KAMILLE

Para minha amiga Camila, a Rainha de Elfame.

18:00 h.

Kamille saiu da cama e disse a si mesma que aquele final de semana não seria igual aos outros. Estava disposta a recuperar o tempo perdido, e a noite de sexta-feira era ideal para ir à forra contra a solidão que viera de mansinho e fizera morada em seu coração e em sua vida. Chega de ficar em casa assistindo TV. Chega de comer pizza requentada. Chega de ficar se revirando na cama fria, madrugada adentro. Aquela era a noite em que ela estava disposta a correr o risco que fosse necessário para mudar sua vida. Pensou nas embalagens lacradas dentro do freezer, e sentiu nojo. Quanto tempo já fazia? Quase um mês... Um mês! Ela não aguentava mais aquele gosto metálico em sua boca, seu corpo reclamava cada vez que ela tinha que usar aquela droga...

Escolheu uma roupa bonita, porém discreta, e entrou no banho. Caprichou em cada detalhe, a noite tinha de ser perfeita. Uma gota de perfume, um brilho, um batom. Pronto. Não se preocupou em olhar-se no espelho. Sabia que estava irresistível.

- Vamos à luta!... - disse em voz alta, e saiu.

19:00 h.

Paulo ensaiou seu melhor sorriso conquistador, no espelho quebrado do quarto apertado e imundo, e ficou satisfeito com o que viu. Aquela era sua última chance de pagar o que devia, o 'Mercador', como era conhecido o agiota a quem devia uma quantia razoável em dinheiro, havia dado uma última oportunidade a ele. Não podia falhar, tinha de conseguir a grana esta noite, de qualquer maneira. Sabia muito bem o que acontecia com quem não pagava ao Mercador: acabava conhecendo o fundo da baía da Guanabara, e isso ele não estava disposto a fazer. A sorte, sua velha companheira, parece que o abandonara por completo. Perdera todo o dinheiro nas mesas clandestinas de um cassino, nas imediações do cais do porto. Agora, tinha que correr atrás. Fez o sinal da cruz, apertou o cordão que levava no pescoço e seu inseparável companheiro de malandragem, um punhal de cabo de madrepérola, presente do seu falecido pai.

- E seja o que Deus quiser... - disse para si mesmo, e saiu.

20:00 h.

O Mercador chamou seu braço direito nos negócios e fechou a porta. Estavam nos fundos de uma birosca, o lugar escolhido por ele como quartel-general. Dali comandava todo o seu exército de malfeitores, que cuidavam desde o jogo do bicho até o cassino clandestino do cais do porto, passando pela agiotagem e pela prostituição. Parecia estar mais preocupado que de costume, de modo que Mata-rindo tratou logo de atender ao chamado do chefe antes que ele começasse a berrar. Sentou-se e ficou aguardando, que ele não era besta e tinha muito amor à sua vida.

Mercador jogou uma bala de prata em cima da mesa e Mata-rindo prontamente a pegou.

- Até o fim da noite. Se ele não pagar, você já sabe o que fazer. - disse simplesmente.

Mata-rindo abriu um sorriso que fez juz ao seu nome, ao ler o que a bala trazia escrito: Paulo.

- Com prazer chefia... Esse eu faço questão de apagar!...

- Então vá logo! O que está esperando? Você já sabe onde encontrá-lo. Desapareça da minha frente...

Mata-rindo engoliu o sorriso e se arrancou dali.

21:00 h.

Dolores, a cantora, estava no camarim da boite, preparando-se para a apresentação dali a pouco. A garganta não estava em seus melhores dias, por isso Dolores se preocupava em manter a boca fechada o maior tempo possível. Não respondeu quando a encarregada dos camarins lhe perguntou se queria água, e isso gerou um conflito, pois a pequena mulher achou que estava sendo esnobada e começou a desfiar um rosário de piadas indecorosas sobre cantoras de cabaré que sentiam-se com o rei na barriga. Procurando não ouvir o que a outra dizia, Dolores concentrou-se em repetir mentalmente o programa daquela noite. Repassou todos os números que iria apresentar e suspirou aliviada quando a encarregada saiu, batendo a porta com força. Pensava em Paulo. Será que viria hoje vê-la cantar? Ela não podia aguentar-se de tanta saudade. Há duas semanas ele não a procurava e nem atendia às suas ligações... Tudo por causa daquele ciúme estúpido! Também, quem manda, passar com aquela sirigaita loira bem dabaixo do seu nariz, o que ele estava pensando? Ela não era dessas que levam desaforo para casa, não!... Ah, mas 'a saudade mata a gente, morena...' - cantarolou distraída.

22:00 h.

Às dez da noite, a fila em frente à boite já dobrava o quarteirão. Lugar da moda naquele verão, a Riniceront's era frequentada principalmente por homens endinheirados que queriam fugir da rotina do casamento e quarentonas desesperadas, loucas por uma noite de prazer com alguém vinte anos mais novo. E, claro, por caçadores, essa raça que sempre infesta os lugares da moda em busca da sorte grande. Como em todo lugar da moda que se preze, não havia ingresso ou convite. Um homem de confiança do proprietário se postava ao lado da porta e escolhia quem entrava e quem não entrava. O interessante é que não havia um padrão para essa escolha. Alguém que fora barrado cinco, seis vezes, poderia na sétima tentativa se dar bem e entrar. Ou não. O homem da portaria, como ficou conhecido, se divertia bancando o Deus. É claro que, como em qualquer lugar, ter uma boa aparência ajudava. Mas não era tudo. Kamille estava quase chegando à porta e ficou receosa de não conseguir entrar. Mas o homem a olhou, deu um sorriso evidentemente impressionado e fez um sinal para que entrasse.

Ela deu um suspiro de alívio e transpôs a porta de bronze que separava o inferno, na rua, do paraíso, no interior da boite. Tudo era decorado com extremo bom gosto. O ar condicionado central funcionava às mil maravilhas, funcionários engravatados passavam com bandejas cheias de copos ou petiscos variados. O local já estava repleto, apesar de aberto há apenas alguns minutos. Kamille caminhou entre homens bem vestidos e mulheres cheias de pintura no rosto até encontrar uma mesa vazia, próximo ao palco.

Enquanto isso, ainda do lado de fora, Paulo chegava em frente ao homem da portaria. Tudo dependia agora da sua sorte. Se não conseguisse entrar, adeus! Poderia encomendar o caixão. O homem percebeu o medo nos olhos de Paulo e isso foi o suficiente para resolver se divertir um pouco. Fez o sinal de negativo com o queixo. Paulo tentou então, pela ordem, argumentar, subornar e xingar o homem, tendo conseguido apenas com que dois leões de chácara o pegassem cada um por um braço e o atirassem longe.

22:20 h.

A uma distância segura, Mata-rindo observava com interesse a tentativa frustrada de Paulo para entrar no Riniceront's. Sentia por ele uma antipatia gratuita, que só aumentava com o passar do tempo. Talvez fosse aquele ar de superioridade que sempre trazia estampado no rosto, talvez fosse porque ganhava as mulheres mais bonitas sem fazer nenhum esforço, coisa que ele, Mata-rindo, jamais conseguia, o fato é que odiava Paulo do fundo do seu coração e esperava pela oportunidade de matá-lo há tempos.

Por isso, quando o viu encaminhar-se para o beco ao lado da boite, teve uma ideia - "Ele não vai conseguir entrar, consequentemente, não vai ter o dinheiro para pagar o Mercador. O que me impede, então de matá-lo aqui mesmo?" - pensou.

Viu Paulo esgueirar-se pelo beco, tentando forçar a porta por onde entravam os funcionários da cozinha. Sacou sua pistola, acoplou o silenciador, pois não queria chamar a atenção da multidão em frente à boite, fez pontaria e atirou. Um gato desavisado que passava em cima do muro, vinte metros adiante, soltou um grunhido e caiu morto. Mata-rindo não notou. Paulo também não. Estava ocupado demais tentando arrombar a porta. Por um golpe de sorte, ela estalou e abriu, e ele desapareceu pela abertura bem no momento em que Mata-rindo preparava-se para seu segundo tiro.

- Droga! O filho da mãe conseguiu entrar... - disse, desistindo de fazer mira.

22:45 h.

Kamille já havia bebido duas taças de champagne Dom Perignon quando seus olhos pousaram na figura simpática de Paulo. Observou atentamente seu rosto, seus olhos, e foi descendo pelo corpo bem cuidado de nadador, largo nos ombros e fino na cintura. Gostou do que viu. Paulo sentiu-se observado e seus olhares se cruzaram pela primeira vez, caça e caçador frente a frente. Ele sorriu, ela retribuiu, e em dois minutos já conversavam como velhos amigos.

Paulo estava certo que sua sorte voltara com força total. Primeiro foi a porta dos fundos que abriu quando ele já estava quase desistindo. E agora isso... Uma gatinha deliciosa caíra em seu laço. Não precisaria aturar uma balzaquiana tentando se passar por ninfeta, nem precisaria mentir dizendo o quanto ela era linda. Kamille era o sonho de consumo de qualquer golpista: jovem, bonita, rica, ingênua... E com um delicioso sotaque estrangeiro.

- Então, deixe-me ver... - disse, após mais um gole de champagne - Se você não é francesa, não é americana, nem alemã... Já sei, sueca! Você é sueca

- Nã, nã, você errou de novo...

- Tá legal, tá legal, eu entrego os pontos. Afinal, de onde você veio?

- Eu sou russa.

- Russa?... Puxa, eu nunca adivinharia

- De verdade mesmo, eu sou soviética, pois o meu passaporte ainda é da antiga União Soviética. Vim para o Brasil pouco antes da mudança que aconteceu no início dos anos noventa e como nunca mais saí do seu maravilhoso país, nem me dei ao trabalho de trocar de passaporte.

Aos poucos, Paulo ia se inteirando sobre a vida de sua vítima, devagar, sem levantar suspeitas.

- Mas você faz o quê?

- Eu? - ela sorriu - Vamos dizer que vivo de rendas...

Os olhos dele brilharam de satisfação ao ouvir aquilo. Sua voz era puro mel quando disse:

- Kamille, acho que estou me apaixonando por você...

23:00 h.

Quando o mestre de cerimônias apresentou a grande atração musical da noite, Dolores apareceu no palco usando um vestido preto que lhe deixava metade dos seios fartos à mostra. A primeira coisa que percebeu foi Paulo, bem ali perto, com uma branquela que parecia estar se divertindo em sua companhia. Começou a cantar, mas não tirava os olhos do casal da mesa à esquerda do palco. Kamille percebeu, em poucos minutos, a insistência da cantora em observá-los conversando.

- Por que ela não tira os olhos de você? - perguntou.

Paulo olhou para Dolores, e desdenhou:

- Não ligue, está com ciúmes. Mas não tenho nada com ela.

Kamille olhou novamente para Dolores, que apertava o cabo do microfone como se fosse uma arma, pronta para desferir um golpe mortal.

- Você tem certeza? Ela parece bem... Apaixonada.

- Bobagem, meu bem. Não dê atenção a ela. Quem precisa de atenção aqui sou eu...

- Uma mulher reconhece quando é alvo da inveja de outra. Ela gostaria de estar aqui, no meu lugar.

- Mas eu não a quero aqui em seu lugar. Eu quero você. Venha, vamos dançar um pouco.

Ele praticamente a arrastou para o meio do salão, onde estariam à salvo dos olhares indiscretos de Dolores, misturados aos outros casais que já lotavam a pista de dança.

23:30 h.

Apesar de extremamente feio, baixinho e mal-vestido, Mata-rindo não teve maiores problemas para entrar. Tudo porque o Mercador era um dos sócios do Riniceront's, e ele já era conhecido do homem da portaria. Demorou um pouco para chegar ao bar, e dali procurou um lugar de onde tivesse uma boa visão de todo o salão. Pediu uma cerveja e ficou bebericando, enquanto esquadrinhava com os olhos, procurando localizar Paulo. Seu olhar deteve-se em Dolores, que a essa altura contorcia-se, tentando achar o casal na pista de dança, ao mesmo tempo em que esforçava-se para não errar as letras das canções que interpretava. As pessoas já estavam achando muito estranhas as músicas tocadas pela orquestra naquela noite. A crooner parecia não estar passando bem, a julgar como esquecia as frases e parava de cantar repentinamente. Mas para Mata-rindo, era a voz mais bonita de toda cidade, ele sempre tivera um fraco por Dolores. Esse era mais um dos motivos para odiar Paulo, sabia que eles estavam tendo um caso. Mas isso iria acabar em pouco tempo, e ele a teria ao alcance de suas mãos.

Finalmente localizou Paulo dançando com uma garota muito bonita.

- Porcaria, mas como ele consegue?... - praguejou baixinho - Mas eu não vou permitir que ele se safe dessa, ah, não vou não!!!

00:40 h.

A certa altura da noite, Mata-rindo viu quando Paulo chamou o garçon e pediu a conta. O homem voltou cinco minutos depois e Paulo, com uma cara de pau digna de fazer inveja a um jacarandá, entregou a comanda a Kamille. Ela sorriu, fez o cheque, e os dois saíram em direção à porta da frente. Mata-rindo tratou de pagar as cervejas que consumira e foi atrás. O casal entrou no carro popular que Paulo arranjara emprestado com um amigo para a ocasião e arrancou rumo à zona sul da cidade. Mata-rindo correu até seu chevette 85 caíndo aos pedaços e tratou de segui-los.

Na boite, ninguém entendeu quando a cantora largou o microfone no chão e saiu correndo em direção à saída.

01:25 h.

Kamille deixou Paulo no sofá da imensa sala e desapareceu pelo corredor. O rapaz, assim que se viu sozinho, tratou logo de levantar-se e começou a passear, deslumbrado, entre os móveis de primeira e objetos de arte que adornavam o cômodo. Na estante, várias estatuetas que ele reconheceu como de excelente procedência; na parede, quadros de reconhecidos pintores nacionais e estrangeiros; uma televisão de pelo menos 50 polegadas e um som de dar inveja a qualquer Dj completavam o panorama que deixava o golpista extasiado de tanto prazer. Isso sem falar na dona do apartamento. Não fora difícil convencer Kamille a saírem mais cedo da boite, até achou fácil demais. Atribuiu isso ao fato dela estar atravessando uma fase de carência amorosa, mesmo sem compreender como uma mulher do nível de Kamille podia ficar uma única noite sem namorado.

Tão feliz com a sua sorte grande estava, que não atentou para dois detalhes que seu subconsciente registrara e berrava aos seus ouvidos: uma grossa e pesada cortina diante de cada janela e a total falta de espelhos num apartamento feminino. Sentou-se novamente, mais satisfeito ainda consigo mesmo, e ficou a imaginar como seria sua noite de amor com Kamille. Por momentos, até esqueceu que tinha apenas umas poucas horas para pagar sua dívida, ou o Mercador iria querer o seu sangue.

01:30 h.

Dolores bateu de leve na porta da entrada de serviço e ela logo se abriu. Kamille sorriu para a cantora, e as duas trocaram um longo olhar apaixonado.

- Tudo conforme o previsto? - perguntou em voz baixa, enquanto entrava na cozinha.

- Tudo - respondeu Kamille, fechando a porta novamente - O tonto não desconfia de nada.

As duas nem perceberam que Mata-rindo observara tudo do outro lado do corredor.

- "Que estranho. O que será que está acontecendo por aqui?" - pensou.

Encostou o ouvido na porta por onde Dolores passara um minuto antes, e como não ouviu nada, retirou uma gazua do bolso da calça e começou a tentar abri-la.

01:40 h.

Kamille entrou na sala com dois copos de uma bebida que parecia ser leite. Estava maravilhosa, vestindo apenas uma camisola transparente. Paulo deu um pulo do sofá e ficou de boca aberta a contemplá-la. Aproximou-se e enlaçou-a pela cintura, colocando a pequena bandeja na mesinha ao lado do sofá.

- Meu Deus, Kamille, você é a mulher mais deslumbrante com quem já estive...

Ela apenas sorria. E se ele não estivesse tão ocupado em explorar aquele corpo delicioso com as mãos, teria percebido que aquele era o sorriso de uma caçadora. Agora, ele era a caça.

- Calma, querido, temos muito tempo para isso... - ela se desvencilhou dele e pegou o copo em cima da mesinha - Antes, gostaria que você provasse essa bebida. Vai ver como é diferente.

Ele pegou o copo, levantou-o e comentou:

- Mas isso parece leite. Você vai me dar leite para beber?

- Beba, você vai gostar...

Ele bebeu tudo, de um só gole. Tentou dizer algo, pendeu para os dois lados, e caiu desacordado em cima do sofá.

- Gostou do "Moloko", meu amor?... - brincou ela, fazendo um carinho no homem desacordado.

Dolores entrou na sala, trazendo uma corda. As duas amarraram firmemente o rapaz com as mãos nas costas e o colocaram sentado, apoiado ao encosto do sofá. Kamille aproximou-se de Paulo, mordendo levemente seu pescoço. Sentiu o cheiro do sangue que brotou discretamente dos dois pequenos furinhos, e pareceu deliciar-se.

- Ah, que gostoso... - olhou para Dolores - Você ainda não sabe como é maravilhoso o gosto de sangue fresco, minha querida, mas em breve teremos mais esse segredinho para compartilhar...

Dolores aproximou-se dela por trás e abraçou-a, puxando seu rosto para si. Foi um beijo selvagem.

01:50 h.

Mata-rindo inspecionou rapidamente a cozinha e a área de serviço do apartamento. Estava de arma em punho, sabia que algo muito estranho estava acontecendo ali. Na cozinha, deteve-se em frente à geladeira. Estava com fome, abriu a porta, e se deparou com algo mais estranho ainda: várias embalagens de um líquido viscoso e vermelho estavam enfileiradas na parte do freezer. Mata-rindo pegou uma das embalagens e assustou-se ao perceber o que era aquilo: sangue. Ainda dava para ler o nome da Santa Casa de Misericórdia nas embalagens.

- Mas que porcaria significa isso? Sangue para transfusão?...

Ouviu um baque surdo vindo do outro cômodo e encaminhou-se na ponta dos pés pelo extenso corredor. A cada passo podia ouvir mais nitidamente as vozes que vinham da sala. Ao tranpor a soleira, viu uma cena assustadora, que jamais imaginaria pudesse ser verdade, se alguém lhe contasse: Paulo estava deitado no sofá, e sobre ele, o que parecia ser o corpo de uma mulher. Mas, quando ela se voltou, ao pressentir sua chegada, Mata-rindo abriu a boca num grito de pavor que ecoou no prédio inteiro. Não era uma mulher, era uma "coisa" horrível. Um monstro de aparência medonha, com sangue escorrendo pela boca, apontando-lhe as garras e rosnando como Mata-rindo nunca ouvira um humano rosnar. Por um instante apenas, ele esqueceu que estava com o revólver na mão. Tempo suficiente para que Dolores, que estava fora do seu campo de visão, se jogasse sobre ele e o desarmasse.

Ainda tentou desesperadamente lutar por sua vida, mas a criatura se aproximou velozmente e decepou-lhe a cabeça de um só golpe.

Dolores gritou ao perceber que a cabeça de Mata-rindo voara longe. Pareceu em estado de choque, ela nunca vira alguém morrer antes de forma tão violenta. A criatura olhou raivosamente para ela, que tratou de engolir o choro e se acalmar.

02:15 h.

Aos poucos, Kamille foi voltando ao normal. A transformação foi acompanhada atentamente por Dolores, que conseguira dominar seus nervos.

Depois de saciar-se com o sangue fresco de Paulo e de Mata-rindo, Kamille ajudou Dolores a arrastá-los até a banheira, previamente cheia de ácido sulfúrico. As duas observaram os corpos desaparecendo em meio às bolhas que subiam do líquido.

- Pobre golpista pé de chinelo... - disse Kamille - Achava-se irresistível, mas na verdade era um ingênuo. Você tinha razão, Dolores, foi muito fácil enganá-lo. Ah, os homens, esses pobres-diabos...

O cheiro de carne derretida inundava o ambiente, mas as duas pareciam nem notar.

- O que restar deles caberá sem dificuldades dentro de uma mochila - comentou Kamille - Depois você se livra do que sobrar, minha querida.

Dolores olhou suplicante para ela.

- Quando você me tornará imortal? Não esqueça da sua promessa...

- Eu sei, eu sei. Não tenha pressa, Dolores. É melhor você aprender primeiro tudo o que há para saber sobre nossa raça. Isso evitará muita dor. Não quero que você passe por tudo o que eu passei, sozinha e sem experiência... Foi terrível, querida. O cretino que me transformou nisso me abandonou e eu tive que me virar. Você, não. Vai aprender direitinho como tudo funciona, e só então eu te farei igual a mim.

Os olhos de Dolores brilharam de satisfação.

Kamille chegou mais perto de Dolores.

- Enquanto esse dia não chega... Vamos nos divertir muito!...

A risada das duas cortou o ar como um açoite.

A noite é uma criança, e como dizem, o mundo é das mulheres...