NOITE SEM LUA

Algumas pessoas são tão apegadas às comodidades da vida moderna, que simplesmente não aceitam mudanças, sobretudo no que se refere a ter de conviver com as limitações interioranas. Marta, minha esposa, é uma delas.

Ela passara as últimas horas sem sequer olhar para mim, apenas se limitava a acender um cigarro após o outro. Mas apesar das divergências, sempre superávamos as crises. Lucas, nosso filho, dormia no banco de trás. A ardência nos músculos e a dor na cabeça já começavam a me incomodar.

Ainda estávamos longe do destino final. A cidade, na qual eu assumiria as funções de delegado da polícia metropolitana, ficava a cerca de cem quilômetros daquele ponto. A estrada estendia-se até onde a vista alcançava. Em ambos os lados, só havia vegetação fechada. Era como se a via barrenta fosse uma cicatriz no rosto verdejante da mata.

O sol começava a descer no horizonte, quando avistei uma cena inusitada: uma senhora caminhava solitária ao lado das árvores. Nem por um instante, cogitei a possibilidade de encostar, mas Marta insistiu para que eu o fizesse.

Ao perceber nossa presença, a mulher se aproximou junto à janela. Ela usava um manto negro, com capuz, sobre o vestido surrado. O rosto mantinha-se parcialmente oculto, pois seu olhar insistia em buscar o chão. Fiz o que tinha de fazer: ofereci ajuda. A estranha, por sua vez, não demonstrou grande interesse em minhas palavras. Apenas me perguntou se eu teria algum tipo de fumo para lhe dar.

Antes que eu pudesse negar, Marta se antecipou e ofertou o cigarro que trazia nos lábios, aconselhando à andarilha que fizesse bom uso, pois aquele era o último que tinha. Fiquei duplamente feliz com aquele ato, afinal, eu não teria de levar a estranha como carona e, principalmente, porque ficaria livre da fumaça por um bom tempo.

A velha agradeceu com palavras curtas. Sem ter mais o que fazer, peguei novamente a estrada. Enquanto saía, fitei o espelho retrovisor e notei que a andarilha acenava diretamente para mim. Percebi, então, as marcas de um rosto extremamente sulcado aliado a um sorriso desfigurado e cínico. Senti repulsa, mas não foi a impressão ruim o que me atordoou, na verdade, o que me causou incômodo foi a nítida sensação de que sua imagem me acompanhava.

Com a chegada da noite, fomos recebidos por um céu escuro, desprovido de lua ou estrelas. No início, o sono ainda não me abraçava. No entanto, a sucessão repetitiva e monótona do cenário parecia acender as chamas do cansaço. O ruído cadenciado do encontro entre os pneus e o barro funcionava como um combustível para essa mistura. O correto seria encostar o veículo, mas não dei ouvidos aos apelos do corpo.

Por um bom tempo, os faróis nada mostraram, além do esperado vazio em meio à escuridão. No entanto, como se fosse uma miragem causada pela irresistível hipnose, o caminho à nossa frente foi, de súbito, invadido por algo insólito. Não sei se a minha capacidade de discernimento estava afetada pela situação, mas tive a nítida impressão de que aquilo que ocupava a estrada, como um obstáculo intransponível, assemelhava-se aos contornos de um improvável porco do mato, embora de proporções assustadoras. Os olhos do bicho faiscavam como brasas vivas.

Num ato reflexo, acionei os freios e girei veementemente o volante. O veículo deslizou para o lado esquerdo, ao passo que a inusitada criatura escapava velozmente no sentido oposto, rumo à vegetação cerrada.

O movimento brusco fez com que a cabeça da minha esposa se chocasse contra o pára-brisa, ao passo que Lucas fosse lançado de encontro às costas do banco. O menino não se feriu, mas um filete escarlate escorreu pela testa de Marta. De qualquer forma, não parei de imediato para socorrê-los, pois o instinto inerente ao ofício gritava em meus ouvidos. Eu sabia que o perigo nos rondava.

Desci do veículo com a arma em punho, o instinto me guiava. Lancei o alcance da lanterna na direção de onde supus que a criatura estivesse escondida. Mas, ao ser tocada pela luz, a escuridão replicou com uma iluminação própria, algo inacreditável. Eram duas órbitas amareladas, de um brilho intenso, muito diferente do faiscar avermelhado emitido pelos olhos do porco. Invariavelmente, uma pessoa recua ao ser ameaçada por uma arma, assim como os animais se sentem acuados diante da presença humana. No entanto, aquilo no meio do mato não parecia intimidado por mim, pelo contrário, parecia me encarar com um ar desafiador. Instintivamente, recuei. E, talvez, o dono daquele olhar tenha entendido esse recuo. A luminosidade começou a ceder assim que dei o primeiro passo para trás.

Senti um toque gelado no pescoço, e, inadvertidamente, pressionei o gatilho da arma. O disparo provocou uma debandada de pássaros. Marta, com a mão em meus ombros, me chamava de volta ao automóvel. Ela não percebera a iluminação sobrenatural, suspirei com o fato. Lucas não parava de chorar. Antes de retornarmos, joguei o facho de luz à nossa frente, e só então notei algo intrigante: havia um rastro formado por estranhas pegadas seguindo paralelo à trilha deixada pelos cascos do porco. Entretanto, as curiosas marcas, diferentes de tudo que eu já havia visto, pareciam seguir para o lado oposto da estrada, não para a margem onde avistei o fenômeno luminoso.

Um assobio estridente ecoou pelo ar, um som perturbador. Minha esposa me puxou pelo braço, e desta vez resolvi segui-la.

Ganhamos novamente a estrada. Com um lenço sobre o supercílio, Marta não parava de se queixar do ferimento recém adquirido. Por sua vez, Lucas encolhia-se em seu canto, abraçado aos joelhos. Um enxame de furiosas abelhas parecia ferroar minha cabeça, mas não era a dor a razão do incômodo, era a incerteza o que me perturbava. Quarenta minutos se passaram sem qualquer alteração no cenário. Se antes eu já relutava em parar na estrada para descansar, com o incidente era praticamente impossível questionar tal possibilidade.

Entretanto, como se a sorte resolvesse nos oferecer sua face mais amável, percebi os indícios do que parecia ser um milagre. Os mapas não falavam nada sobre uma cidade naquela região, mas sinceramente, não estávamos em condições de recusar uma oferta generosa. E, antes mesmo de entrarmos no vilarejo, fomos saudados por uma placa iluminada por lampiões: vagas para repouso.

Encostei o veículo ao lado da construção principal, um sobrado de madeira muito bem iluminado e que, apesar da arquitetura antiga, apresentava um acabamento de aparência recente, sobretudo pela tinta vermelha que o revestia.

Apesar do horário avançado, notei uma movimentação nos arredores do estábulo nos fundos da propriedade. Pedi para Marta entrar com Lucas, enquanto eu recolhia a mala com os componentes para o pernoite. Contornei o automóvel no intuito de chegar ao bagageiro. Aguardei até que os dois entrassem. Eu não queria preocupar Marta, mas o incômodo por conta do ocorrido na estrada ainda persistia. De alguma forma, parecia que havia algo pesado no ar desde que entramos naquele trecho da jornada, um tipo de mau agouro que insistia em não se dissipar. Essa impressão pairara à nossa volta durante as últimas horas, mas, até o incidente, permanecera indecifrável, visualmente falando.

Talvez, com alguém naquele estábulo, eu conseguisse uma solução para minhas dúvidas sem envolver Marta no assunto. Pensando assim, decidi falar com o funcionário que trabalhava no local, um som de marteladas vinha daquela direção.

Uma leve brisa soprava às minhas costas. O alento se originava da parte lateral da propriedade, exatamente de onde corria um rio, cujo leito era ladeado numa das margens por uma parede espessa de árvores.

Conforme eu andava, percebi que o sopro, de início agradável, tornava-se cada vez mais intenso. Folhas e galhos, que esparramavam-se em todas as direções na superfície do terreno, começaram a se unir num gigantesco vórtice espiralado. Era difícil enxergar um palmo diante dos olhos. Seguramente, estes seriam arrancados da face se as mãos não fossem postas em proteção, visto que o barro seco e a areia açoitavam-me a pele como um chicote afiado.

Coloquei-me de joelhos, pois já não era possível caminhar. Uma mescla de sons distintos, mas ao mesmo tempo unidos, parecia dominar o ar. Algo como uma gargalhada esganiçada soava próximo, ao ponto de arranhar-me os tímpanos. Um trotar avassalador parecia circular o lugar onde eu estava. Uma tocha ou algo do tipo acompanhava o som produzido pelos cascos. A todo o instante, um silvo agudo se alongava em intervalos intermitentes. Era uma sinfonia dos infernos. Achei que fosse enlouquecer. Porém, da mesma maneira que surgira, o fenômeno fora consumido pelo mistério de uma súbita não existência.

A nuvem se dissipou. Todo o meu corpo tremia. Apenas uma fraca iluminação bruxuleava no quase completo negrume do estábulo. Por um instante, hesitei em prosseguir, mas a minha natureza impedia esse tipo de atitude. Postei-me de pé e continuei.

Chamei por alguém, o silêncio fora a resposta. Involuntariamente, apertei o cabo do revólver. Mas a revelação que viria a seguir mostrara a precipitação do ato. O toque da lamparina atrelada ao alto de um tronco esguio clareou os traços do que seria um menino. Aproximei-me lentamente, e só então percebi que, de fato, não se tratava de uma criança. A despeito da estatura reduzida, não havia dúvidas de que era um adulto quem segurava a vara iluminada. O sinal de alerta novamente se espalhou em mim.

Quando ele desceu o lampião, pude, então, ver sua fisionomia com maior nitidez. Seu rosto era rude, mas não marcado pelos impiedosos sinais do tempo. O mesmo trapo que lhe envolvia a parte inferior do corpo subia por suas costas em forma de tira, enrolando-se na desproporcional cabeça, cobrindo-a totalmente como um capuz encarnado. Se não fosse pela chama, seria impossível perceber sua presença, tamanha era a facilidade com que se mesclava à escuridão.

À primeira vista, ele insinuava um ar inofensivo, até mesmo inocente. Mas, quando levou à boca uma espécie de cachimbo e soltou uma fumaça fétida no ar, seus olhos ganharam um brilho diferente, um semblante maléfico por trás de um sorriso dissimulado. Recuei por puro reflexo, o que me levou ao chão pelo movimento abrupto. Saquei e apontei o revólver, mas nada mais enxerguei. Numa lufada mais contundente do vento, a chama se apagou, tornando o estábulo no mais inóspito dos ambientes. Levantei-me da melhor maneira que pude. Ouvi novamente os silvos, mas estes pareceram se distanciar aos poucos, até o completo desaparecimento.

Saí rapidamente do estábulo, um pouco de luz traria alento ao meu coração. A noite continuava sem luar, um céu tão vazio quanto minhas perspectivas. Eu estava só sob o manto da noite. Em meu peito, cada vez mais crescia a certeza de que algo ruim nos espreitava. Marta e Lucas. Era preciso protegê-los desse mal que nos seguia.

O local que servia de recepção estava vazio, pelo menos foi isso que pensei assim que ganhei as dependências. Mas, não foi preciso tocar a campainha sobre o balcão de madeira. Sem que eu percebesse, uma senhora, cuja distinção saltava aos olhos, apresentou-se como se já estivesse ali, mesmo que eu não a tivesse visto. Delicadamente, ela me indicou para onde seguir a fim de encontrar minha família. O verde tétrico dos seus olhos me seguiu até as escadas.

Encontrei Marta junto à janela. Ela fumava mais um cigarro, enquanto um copo com uma bebida quente repousava sobre a marquise. Certamente, deveria ter conseguido o vício na recepção. Porém, desta vez, achei por bem não reclamar. Lucas dormia na única cama do quarto, não seria prudente uma discussão. Tive vontade de compartilhar minhas inquietações, mas qualquer coisa que eu dissesse poderia e certamente seria usado como um argumento contra mim mesmo.

Recostei-me no abraço de uma poltrona de palha, enquanto Marta adormecia ao lado do menino. Um impulso muito grande me dominava, no sentido de ganhar a noite e dirigir até o fim daquela estrada maldita. Mas eles precisavam descansar, e, além disso, invariavelmente a escuridão e o mal caminham lado a lado. Talvez fosse melhor esperar pela luz do sol antes de tocar naquele chão barrento outra vez.

O quarto estava tomado pelo silêncio. O único som que chegava aos meus ouvidos vinha da queda d`água do rio. Eu não queria dormir. Estava decidido a velar o sono da minha família. Por mais que eu quisesse acreditar que as paredes fossem capazes de oferecer alguma proteção contra a estranha aura do lado de fora, estar alerta com a arma em minhas mãos me trazia mais confiança.

Frequentemente, o sono manipula nossas vontades como as palavras cativantes de um anjo. Só não sei dizer se era realmente um som celestial o que comecei a ouvir. No início, o canto ecoava mesclado ao sibilar arrastado das águas, mas, pouco a pouco, a melodia entoada pela voz feminina destacou-se do curso do rio e por um período indeterminado foi a única coisa que ouvi. Então, fui vencido pelo chamado irresistível...

Não sei por quanto tempo permaneci adormecido, só o que posso garantir é que não houve tranqüilidade alguma no sono. Eu via a minha própria imagem adormecida na cadeira, totalmente entregue a vontade de uma visitante desconhecida. Não era dela a voz melodiosa que me arrastara ao sono. A mulher que descia pelo telhado não falava ou tampouco cantava. Só o que saía da boca, permanentemente escancarada, eram gargalhadas metálicas e agudas. Apoiando-se sobre os braços da cadeira, ela me encarava de modo desafiador. Eu tentava me mexer, mas era impossível. Sem qualquer aviso, ela saltou a grande altura e despejou o peso do próprio corpo sobre meu peito. Nunca senti semelhante dor. Ainda arqueada sobre mim, ela segurou meu pescoço com unhas longas e afiadas, e passou a exercer forte pressão para baixo.

Eu tentava gritar, mas a voz não vinha, simplesmente porque faltava o ar em meus pulmões. Não há tortura pior do que assistir a iminência da própria morte estando completamente de mãos atadas. Quanto mais ela pressionava, mais as trevas tomavam minha visão. Perder os sentidos seria questão de tempo, porém, as pernas da poltrona não aguentaram tamanha força e foram ao chão. O impacto me fez despertar do pesadelo. Entretanto, eu estava realmente no assoalho. A cadeira estava, de fato, quebrada. Vestígios de sangue misturavam-se ao suor em meu pescoço. A julgar pela dor, algumas costelas deveriam estar partidas.

A experiência inexplicável poderia, por si só, responder por toda a aflição que me dominava. No entanto, o terror estava apenas dando uma pequena amostra de sua força. Quando me levantei, fui assaltado pela mais terrível das constatações: Marta e Lucas haviam desaparecido!

Correndo como um louco pelo quarto, passei a chamar por eles, mas ninguém respondeu. Uma coruja de plumagem negra me observava da sacada, senti o mau agouro em seu olhar. A ave soltou um assobio peculiar, estridente. Apontei o revólver em sua direção e disparei. O animal desapareceu na noite sem ter sido atingido.

Corri até a sacada no intuito de vasculhar o ambiente externo. Não havia sinal da minha família, mas o local não estava vazio. Havia uma mulher voltada para a margem do rio. Nenhuma roupa revestia seu corpo. Longos cabelos aloirados escorriam pela superfície alva de suas costas.

Todos os quartos da parte superior do sobrado estavam de portas abertas e totalmente vazios, inclusive pela inexistência de qualquer móvel ou decoração. Desci as escadas o mais rápido que pude. Também não havia ninguém na recepção, bem como nas demais dependências do primeiro pavimento. A casa estava abandonada.

Corri até o local onde eu havia estacionado, mas fui tomado por mais uma surpresa: a lataria do veículo estava totalmente destruída. Inúmeras marcas redondas e fundas preenchiam a estrutura metálica. Pegadas similares aos danos marcavam o solo e seguiam num rastro na direção do rio. Lembrei-me da mulher. Se ela não estivesse envolvida em toda essa insanidade, certamente corria perigo.

Não havia qualquer sinal da criatura responsável pelas pegadas, assim como da estranha. Segui o curso do rio rumo à mata fechada, então ouvi um choro infantil. Lucas, pensei. Meus pés afundavam na lama, enquanto eu tentava correr. O círculo amarelo da lanterna pouco revelava da escuridão. Os gritos da criança aumentavam. Então vi, em relances, os cabelos louros da mulher entre as folhas. Pedi que me esperasse, mas fui ignorado.

Cheguei num ponto em que o rio seguia pela reentrância de uma gruta. A mulher entrou por ela, e era de lá que vinham os gritos. Segui cautelosamente pela trilha de cascalhos, ao lado do curso d`água. Joguei o facho de luz para baixo e, estarrecido, constatei que o tapete sob meus pés era, na verdade, um emaranhado de fragmentos ósseos. Não havia mais choro ou grito. Chamei por Lucas, nenhuma resposta. Quanto mais eu entrava pela caverna, mas era invadido por um odor intenso, algo que me lembrava o covil de alguma fera.

Cheguei num pequeno lago. O rio deveria seguir de forma subterrânea a partir daquele ponto, visto que o curso terminava ali, numa área abobadada. Uma iluminação indireta e avermelhada se insinuava discretamente. Havia uma pilha de crânios e ossos humanos recostada num canto, assim como uma imensa caldeira de argila.

Circulei a estreita faixa de terra com o corpo rente às rochas. Segui lateralmente até esbarrar em algo que, imediatamente, se agarrou em minhas pernas. Lancei os olhos da lanterna: uma criança, mas não era o meu Lucas. O menino tremia incontrolavelmente. Ele tinha o olhar fixo numa direção. Apontei a iluminação esperando encontrar a mulher, mas não foi o que vi.

Os olhos de uma imensa figura reptiliana saltavam do espelho d`água. Apertei o gatilho na ânsia de que o chumbo pudesse acabar com aquele horror. A criatura soltou um urro rouco e estranhamente humano, um tom levemente feminino.

Agarrei o menino e corri de forma atabalhoada pela trilha de ossos. Eu sentia que estava sendo perseguido, a água se agitava às minhas costas, mas não olhei para trás em busca de confirmação. Simplesmente segui o frescor do ar limpo em detrimento à putrefação que eu queria esquecer. Na entrada da gruta, algo agarrou minha perna. Larguei o garoto e pedi que ele corresse pela vida. Disparei mais uma vez contra a criatura, a qual, finalmente pude ver por completo: um gigantesco e disforme jacaré que tentava, com a boca, me arrastar para o fundo do rio.

Por mais que minha carne estivesse queimando pela ação ininterrupta daqueles dentes, procurei manter a calma. Segurei o cabo do revólver com as duas mãos, procurando não tremer e mirar no único ponto vulnerável naquela armadura de placas duras: os olhos. Curvei o indicador, liberando o projétil de encontro ao alvo. Estraçalhada, uma das órbitas tornou-se uma massa semi-gelatinosa lançada ao ar. A criatura abriu a mandíbula, o que me permitiu puxar a perna.

Arrastei-me pelo terreno pantanoso até onde pude, até que as forças me abandonassem de vez. Nunca fui religioso, mas pedi aos céus para que o demônio não me seguisse. Uma fumaça densa vertia do ferimento em minha perna, perder os sentidos seria questão de tempo, o que acabou acontecendo.

Acordei com o toque do sol queimando meu rosto. Só Deus sabe como sobrevivi. Eu precisava encontrar minha família. O ferimento ainda doía, mas ao menos não sangrava, estava cauterizado. Apenas uma bala restava no tambor do calibre trinta e oito. A estalagem ardia em chamas, assim como o estábulo. Naquela altura, o carro também era consumido pelo fogo. O que havia acontecido? Por mais que eu tentasse, não encontrava respostas e nem encontraria se ali ficasse.

Mancando, caminhei até a estrada barrenta. Maldita estrada! Com a luz do dia a meu favor, continuei a andar rumo ao vilarejo. Parecia que muitas pessoas haviam cruzado o local, a julgar pelas marcas no solo.

Num primeiro momento, julguei que a cidade estava vazia, não havia uma viva alma nas ruas de pedra. Porém, caminhando um pouco mais, comecei a ouvir um clamor de muitas vozes e, ao dobrar uma esquina, fui tomado por uma cena aterradora.

No centro da praça, uma multidão cercava uma pessoa amarrada a um tronco. Abri espaço pela turba, perguntando o que havia acontecido. Um velho, com a insanidade escorrendo pela boca, afirmou, aos brados, que alguém havia libertado o demônio. Era noite sem lua, época em que as portas do inferno se abriam. Ninguém deveria andar pelas ruas nessa noite, ninguém.

Muitas dúvidas dominavam minha mente, mas uma coisa era certa: eu, como representante da lei, não poderia permitir que fizessem justiça com as próprias mãos, ainda que aquela mulher fosse, de fato, a responsável pelas aberrações que eu havia testemunhado. Além disso, eu nutria a esperança de que ela pudesse ter as respostas sobre o paradeiro da minha família.

Pendurada pelos braços, a mulher mal conseguia sustentar o peso do corpo. Os joelhos arqueados quase tocavam o chão, o qual, ao redor do tronco, estava lavado pelo sangue da prisioneira. Os trapos negros que lhe cobriam o corpo estavam retalhados. De cabeça baixa, ela não encarava seus algozes. Aproximei-me e, ao perceber minha presença, ela corrigiu a postura derrotada. Quando nossos olhares se cruzaram, tudo começou a fazer sentido. Eu já tinha visto aquele rosto sulcado antes, era a velha senhora da estrada. Mas ela estava diferente, aqueles olhos exibiam os mesmos contornos, o mesmo verde tétrico, da proprietária da estalagem. Mas, como era possível? Seriam as duas a mesma pessoa?

Como se pudesse ler meus pensamentos, a mulher meneou a cabeça afirmativamente, enquanto me oferecia um sorriso mutilado e zombeteiro. Antes que eu pudesse abrir a boca, ela me disse, com a voz entrecortada como os piados de uma ave agourenta, que dar um presente a ela, numa noite sem lua, era o mesmo que oferecer um convite às criaturas da noite. Imediatamente, veio à minha mente o cigarro que lhe fora ofertado por minha esposa.

Tive vontade de fazer uso da última bala em minha arma, mas eu precisava saber o que havia acontecido com Marta e Lucas. Então, novamente, ela se antecipou aos meus questionamentos e insinuou para que eu pegasse algo que ela guardava numa das mãos.

Embora cético, fiz exatamente o que a velha dissera. E, ao tomar o conteúdo de suas mãos, saltei para trás tamanho o susto. Faíscas começaram a se espalhar pelo corpo da bruxa, numa espécie de combustão espontânea. A maldita começou a queimar diante da perplexa multidão.

Muitos começaram a apedrejá-la, enquanto as chamas a consumiam. Entre silvos esganiçados, gritos e gargalhadas, pude ouvir claramente a voz da mulher me dizendo: “todas as respostas chegam com a noite”.

Corri, aos prantos, daquele lugar maldito. Caminhei durante todo o dia pelo sentido inverso da estrada, mas não consegui vencê-la, tampouco encontrei sinal de quem eu buscava. A noite finalmente chegou, e com ela uma bela e radiante lua cheia. Sentei-me numa pedra. Revirei os bolsos a fim de alcançar o que eu havia tirado da infeliz.

Numa das mãos, o revólver. Na outra, a herança da bruxa. De um lado, a estrada sem fim. No outro, nenhum fim para a estrada. No peito, a dor da perda. Nos olhos, o conforto das lágrimas. A resposta? Caminhava em minha direção.

Com a cabeça baixa, em vestes negras e surradas, ela ergueu a mão para mim. Depositei em sua palma o fumo apodrecido pertencente à bruxa.

Eu não precisava olhar em seu rosto para reconhecer a pessoa que eu tanto amava. Ela iria perambular pelas ruas semeando a peste e mendigando fumo, esperando pelo céu negro para abrir, mais uma vez, as portas do inferno. Ela viveria a maldita sina que tomara para si quando resolvera trocar presentes com a estranha. Eu nunca mais veria minha família novamente. Recusei-me a pensar no que acontecera ao meu querido filho, embora, no fundo da minha alma, eu soubesse. A fome dos demônios nunca tem fim.

Eu poderia ter encerrado a existência de Marta com a última bala que me restava, mas eu a amava demais para isso. Então, senti o toque gelado da arma em minha cabeça e, sem hesitar, apertei o gatilho. Não havia mais nada para mim neste mundo.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 28/01/2016
Código do texto: T5526524
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