eu nunca conseguia alinhar as cores, agora era como um quebra-cabeça para crianças do jardim de infância. Sabia que aquilo era temporário. Que ao voltar para minha casa vazia em Botafogo, naquele prédio com vizinhos metidos a ricos, a ansiedade voltaria, a tristeza viria junto também.
Foi então, que resolvi sair para beber. Sozinha mesma! Resolvi pegar um ônibus e ir até Araruama. Saí quando o despertador do meu celular tocou avisando da hora do meu ansiolítico. Nessa noite eu não tomei o remédio. Apenas me arrumei, peguei minha bolsa, e saí. Parei em um bar calmo, quase com a aparência de um boteco. E ali fiquei. Bebi cerveja, misturei com vinho, e com energéticos. O exagero me levou a começar a suar frio, ver tudo rodando. Então apaguei.
Daí então, o que me lembro dessa noite, eu nunca soube se foi ilusão, se foi um sonho ou se absurdamente e fantasticamente, aconteceu. O que me lembro começa com flashs. Eu deitada no banco detrás de um carro, sentindo uma incontrolável vontade de vomitar. O carro parecia correr muito, e, pelo canto dos olhos, pude ver que um homem dirigia o veículo. Ele usava uma blusa branca, e suas costas estavam molhadas.
Em um volume agradável, o rádio tocava alguma canção em saxofone. Não me lembro qual. Lembro-me que o carro parou bruscamente. Luzes coloridas invadiram o veículo pela janela, e meus olhos conseguiram se abrir totalmente, ainda que pesados. Minhas pernas estavam fracas, e minha barriga tinha a estranha sensação de formigamento. O homem saiu pela porta do motorista, e logo em seguida abriu a porta detrás. Não conseguia ver seu rosto, porém, ele cheirava a peixe, ou maresia, não sei ao certo. O cheiro daquele homem não era agradável.
Ele me pegou no colo e jogou meu corpo para trás de suas costas. O embrulho do meu estômago aumentou ainda mais com o baque de meu corpo contra o dele. Assim como aquele odor de peixe. Enquanto ele caminhava para algum lugar, eu pude ver o carro. As luzes vinham de um letreiro, um letreiro escrito “MOTEL”. Eu me desesperei. Mas meu corpo não respondia às minhas ordens. Nesse instante tive a certeza de que estava dopada. Então, apaguei novamente.
Quando acordei, eu estava no hospital. Estranhamente senti que tudo aquilo se tratava de um delírio alcoólico. Normal! Nunca bebi tanto em minha vida, e ali, usei meus medos e tristezas para me embriagar. Aos trinta e seis anos, agora eu tinha meu primeiro porre. Agora podia mexer minhas pernas, e ao sentir que podia fazer isso, tentei me levantar da cama. Uma enfermeira, - de prontidão, com certeza – veio até mim, e colocou suas mãos sobre meu corpo, empurrando carinhosamente contra a cama. Feito isso, virou-se para trás e chamou alguém com a mão. Não pude ver quem era, mas era um homem vestido com roupas de policial.
Ele conversou comigo, e explicou que me encontraram em um terreno baldio, próximo à Cabo Frio, desacordada, sangrando muito. Perguntei quem era o homem que me ferira. O policial franziu a testa, e respirou fundo, como se fosse uma péssima pergunta. Mas me contou. Eu havia sido violentada por um homem estranho. Um homem sem digitais nos dedos, que não tinha documentos, dirigia um carro sem registro e que ainda se encontrava no hospital.
- Preciso ver isso! Quem é esse filho da puta! – gritei.
Eu estava desesperada. Saí de um mundo de problemas, para arrumar outro. Precisava conhecer o monstro. E me arrependo. Sim. Eu me arrependo. Aquela face maldita não me sai da cabeça. Aquela face sem expressão como a de um boneco de cera. Aquela roupa fedorenta.
Sentada numa cadeira-de-rodas fui levada até a sala onde o monstro estava. Imediatamente me lembrei da cena do filme “Batman: O Cavaleiro das Trevas”, quando o fabuloso Coringa de Hearth Ledger encontra Batman na delegacia de Gotham. Na sala, o homem de ombros largos e corpo fino parecia me esperar. Seus cabelos negros caíam sobre a testa, e seus olhos estavam avermelhados. Ele se levantou para me receber, mas logo foi colocado de volta na cadeira, violentamente, pelos policiais. Eu o encarei com ódio.
O policial que estava comigo no quarto perguntou se eu queria entrar. Eu quis. Precisava entender o que aquele homem havia feito comigo. E nesse instante, meu corpo começou a doer. Agarrei-me aos braços da cadeira-de-rodas, e entrei na sala. O estranho me encarou. Seu rosto era horrível, lembrava o de um boneco ventríloquo. Boca avermelhada, olhos redondos e negros, sem qualquer brilho, e sua pele... Sua pele... Era sem vida. Uma pele completamente sem vida. Como a de um... Manequim. Sem cor, sem gordura...Sem vida.
Me aproximei, e o cheiro de peixe retornou. Horrível. Ele mantinha sua fisionomia. Encarando-me como se pretendesse me intimidar. Pude ver seus dedos, suas unhas eram garras. Seu pescoço possuía veias pulsantes e de um roxo incomparável.
-Quem é você? O que fez comigo?
Ele se manteve mudo. Eu insisti na pergunta, e repeti, repeti, repeti, até que comecei a chorar e gritar! Eu entrei em desespero. E de repente, a boca daquele monstro começou a sangrar, filetes de sangue jorravam dos cantos daqueles lábios, tornando-os ainda mais vermelhos. Então, ele abriu. Os dentes eram serrilhados. Outros, poucos deles, eram pontiagudos. Eu senti medo. Aquele monstro tocou-me. Aquele monstro havia abusado de mim. Mal podia imaginar quão grotesco a cena seria.
- O que você fez comigo? Quem é você? – perguntei aos prantos, sendo acalmada pela enfermeira.
As luzes do hospital piscaram. De repente... Black-Out!
Tudo ficou escuro. Alguns policiais gritavam, e algo parecia ataca-los. Senti meu corpo flutuar da cadeira. Os tiros na sala iluminaram o local, e pude perceber que o monstro havia se soltado da cadeira. Tentei sair da sala correndo, mas senti algo me puxar. Eu em alguns segundos, estava voando.
O hospital se afastou de mim. Tudo sob meus pés foi se afastando, e, em pouco tempo, eu encarava o mundo visto lá de cima. Os dedos pontiagudos e com unhas imundas me mantinham viva no alto. A qualquer momento, eu poderia ser lançada metros abaixo.
- Eu sou seu Deus... – respondeu a criatura com sua voz cavernosa. – Eu vos dei a sua nova vida.
Virei-me, encarei aquele olhar que jamais esqueço. Olho sem vida. Pingos de sangue caíam sobre minha testa, e aquele rosto imóvel, me encarava. Senti que minha alma estava sendo roubada. E ele então... Me soltou.
Passaram-se noventa anos. Hoje tenho mais de cem anos, e me mantenho com a aparência de trinta e poucos. Não vou dizer que minha vida melhorou. Mas não piorou. Eu que pensei em diversas vezes me matar. Estou amaldiçoada a viver eternamente, fazendo de cada dia um dia novo. Fazendo com que pessoas que antes se sentiam mortas durante a vida. Sintam-se vivas... Durante... A .... Morte.