Criadora x Criatura

Como sempre ele estava com seu terno impecável. Sentado com uma perna sobre a outra, as mãos juntas com os dedos cruzados, me olhou impaciente:

– Ah a senhora escritora ocupada arrumou tempo pra mim? Ocupado sou eu que tenho uma empresa pra manter. Agora anda, escreve minha história de amor que o tempo tá rodando.

– Baixa tua bola Oscar. Se eu quiser te mato agora mesmo. Eu posso tudo.

– Mata nada, o Walter mandou você não me matar e você faz tudo o que ele manda né serva?

– Tá aqui pra me insultar ou contar sua história de amor de merda? Se fosse terror ou morte seria bem mais interessante.

Liguei meu notebook. Ajeitei-me na cadeira. Abri o Word e fiquei esperando o mala começar a contar.

– Minha história tem uma dose de terror. Você sabe por que sou desdentado? - ele sorriu, mostrando os dentes alvos.

– Você não me parece desdentado com esse sorriso.

– Eu sou milionário, fiz implante queridinha.

– Tá seu chato. Por que você é banguela?

– Porque há muitos anos, minha família foi amaldiçoada por outra tribo. Então todos nós nascemos sem dentes.

– Aterrorizante… Olha nem vou dormir depois dessa. - ironizei. – Agora conta logo essa história.

– Como falei minha história é de amor. Mas não é o que você está pensando. Eu não me apaixonei pela comida. Isso não é amor, é jogo de interesse. Sejamos francos. Enquanto você transa comigo, te pago o jantar, te dou atenção e presentes caros. Do contrário, sou indiferente. O amor que retrato aqui é outro e você vai entender logo logo. - ele falando e eu digitando. – Você sabe, minha mãe morreu cedo e meu pai trabalhava demais, conduzindo a empresa, tornando o que ela é hoje. Então fui criado por minha avó. Ela me ensinou tudo o que sei, cuidou pra valer de mim, me ajudou a aceitar a nossa condição de desdentados e preparava cada ensopado delicioso, mas bem cozido para ficar mole e a gente esmagar com a língua, na falta dos dentes. Minha avó pegava comida congelada, roubando do necrotério. Eu prefiro fresca e mato meu futuro jantar. – ele fez uma pausa. – Pode por isso na minha biografia, não vejo nada demais matar a comida, afinal o leão faz isso todos os dias.

– E como você nunca foi pego pela polícia?

– Muito simples nesse mundo ganancioso e corrupto. Sempre molhei as mãos dos policiais. Dava alguns milhares dos bilhões que tenho e eles nem me importunavam.

– Entendi.

– Agora voltando. Minha avó ficou bem velhinha, andava com dificuldade e mal conseguia ficar em pé pra cozinhar. Então num ato de amor, de retorno por tudo o que ela fez por mim, a trouxe pra morar na minha cobertura, preparava suas refeições, cuidava dela com muito zelo, dava banho, lia para ela, a carregava escada acima para que ficássemos conversando enquanto eu trabalhava nos fins de semana. Fazia a comida bem molinha, já que ela se negou a colocar implantes. Dizia ela que não suportaria a dor. Todos os dias de manhã, empurrava sua cadeira de rodas pela calçada para que ela tomasse um pouco de sol e visse pessoas, conversasse com elas. Isso é amor de verdade, não o que esses casais dizem que sentem um pelo outro. Amor verdadeiro que todas as pessoas deviam ter pelos idosos que um dia foram jovens e cuidaram deles. ­– percebi que a essa altura ele chorava.

– Olha só por trás de um cara arrogante, existe um ser cheio de amor e gratidão por sua avó. E que chora! Sabia que a arrogância era só uma máscara sua.

– Eu não sou arrogante, só sei do meu potencial e do lugar que ocupo na minha empresa e na sociedade, gosto de esfregar isso na cara dos outros e os trato como devem ser tratados.

– Tá que seja. Como você mata suas vítimas?

– Isso não é pra por no livro.

– Eu sei, é só curiosidade minha.

– Bem, eu transo com elas, dou um último prazer e quando elas dormem, as decepo. A cabeça eu limpo e congelo para fazer o pirão. As costelas dão uma bela humana atolada. O bucho faço uma dobradinha. Tiro alguns bifes para fritar depois. Arranco os dedos dos pés e das mãos, limpo, retiro as unhas e faço fritinho, sua versão de mandioca frita ou batata frita. Com as palmas faço uma bela sopa, o caldo é uma delicia. As vísceras dão um belo churrasco na minha grelha. O que sobrar invento alguma receita, sempre deu certo e minha avó adorava. Confesso que às vezes quando vou comer tenho a sensação de que todos os implantes estão moles, se mexendo, como se fossem cair a qualquer momento. É psicológico, eu sei, mas pra quem já foi banguela, uma sensação dessa é aterrorizante.

– Olha só a fraqueza dele, tem problemas psicológicos, tadinho.

– Corta o deboche. Sobretudo sou uma pessoa como você, claro que tenho fraquezas. O que nos diferencia é o gosto exótico da comida.

– Anham, pelo menos criei um personagem cinza. – sussurrei.

– O que que você falou aí?

– Nada não!

– Tá, sei. Bom agora que te contei minha história mande pra uma boa editora.

– Quem falou em editora? Tô levando sua história pra aula de escrita criativa amanhã.

– Oi? Vai mesmo me levar pro Walter? Estive esse tempo todo com uma amadora, aprendiz, aspirante? Isso é um insulto. Se usar esse material vou te processar.

– Ah cale essa boca Oscar, seu merda, pois é essa amadora aqui que te deu a vida, um nome de escritor famoso, uma família e uma avó para você amar de todo coração e ter uma história de amor para contar. É essa amadora aqui que te deu sua empresa e todos os seus bilhões. Então toma vergonha na cara e me respeita. Eu te dei o sopro da vida e você só tá aqui agora porque eu permito que você viva. Agora, adeus, que eu preciso dormir. Amanhã levanto oito e meia e não tenho helicóptero para me levar pro curso.

Catei minhas coisas e saí batendo a porta. Oscar Martins ficou estarrecido com a revelação. Tá lá naquela sala, que entramos sem permissão, refletindo até agora.

Miliany Pellegrini
Enviado por Miliany Pellegrini em 19/12/2015
Reeditado em 20/12/2015
Código do texto: T5485480
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