O Presente das Trevas
Com lágrimas nos olhos e mãos trêmulas preencho as folhas úmidas de lágrimas do meu diário. Hoje completa o décimo segundo dia sem dormir. Não sei se consigo aguentar mais. Eu não acreditei, mas mesmo assim aconteceu. Caso eu não esteja mais viva, lembre-se do meu nome, Raquel. Noite após noite sinto a mesma presença, o mesmo cheiro, a mesma voz. Seus olhos ainda me observam e suas mãos parecem estar mais próximas a cada dia, quase posso ver seu rosto. Meu corpo arrepia.
Tudo começou em uma tarde, acho que era segunda, já não me recordo mais. Era pra ser um passeio, apenas um passeio, como sempre fiz. Eu devia ter desistido, devia ter voltado, sentia que havia algo errado. Foi naquele tronco de árvore que o encontrei, estava sujo, rasgado, sem cor. Era bonito, apenas precisava ser limpo. Talvez eu devesse tê-lo deixado lá mesmo, ou ateado fogo, sei lá. Agora mal sei onde pode estar. Sempre a noite, sempre na escuridão, sempre o mesmo ar frio, o mesmo cheiro de podridão. Lembro que na primeira noite ele ficava na minha estante. Observava-me dormir com seus ternos olhos negros de plástico. Às vezes encontrava afago em meu peito junto aos meus abraços carinhosos e carentes. Alimentava-se disso. Maldito. Na segunda e terceira noite já se podia perceber certas mudanças em sua cor, seu cheiro não era mais os dos meus perfumes. Parecia me encarar. Na quarta e na quinta noite que realmente começou. Eu já vinha sentido calafrios em alguns cômodos da casa, ouvia cochichos. Sempre que dava as costas para o escuro, sentia uma presença, algo que queria me puxar. Na sexta noite um cheiro de podridão apoderava-se do meu quarto, o frio me deixava doente, quase não saía mais da cama. E lá estava ele, me olhando de cima da estante. Sua cor era mais escura, seus olhos eram negros e profundos, seu cheiro era insuportável. Na sétima noite surtei, pulei da cama tomada por uma insuportável dor nas pernas. E lá estavam as marcas de mãos finas e longas, agarradas em minhas pernas pálidas e debilitadas por uma doença que médico algum diagnosticou. Corri para o quarto dos meus pais, mas encontrei a porta aberta e os lençóis espalhados, corri para o quarto do meu irmão e encontrei na mesma situação. Desci as escadas e fui para a cozinha, estava decidida a sair pela porta dos fundos e chamar meu vizinho. Ao sair, me deparei com três corpos boiando na piscina, cai no chão chorando.
As luzes da rua e das casas vizinhas estavam apagadas, um breu terrível impedia que eu visse a terrível situação. O cheiro insuportável de podridão era nada menos que corpos espalhados pelos pátios e ruas, rostos inchados, mas preservando a mesma expressão de terror, medo e agonia. Vermes gordos se deliciavam com os corpos, porém corvos e abutres mantinham-se longe. O frio era intenso. A única luz era minha lanterna.
Pois bem, aqui estou refugiada nesta capela, por algum motivo aqui não sinto o horrível odor, não ouço as vozes, nem sinto o terrível frio. De dia procuro alimento, e ajuda. A noite, corro novamente para cá esperando que alguém apareça e me resgate desse pesadelo.
Ele deve estar ainda lá, sobre minha estante, olhando para minha cama vazia. Maldito urso de pelúcia.
[Conto Reeditado]