Amor na cor rubra
1
Logo que você acorda e abre os olhos, percebe que a pessoa que está ao seu lado não é a pessoa que você esperava que fosse. Durante muito tempo se sentiu sozinha e abandonada como se estivesse sendo ignorada pelo destino ou pelo cupido - que até aquele momento tinha ouvido, e muito bem, suas preces para lhe deixar em paz. Foram dias em que você passava ao lado de casais risonhos e desejava que uma unha dela quebrasse bem no momento em que estivesse transando, ela chorosa pediria que parassem deixando-o na mão, literalmente. Em alguns dias você desejava que ele tivesse “jantado fora” e quando fosse procurá-lo, dissesse que estava com dor de cabeça. Você no fundo gostava de ser a vilã.
Aquele dia completaria dois anos que estava solteira; chovia e você aguardava na parada do ônibus, se espremendo para não se molhar como as outras pessoas; viu quando ele se achegou do seu lado enquanto as gotas de água do guarda-chuva dele caíam em sua pasta cheia de documentos importantes, do trabalho, algo que você veria na mesma noite, – observa discretamente e imagina como seria o beijo daquela boca de lábios tão sedutores – como se não tivesse mais ninguém no mundo e totalmente absorto em seus pensamentos, ele simplesmente tomou o primeiro ônibus e se foi.
A partir daquele dia nunca mais o esqueceu e o procurou na mesma parada em vários horários.
Decidida a esquecer o que não era seu para ser lembrado, procurou uma boca, semelhante àquela boca que tanto lhe havia cativado em pensamento, outro cabelo talvez tão macio quanto o cabelo dele, outro corpo tão quente quanto ao corpo que você nem sequer sabia dizer como era. Contudo, o que seria imaginar um corpo quente? Imaginar o corpo dele?!
Passava do meio dia quando você desceu para fumar um cigarro e tomar o café que tanto gosta, estava de dieta e não iria almoçar. Fumar pra você é tão prazeroso quanto sexo. Aquela sensação deleitosa, salpicada de tesão quando o filtro do cigarro toca seus lábios e o prazer calmante que lhe toma o corpo no momento em que se segue a tragada junto ao cheiro inebriante da primeira queima do fumo só lhe podia ser comparado a dois momentos; o primeiro quando ele tenciona seu corpo másculo sobre o seu e com a mão firme abre sua perna enquanto te beija, lentamente introduzindo sua virilidade em seu corpo quente, sedoso e úmido – O segundo é quando seu corpo perde o controle e os espasmos involuntários a dominam, fazendo-a tremer por conta do êxtase completo que jorra incontrolável de dentro de si enquanto ele ainda permanece dentro de você.
Devaneando sobre qualquer coisa com o cigarro queimando na mão nem sequer percebeu quando o estagiário novo da empresa, aquele rapaz moreno de cabelos pretos liso com olhos negros que você havia contratado, parou ao seu lado e desejou-lhe um “bom dia” também ascendendo um cigarro. Você mais que depressa para não ser chamada de vários apelidos carinhosos por seu novo funcionário, passou a ter com ele uma conversa trivial sobre qualquer coisa.
Num lapso da carência notou o quanto ele era bonito, ou foi apenas a sua carência que decidiu te pregar uma peça e notou a beleza dele por você.
Nunca se deve ir com fome ao supermercado, resmungou para si mesmo enquanto olhava como a calça social que ele vestia deixava ver a perna torneada e o volume latente entre as pernas. Viu a camisa slim sufocando os braços trabalhados em longas horas de academia. Olhou para seu rosto firme com traços de homem viril e convicto; um garoto no corpo de um homem. Foi assim que você o viu pela primeira vez – se tivesse a curiosidade de contar, coisa que ninguém tem, saberia que era a trigésima sexta vez que o via naquele dia.
Ele era muito novo para você; tinha apenas dezenove - não um desses moleques de dezenove anos que parecem ter quinze, não - e já estava no quarto semestre de publicidade. Você com trinta e nove comanda um departamento de criação há quatro anos, uma mulher madura.
Quem se importa com isso?! Você pensa recordando das vezes que leu sobre a Grécia Antiga onde os senhores aristocratas possuíam seus escravos, assim como Maria Antonieta e tantos outros não famosos. E quem haveria de se importar se ele dormir uma noite em minha cama?
Eis que vem à lembrança “dele”. O homem que um dia lhe seduziu inconscientemente somente com a sua existência. Ele roubou muito de seus pensamentos mais libidinosos. Por onde ele andaria naquele momento? Será que era gay? Casado? Tinha filhos? Morava só ou com os pais? Como será que era seu sexo? Será que ele me viu?
As últimas tragadas no cigarro foram acompanhadas pelas últimas tragadas do estagiário que a prontamente fez a volta até sua sala contigo. No elevador enquanto subiam, deixou transparecer qualquer coisa amorosa e se atentou ao que aconteceria. Ah, como se sentiu tola naquele momento quando o viu sorrir e dizer que têm namorada e adoraria sair contigo para que pudesse apresentá-la. Constrangida, você sorri e aceita o convite com cortesia. Não poderia fazer tal desfeita com o garoto.
– Claro, será um prazer. Você diz mas desejando que ela tenha cólica eterna.
Mais uma vez se sente recusada e por um momento desconta toda sua ira e frustações no pobre do rapaz sem que ele perceba. E o pobre nada tem a ver com tudo o que tem passado. Se recorda da sua mãe olhando por detrás dos óculos fundo de garrafa com aquele lenço florido na cabeça, as rugas que já compõe todo seu rosto e seu cabelos alvos como a neve, dizendo que “sua beleza seria o montante que arrecadaria com o passar dos anos, pois somente a beleza e o amor por si só não compensaria nenhum interesse”. Ela estava certa e você percebeu com o passar dos anos que unicamente seus olhos claros, seu cabelo louro, seus seios firmes e macios, e seu sexo oral não resultavam em quase nada. Tinha de ter algo a mais. Tinha de ter dinheiro.
Isso mesmo, meu jovem! É o pensamento mais estúpido que veio a sua mente em anos, contudo você decide leva-lo ao pé da letra.
E pagou uma, duas, três, quatro, cinco, seis, dez, vinte, vinte e cinco, quarenta, cinquenta e cinco vezes por puro prazer. E cada vez que pagava sentia que mais fria e vazia você se tornava. Já não queria mais beijos, abraços ou caricias. Desejava homens mais truculentos e grandes. Queria gozadas fartas e viris. Você se tornou uma pessoa que sobrevivia e não mais vivia.
2
A noite que iria comemorar seu aniversário começou fria e sem graça.
Naquela época do ano, os bares da cidade quase todos estavam lotados por se tratar de época de férias. Em Alguns lugares as filas de espera poderia ser bem longa e fastio, outros lugares nem reservas antecipadas poderiam ser feitas. Dentro dos bares, os ambientes estavam finamente decorados com os temas das festas de junho.
Algumas pessoas do seu trabalho haviam comparecidos com sorrisos falsos, presentes ruins, perfumes doces de causar engulhos ou tonturas, maquiagem carregadas, penteados extravagante, além da fome voraz. Havia planejado aturar aqueles seres, que em sua opinião não faziam mais que a obrigação de prestigiarem mais um ano de sua vida por apenas duas horas; aquelas piadas sem graça, bafafá sobre o trabalho e a nova campanha da emissora de televisão, a renúncia do presidente de algum lugar que nem influenciaria na sua vida, as leis do espaço, você pensou que surtaria quando...
Ele chegou sozinho. O cabelo estava penteado para trás como os bons moços de família e homens maduros fazem, calça preta, sapatos, camisa polo amarela e aquele sorriso de homem formado – a barba dele estava crescendo, é era muito mais belo com ela. O perfume dele te inebriou e quando ele te envolveu no seu abraço para lhe felicitar, sentiu-se como fosse um filtro de barro velho que contém água parada por muitos dias e precisa ser descartada para que seja lavado e entornado de água limpa e pura. Aquele abraço purificou toda sua vida e você se sentiu limpa novamente. Suas forças negativas foram subtraídas e algo que há muito tempo não sentia, tornou a sentiu. Amor.
Ocultou com a ponta do dedo a lagrima que malinou seu rosto, Escondeu uma vinda seus olhos claros e quando questionada, citou o paradoxo da vida na breve explicação de uma lembrança que veio de supetão naquele momento, dizendo que muitos anos atrás ela era tão jovem quanto aquele rapaz, agora havia notado o quanto a vida havia passa tão rápido, “um piscar de olhos”. Durante alguns segundos os presentes se calaram como se toda amargura e sabedoria oculta por detrás daquelas palavras tivessem pesado sobre eles. Quem quebrou todo aquele marasmo filosófico foi o estagiário levantando o copo de cerveja e saudando sua nova idade com um brinde.
Ao final da festa, você o levou para casa e ele a tomou nos braços dentro de carro e te penetrou com ímpeto e ferocidade de maneira muito mais prazerosa que qualquer um daqueles outros que você tinha pagado. E quando ele gozou em sua barriga, deixou-se deitar sobre seus seios e você o acariciou sentindo o cheiro de seu cabelo desgrenhado. Ele era puro. Ele havia acabado de lhe dar novo sentido de vida.
- Está feliz? Você pergunta acariciando o cabelo dele. É macio o cheiro é bom.
- E por que não haveria de estar? Ele rebate.
- Sua namorada...
- Ex! Ele diz.
- Hm. E o que quer comigo? Você finge de desentendida.
- Você, nua em minha cama todas as noites. Ele responde subindo em cima de você e te penetrando novamente com mais desejo que antes.
Talvez ele fosse a luz no fim do seu túnel.
3
Logo que você acorda e abre os olhos, percebe que a pessoa que está ao seu lado não é a pessoa que você esperava que fosse. Não tem o mesmo olhar, nem a mesma boca, muito menos o mesmo corpo, contudo você está com ela.
De início ela não parece atraente em nada, contudo olhando uma segunda vez você sabe que ela pode ser mais do que você precisa e muito menos do que ela merece. Você sabe que já não é tão jovem quanto antes e não ama da mesma maneira.
Vivendo a dois e ocultando seus desejos mais impetuosos com Ele. Você sonha com todas as noites com aquela boca que não teve a oportunidade de conhecer; que não tocou e nem tocará seu corpo. A pele amarela “dele” te cativou aquele olhar semimorto ao qual pode ver de relance, os cabelos pretos como a noite mais escura, as mãos grossas e o cheiro do perfume adocicado.
Quem era Ele?
Vagamente agora se recorda de um pequeno broche de ônix que havia em sua lapela, um emblema estranho diferente de tudo que havia visto. Não conhecia aquela marca – talvez fosse novidade no mercado – iria procurar saber.
Na cozinha a chaleira apita, parece a Maria Fumaça pronta para sair. Você olha novamente para aquele corpo estendido em sua cama, corpo moreno que há um ano está com você. Você o viu completar vinte anos, esteve na festa de aniversário, deu-lhe um relógio caro e depois foram para casa onde ele a tomou nos braços e levou-a ao clímax por três vezes.
Ele dorme profundamente.
A noite anterior não havia sido tão agradável quanto pensavam que seria. Entre uma festa e outra, uma discussão, uma transa forçada e cada um para um lado na hora de dormir. Parecia estar mergulhado num daqueles sonhos que você não está presente e que traz a ele a sensação tão esplendorosa quanto se você estivesse – a mesma de quando eram namorados.
Ele a ama, mas você não ama da mesma maneira. Ele te deseja, mas você não o deseja tanto quanto antes. Ele faz amor contigo pensando somente em você, mas você faz amor com ele pensando no outro que lhe estendeu o guarda-chuva na parada de ônibus aquele dia depois do trabalho.
Você encaminha até a cozinha, desliga o fogão e coloca a água quente na caneca de louça que comprou junto com os pratos e talheres em uma loja qualquer. Porcelana, não de boa qualidade quanto você gostaria que fosse. Lastimável, sua vida caminha de maneira que você não havia pretendido e de maneira que você não desejava que caminhasse. Estava findando seus dias e agora a certeza de que não iria mudá-la era latente – ou concreta?
Sentou-se à mesa por um tempo.
Nesses dias vocês têm brigado muito. Ele valoriza às amizades e você diz que elas não têm acrescentado nada na vida dele e que deseja que ao menos ele se afastasse daquele tipo de gente. Ele esculacha em sua cara a verdade que o tempo passou pra você e simplesmente as amizades deles são as mais modernas possíveis e que seu networking é fundamental para suas relações futuras. Você sabe que não é verdade, tem mais experiência; conhece o terreno que ele está caminhando, sabe que os grupos de amizades em seu celular sempre fervilham convites as boates, bares e pubs. E isso você percebe de verdade, mas ele nem mesmo se dá ao trabalho de notar. Não se importa. Você receia perdê-lo.
Consequência do tempo que lhe trouxe alguma evolução.
Verdadeiramente, no fundo você o ama, e se nega ao fato de tentar deixá-lo viver a vida dele da forma que deseja; Sabe que ele não irá embora, agora que ancorou em seu cais e isso você percebe quando ascende seu cigarro na janela da sua casa, alugada, com a xícara de chá na mão. Está quente demais pra sorve-lo, mas ainda assim você o faz por conta do prazer de toma-lo quente.
Observa o céu cheio de nuvens e percebe as minúsculas gotículas de água que mansamente vão caindo daquele oceano cinza escuro. Irá chover forte dentro de poucos instantes e você estará ainda tomando seu chá e fumando seu cigarro na janela de casa quando ele acordar em seu ritual matinal, irá até o banheiro, ligará o chuveiro, mijará, voltará até onde você está e lhe dará um beijo de “bom dia”, vai tomar o cigarro de suas mãos e vai fumar um trago, depois irá devolve-lo e vai banhar.
Eis que sua insignificância surpreende a cada manhã e você se recorda do carnaval daquele ano em que ele saiu de sua casa decido a não mais voltar. Você não sabe, mas o fato dele ter terminado com você foi simplesmente para aliviar a tensão que estava sendo o relacionamento. Não sabe que ele ficou na casa da mãe dele o feriado inteiro com o celular desligado mentindo que havia ido para Salvador.
Suas crises ferrenhas de ciúmes munidas com as brigas cansativas por futilidades, ligações misteriosas de pessoas ainda mais misteriosas, pessoas novas no Facebook dele, ou comentários indecentes em seu Twitter. Coisas tolas que não levam a lugar algum, mas que de um jeito peculiar ele fazia questão de lhe ferir para que sentisse na pele o que ele também sentia.
Você pensou em não voltar mais com ele, mas ao quinto dia, ele te ligou. Conversaram como se nada tivesse acontecido e então ele pediu para ir a sua casa. Na verdade você convidou-o para ir e ele aceitou de uma maneira que você achou irritante e irônica. Ele foi e cozinhou pra você macarrão de panela. Depois do almoço conversaram e decidiram voltar. Pra você foi bom, mas para ele você nunca soube e jamais ira saber. Ele decidiu esconder seus sentimentos, mente e é orgulhoso. Mas ainda assim você está com ele.
Na noite seguinte se falam e combinam de se encontrar no dia seguinte para ele dormir em sua casa. Ele o faz e quando chega cozinha novamente pra você. Dessa vez lasanha. Vocês chegam do trabalho cansados. Logo que se banha e entra no quarto, o vê remexendo nas panelas de casa. Sente mais amor ainda. Contudo, agora já não consegue identificar o que ele sente. E para ele, você já não transparece tanta ternura assim. Vocês jantam e fumam. Quando vão se deitar, você está morrendo de vontade de abraçar o corpo dele e de fazer amor. Mas a primeira palavra que sai daquela linda boca é uma reprimida drástica ao seu desejo; Ele diz para não se empolgar que ele está cansado e irá dormir, pois tem de trabalhar no dia seguinte.
Você sente que todas as pragas que um dia jogou nos casais que passavam por você na rua, recaíram sobre ti.
4
Você acorda em um dia de sol, com a cabeça explodindo. Dói muito relembrar o que aconteceu de fato. As imagens vêm em sua mente como se fosse flash de um filme de terror, onde as mulheres histéricas gritam sem parar quando uma mosca alça voo em direção a elas. Você sempre detestou mulheres em filmes de terror, pois são fracas demais para sobreviverem e as que sobrevivem na sequência do filme acabam morrendo logo no início.
O café que você preparou está extremamente forte. Ainda assim você o bebe como se ele fosse curar sua dor, sabendo que no fundo nada que possa fazer irá sanar tal ferida; é só questão de tempo até ela piorar.
Você banhar-se e enquanto faz isso sente no peito pequenas agulhadas que dilaceram não o corpo, mas sua alma quebrantada de ternura e amor despedaçado. Enquanto você se banha, procura a escova dental que está no armário do banheiro, o mesmo que ele colocou pra você quando estavam juntos. Mais uma lembrança que deseja esquecer. Com pequenos e suaves movimentos você escova os dentes e vai sentindo algo quente escorrer de seus olhos contrastando com a água gelada que cai do chuveiro. Você chora não por solidão ou pelo acontecido, mas por ter dedicado tanto amor a uma pessoa.
Brincar com sentimentos é desumano e irracional; somente os idiotas o fazem. É assim que você pensa enquanto senta no chão do banheiro e chora; chora muito.
Lentamente em sua mente vêm os indícios que você não quis ver. Três meses antes quando ele comprou outro celular e trocou de número por vontade própria, você não podia mais ligar pra ele direto pois era de outra operadora e querendo ou não as tarifas eram diferentes e muito mais altas. Mesmo com um bom rendimento sempre procurou ter fundos e não esbanjava no que não era necessário. Você passou a falar pouco e quase sempre o necessário, e passou a perceber que ele falava mais com seus amigos que o comum; as vezes horas. Bônus e créditos gastos às vezes em uma simples ligação para perguntar se o futebol estava de pé ou se a galera iria se encontrar “na casa do Jorjão pra tomar aquela cervejinha geladérrima”. Quando falavam do trabalho usavam uma língua muito formal. Eram memorando, ofícios, pastas, subpastas, entre tantas outras coisas.
Vocês tinham mudado de setores. Ele agora havia assumido uma pasta dentro da organização, por indicação sua e por merecimento dele. E para não ser a esposa chata, não procurava saber de suas particularidades.
De repente ele começou a chegar tarde em casa e na maioria das vezes voltava e nem se falavam. Ele ia para o banhar-se e você continua na sala assistindo a TV. Um simples “boa noite” já estava de bom tamanho pra ele. Pra você que o aguardava, doía mais que uma facada na alma já que tanto desejava um beijo e um abraço, afinal você passou horas cozinhando o jantar que ele gosta, do jeito que ele gosta, com os temperos que ele gosta...
Tudo havia mudado. Dois anos juntos e tudo havia mudado. O rapaz apaixonante que você havia lhe conquistado ao meio dia, fumando, se transformou no estranho que dormia ao seu lado todas as noites. Aquele que foi um dia sua salvação do mundo frívolo que levava, agora a sepultava com vida dentro da rotina e do descaso.
Você se atenta que as semanas passam como o piscar de olhos. Seus cabelos já não brilham mais, as rugas que você nunca teve, mesmo com quarenta anos, agora começam a aparecer, suas mãos estão ficando fracas e sua saúde começa a dar sinais de declínio. Você olha para ele e o vê ficando cada vez mais próximo e ao mesmo tempo mais distante. Entre noites envolventes de carinho e sexo, a noites de brigas e discussões fúteis. Ele reclama que a casa está suja. Você por sua vez diz que ele não larga do pé do Jorjão pra nada no mundo. Ele fala que você não faz nada enquanto você retruca que ele vive pro trabalho e não lhe dá mais atenção. Na mesma noite vocês fazem amor e no outro dia tudo parece estar em paz novamente. Pelo menos até ele chegar do trabalho, cansado, e cheirando a cerveja e cigarro, além do perfume barato que você sente em sua roupa;
Ele fica cada dia mais jovem. Você sente que caindo enquanto ele se levanta.
Mas naquele dia ele lhe convidou pra sair e você prontamente aceitou. Fazia muito tempo que isso não acontecia. Ele estava alinhado como sempre e você pela primeira vez se sentiu muito velha para estar ao lado dele. Sorria muito, seus olhos cativavam os olhares de outras pessoas e você tentava esbanjar charme e graciosidade.
Vocês jantam. Comida chinesa. Você detesta comida chinesa. Pensa muito nos cães que eles comem, na carne de cavalo, nos gafanhotos, baratas, grilos e sente náuseas do lugar e da cultura daquele povo. É asqueroso demais, você pensa. Mas ainda assim está feliz por estar ali com ele. Ele não sorri, nem te elogia, nem mesmo te abraça. Você não se importa. Ele está ali, depois de muito tempo você o sente, ali.
Ele foi pagar a conta e ainda não retornara; você pega sua taça e caminha até a sacada que tem no segundo andar do restaurante que dá para o jardim. Sente que é loucura pensar que tudo que viveu com o garoto que havia contratado, agora o homem de sua vida pudesse ser deixado de lado por tantas desavenças e comportamentos rotineiros de um casamento que parou na mesmice, na monotonia.
Você sente que é impossível acreditar.
A taça em sua mão é de cristal fino, do mesmo cristal que você desejava comprar com ele. Lentamente você repousa a taça em uma mesa vazia, vira-se e segue para o carro onde o aguarda. Ele chega, sorri, lhe beija vocês vão para casa.
Ele abre a porta da casa e a leva nos braços para o quarto, a deita na cama e tira seus sapatos. Ele toca seu corpo com a ponta dos dedos, enquanto acaricia seus seios com a outra mão, ele brinca com sua língua em movimentos circulares na sua perna. Rapidamente deixa seus seios e segura seu vestido com ambas as mãos e o rasga em um único puxão deixando seu corpo já não tão teso a mostra. Ele tira a roupa e deixa a mostra seu membro moreno. Lentamente ele sobe em cima de você, afasta sua calcinha com uma das mãos e sem nenhuma cerimônia, entra em você com força e violência. Você geme, não de prazer como ele pensa, mas de dor.
A dor que sente é muito mais da alma que do corpo.
Ele goza dentro de você e se demora dentro de você. Não, ele não irá te beijar e você sabe disso; a certeza vem seguida da saída de dentro de seu corpo. Em seguida o vê caminhar até o banheiro e o ouve ligar o chuveiro e entrar debaixo da água. É uma lágrima que corre por seu rosto. Teimosa, pois você bem sabe que não necessita chorar por quem não merece. Você se levanta da cama enquanto ele ainda se banha e pega a calça que está no chão; olha um bolso, outro bolso, mais outro bolso e por fim outro bolso.
Um pedaço de papel amassado. Um guardanapo que poderia passar despercebido por você na hora de jogar a roupa suja na máquina de lavar ou mesmo quando estivesse varrendo a casa; um pedaço de papel em que se pode ler “Você faz tudo parecer mais fácil. Com você eu iria até o fim do mundo. Fica comigo de novo?”. É a prova de que tudo estava terminado a muito tempo e você não percebeu.
Você se senta na cama incrédula, tremendo e tentando segurar o pranto que rola sem parar de seu rosto marcado pela dor da desilusão e da traição, enquanto amassa o pedaço de papel que culminou em sua volta à realidade. O homem que julgou que a amava já não a amava mais. Você suspira ainda tremendo, enxuga as lágrimas, ascende a luz do quarto e se olha no espelho. Você se senta acabada, destruída, vivendo nas ruinas da mulher que um dia foi.
Ele está terminando o banho.
Você vai até a cozinha e olha da janela para a rua. Ele está lá, olhando para a entrada do prédio que você mora. A camisa preta, calça jeans azul escuro. Você sabe que é ele por nunca ter esquecido aquele cabelo castanho de homem viril. Entretanto, deixa-o de lado e abre uma das gavetas do armário novo que comprou há dois meses e pega a faca de cabo de madeira. “Como se mata porco filha?” Foi a pergunta que um dia seu pai fez quando criança. Você se recorda dela e responde:
- Primeiro pai, você o segura. Ele sai do banheiro e te encontra parada de frente a porta sorrindo com as mãos para trás do corpo. Segurando a toalha com uma das mãos ele seca o cabelo enquanto, com a outra te abraça.
- Depois, você levanta uma das patas e perfura o que seria em nós, a axila. Você continua a responder para seu pai, enquanto se desvencilha do abraço daquele que um dia foi seu amante, amigo e salvador; cravando a faca em seu peito logo abaixo da junção da costela, de baixo para cima e empurrando com toda a sua força. Ele solta um apenas um único gemido e escora na parede. Você não deixa que ele caía e com esforço o segura depositando seu corpo no chão sem retirar a faca de seu peito.
Então, senta-se ao seu lado e chora.
Você o amou.
Novamente você o toma nos braços e o carrega até a sala, colocando-o sentado no sofá. Agora o cheiro de seu corpo ainda é mais forte e ele se torna mais quente. Mesmo morto você o desejou uma última vez. Cerrou seus olhos e tocou seus lábios vermelhos. Em seguida você vai até a cozinha e pega uma garrafa de absinto que ele pediu para que você comprasse e derrama sobre o braço do sofá e sobre o tapete. Você chora e se pergunta o porquê dele ter feito tudo aquilo.
Você poderia ter simplesmente terminado. Eu entenderia. Você diz baixinho em seu ouvido enquanto acende o cigarro e coloca em sua boca. A garrafa da bebida você confere nas mãos daquele que tanto amou. Você tira a faca do corpo sem vida e vai até a cozinha, onde a lava e em seguida a guarda no armário. Por fim, você ainda chorosa, caminha até seu quarto e antes que feche a porta, pode ver o cigarro caindo da boca de seu marido direto no tapete encharcado de absinto.
Agora você se deita na cama e se enrola em seu edredom. Nada mais a de se fazer. O resto do trabalho, o fogo se encarregará de fazer.
5
Agora enquanto termina de se banhar, e se arruma para sair você se olha no espelho e mesmo com os olhos vermelhos de tanto chorar, percebe o quanto você é importante a você mesmo. Então, veste-se descentemente e antes de sair deixa um bilhete:
“Arrume suas coisas e saía de minha casa. O amor que eu lhe dei, você desprezou. Não lhe desejo felicidade, pois está você nunca terá se continuar assim, mentindo e enganando a todos. Mas lhe desejo sorte pra que ninguém faça contigo o que você fez comigo.”
E para finalizar escreve:
“Deixo também, explicito, pois encontrei o bilhete que ela lhe deixou, estava no bolso traseiro da sua calça. Li reli e peço que faça o mesmo; Lembre-se que você já feriu alguém que te amava muito. Vá com Deus e não retorne nunca mais.”
A vontade era de escrever “foda-se seu otário”, mas sua educação e bom senso não deixaram. E você sai para o trabalho, não de alma lavada, mas pelo menos com a consciência tranquila que você vai encontrar alguém muito melhor que ele. Nem que seja em outra vida. Então, você acende o cigarro e sorri.
Fim