A casa
Baseado na canção The Poltergeist (King Diamond)
Alguns podem dizer que tenho problemas na minha casa. Alguns podem me chamar de louco por morar aqui sozinho. É bem verdade que não culpo quem assim pensa, e até acredito que há tempos eu assim o faria, mas hoje meus conceitos de “estranho” ou “loucura” são bem diferentes, e não tenho a pretensão de que ninguém me compreenda sem que passe pelas mesmas experiências que tenho vivido.
Moro no número 38 de uma das principais avenidas de uma pequena cidade. Essa avenida foi a primeira rua aberta e, ao longo dela, foram construídas as primeiras casas. O tempo passou, surgiram mais ruas, vieram os carros, a luz elétrica, o asfalto, casas foram se multiplicando e o que temos hoje é uma cidade com pouco mais de 50 mil habitantes, na qual o moderno contrasta com o antiquado, nos seus mais de um século de vida.
Desde pequeno lembro-me da velha casa, e das histórias que pessoas contavam, histórias que me amedrontavam enquanto criança. Lembro-me de meus pais falando sobre as pessoas que aqui vinham morar e que pouco tempo ficavam. Era comum que a casa permanecesse bastante tempo fechada. Então alguém a alugava e, logo, podia se ver um caminhão de mudanças retirando os móveis. Os comentários eram sempre os mesmos: havia algo lá, algo que não permitia que família nenhuma se estabelecesse e tivesse paz. Houve até quem dissesse ter visto vultos, à noite, mesmo quando ninguém ali morava. Ruídos eram ouvidos com frequência. E era uma construção bastante grande – os padrões da época – com traços da colonização europeia que levantou esse lugar. Construída com boas madeiras, esperava-se dela que permanecesse em pé por muito tempo, como está até hoje, aliás.
Proporcionalmente, sou tão velho quanto a casa. Moro sozinho, pois nunca me casei. Não tenho filhos. Como a condição de aposentado não me dá direito a grandes confortos, me vi, certo dia, na necessidade de me mudar e, entre tantos preços exorbitantes que encontrei, a velha casa pareceu uma boa opção, já que apresentava um valor módico. É óbvio, leitor, que lembrei das histórias que ouvia ainda criança, mas precisava me mudar, não tinha muito dinheiro e, no fim das contas, era bem crescidinho para acreditar em contos de terror e lendas urbanas.
Mudei-me sem muita hesitação. A casa em si era grande demais para minhas necessidades, já que tenho pouca mobília. Cômodos grandes, sendo quatro quartos, dois banheiros, copa, cozinha, uma grande sala, um sótão e um porão. Espaço demais, porém não tive muita escolha. Apesar de antiga, seu estado de preservação era razoável. Nada mal para uma das primeiras construções da cidade. Tudo foi acertado na imobiliária, pois os proprietários – que ninguém na vizinhança parecia conhecer – moravam longe havia muito tempo. Questionei porque não a desmanchavam e vendiam o terreno, que devia valer muito, mas só me disseram que os donos nem cogitavam a esse respeito. Aparentemente, tinham alguma forte ligação com a velha casa.
Impossível não pensar nas histórias que havia ouvido quando as primeiras noites se sucederam. O silêncio da casa, quebrado apenas pelo teclado do meu computador, era um convite para a imaginação. Prefiro escrever meus textos – meu hobby de aposentado - à noite. Sinto-me mais inspirado, e minhas ideias acabam fluindo com mais naturalidade. Mas, de alguma forma, ainda não me sentia muito confortável.
Passados alguns dias, e já adaptado à casa, não pensava mais em supostos fantasmas. Contudo, na semana seguinte, comecei a ter experiências bastante incomuns. Muitos fatos, na verdade, que me deixaram bastante confuso, porém lembro exatamente a sequência dos mesmos, assim como cada detalhe, e um pouco disso tudo passo a narrar agora.
Já era bastante tarde e eu revisava um texto que finalmente terminara quando ouvi a voz que pedia por ajuda. Tenho certeza de que a frase dizia “Me ajude”. A voz – feminina - não parecia distante, mas era bastante fraca, abafada. Ouvi a frase pelo menos três vezes. Depois do susto, a minha primeira reação foi abrir a porta e procurar alguém do lado de fora, na rua. Constatando que o som não viera de lá, visto que não havia ninguém por perto, vasculhei cuidadosamente a casa, incluindo o porão e o sótão, ambos vazios. A voz havia cessado. Ainda perguntei algumas vezes se havia alguém ali, mas não obtive respostas. Naquela noite, não ouvi mais nada de anormal, porém não consegui dormir, pensando em quem havia me pedido ajuda.
Nos dias que se seguiram, houve bastante barulho, em várias partes da casa. Não vozes. Eram objetos que caíam, coisas que simplesmente eu achava em lugares diferentes de onde havia deixado, cadeiras viradas, gavetas abertas. Acredito ter ouvido passos, muitas vezes, e também senti uma presença, senti que havia alguém comigo, que não estava sozinho. Alguém estaria querendo me assustar? Mas quem? E por quê?
Com aqueles acontecimentos tornando-se cada vez mais frequentes, comecei a questionar a minha sanidade. Comentei com alguns conhecidos. Alguns me disseram que eu não deveria morar sozinho numa casa com tamanha fama, que deveria mudar dali. Outros suspeitaram realmente da minha condição psicológica. Sugeriram que eu buscasse ajuda profissional, psicólogos, psiquiatras... Houve até quem sugerisse que eu pedisse a um padre para abençoar a casa. Os vizinhos não conversavam comigo, evitavam até um simples bom-dia. Eu já não sabia se acatava a sugestão de procurar um psiquiatra – e se eu fosse esquizofrênico? – ou se pedia a algum padre ou pastor que me visitasse e exorcizasse o que quer que lá houvesse. Parei de escrever e comecei a passar as noites sentado numa poltrona da sala, esperando alguma manifestação. Ninguém me visitava, nem amigos, nem parentes. Sentia-me completamente isolado, e os sons que vinham da rua eram um alento. O pouco que dormia era, principalmente, durante o dia.
Numa das noites, adormeci sentado em minha velha e confortável poltrona, mas acordei de repente com a sensação de que não estava só. Fazia muito frio. Não conseguia entender como a temperatura caíra tanto. Devia ser pouco mais das duas horas da manhã. Levantei e caminhei pelo corredor que conduzia aos quartos. Não sabia por que levantei, não sabia para onde ia, agia de uma forma instintiva. Pensei ainda estar sonhando, e continuei caminhando, até que parei em frente aquele que seria o meu quarto. Abri a porta e procurei o interruptor, mas não o encontrei onde deveria estar. Dessa forma, o quarto recebeu apenas alguma luminosidade proveniente do corredor. Parado na entrada do quarto, percebi que havia uma pessoa sentada em minha cama. Pouco podia ser visto, apenas que se tratava de alguém de baixa estatura. Acostumando meus olhos à pouca claridade, finalmente pude perceber que era uma criança, uma menina na verdade, de uns oito ou dez anos. Usava um vestido branco. Fiquei um tempo ali parado, sem saber o que pensar ou fazer, até que ela simplesmente levantou e, correndo, saiu do quarto, esbarrando em mim. Pude perceber, mesmo de relance, que seu vestido estava ensanguentado, o que fez meu sangue congelar dentro das veias. Quem seria? Por que estaria ferida? Como teria entrado na minha casa?
Uma sucessão de perguntas sem respostas, enquanto a menina corria em direção à porta que dava acesso ao porão e sumia do meu alcance visual. Hesitante, segui naquela direção e adentrei o porão. Sentindo meu coração prestes a sair pela boca, acionei o interruptor, trazendo claridade ao recinto e, por aproximadamente trinta minutos, vasculhei cuidadosamente, não só o porão, mas todos os outros cômodos, assim como o sótão. Verifiquei as portas e janelas, todas trancadas por dentro. Naquele momento percebi serem inúteis todas as tentativas de encontrar alguma coisa. Estava claro que lidava com algo além da minha compreensão, e que esse algo não seria encontrado por mim, mas sim me encontraria, assim que o desejasse. Naquela noite, ainda consegui dormir uma hora, ou duas, mas a vi novamente nos meus conturbados sonhos.
Desde o dia em que a vi pela primeira vez, procurei pesquisar a história da casa. Tentei averiguar se aquele teria sido o cenário de algum crime, alguma tragédia, mas nada conclusivo encontrei. Nem registro de morte natural de algum morador havia. Não houve como saber de todos os moradores que por ali teriam passado. Conversei com as pessoas mais velhas da região, que me olhavam desconfiadas e, arredias, já não respondiam mais. Depois de algum tempo, abandonei as pesquisas. Naquele momento, já não me importava o passado, apenas o presente, e quem sabe o futuro. As aparições continuavam e acabei desenvolvendo uma obsessão, uma atração doentia por algo que claramente não pertencia a esse meio, mas mesmo assim optava por permanecer nele. Com grande frequência – todos os dias, para abandonar o eufemismo – eu encontrava objetos fora do lugar, ou ouvia batidas na porta, passos no corredor, sempre à noite. Algumas vezes, acordei no meio da madrugada e a vi parada ao meu lado, como que a velar meu sono. Aquilo tornou-se algo natural para mim. Nunca mais falou comigo. A única vez que ouvi sua voz foi quando chamou por socorro na ocasião em que, digamos, apresentou-se a mim. Desde então, manteve silêncio verbal. Tantas e tantas vezes implorei “fale comigo, fale comigo minha amiga”, sem, no entanto, obter alguma resposta. Passei noites em claro clamando “ eu sei que você está aí”... A convivência se dava dessa forma, nessa estranha relação. Dividíamos o mesmo teto e eu sequer sabia seu nome. Continuava usando o mesmo vestido manchado de sangue e, na maioria das vezes, tinha um tom grave na face, embora, ocasionalmente, tenha percebido certa serenidade em seu olhar. Mas era uma boa ouvinte. Incontáveis vezes passei noites inteiras contando-lhe detalhes da minha vida, confidências, segredos que jamais contara a mais ninguém.
Continuo solitário, pelo menos em relação aos vivos. Não recebo ninguém aqui. Parentes, amigos, vizinhos, todos se afastaram e me evitam. Dizem que sou louco por insistir em ficar... Eu sequer penso na ideia de deixar a casa, muito pelo contrário: Tento ao máximo ser um bom anfitrião. Sempre que a vejo a recebo com um cordial “seja bem-vinda querida”. Preparo sempre, à noite, o jantar para dois. Já se sentou comigo à mesa, mas nunca sequer tocou na comida. De alguma forma, sua presença me traz prazer, conforto e alívio. Seus passos fazem com que me lembre que estou vivo. Quando ouço um objeto cair no chão, ou ser arremessado contra a parede, percebo que ainda existe alguma vida aqui. É um paradoxo interessante: sentir vida com a presença de quem não mais vive... Mas é assim que me sinto, é assim que acontece.
Voltei a escrever. À noite, é claro. Sinto-me como que radiante por retomar minha paixão pela literatura. Tenho muitos textos prontos, alguns inacabados, e todo o tempo do mundo para me dedicar à arte, embora acredite que jamais alguém irá lê-los. A convivência tem sido harmoniosa, uma vez que não me importo mais quando encontro algum objeto quebrado. Somente o silêncio ainda me perturba um pouco. Gostaria de saber por que em uma única ocasião pediu minha ajuda. Gostaria de saber o porquê do sangue no vestido. Gostaria de saber por que caminha até o porão e desaparece. Gostaria de saber seu nome... Muitas perguntas, para as quais parece não haver respostas... Mas sou um bom anfitrião, e não há um dia sem que a receba com um cordial “seja bem-vinda, querida, você pode ficar aqui para sempre”.