Coágulos de Sangue.
Ela movia-se sorrateiramente pelas calçadas buscando as poucas luzes. Aquela noite o veleiro esqueceu-se de acender as velas de alguns dos candelabros que iluminavam as ruas. E a sombra buscava afastar-se mais e mais da claridade. A lua não brilhava, escurentas e cinzentas nuvens a encobria. Já se passava da meia noite. E ela caminhava em direção a casa, seus passos eram pesados, sua respiração ofegante, arfava de vontade de chegar logo. A mãe havia lhe avisado, para que não saísse, e de que não regressasse tão tarde. Mas ela não lhe deu ouvidos. Costumava dizer: “sou amiga da noite e companheira da escuridão”.
As trevas chegavam cada vez mais perto dos seus passos, enquanto que ela marchava firme, sem nem se quer olhar para trás, alheia ao que vinha lhe acontecendo. O ser sinistro espreitava sua caminhada, se enquadrando naquela tela lúgubre. E ela sentia um cheiro, mas teimava em não olhar para trás.
Ela chegou. A porta estava entre aberta. Olhou o interior da casa tudo no lugar. Avançou seus passos em direção aos demais cômodos. Do mesmo jeito nada que lhe chamasse a atenção. Foi até cozinha tomou um copo de água. Suspirou fundo e no silêncio tentou clarear as ideias. Será que esqueceu a porta destrancada? Será que alguém entrou? E sua mãe? Estaria bem? Perguntas iam e vim em sua mente. De repente o silêncio é cortado por um gemido vindo do quarto. Seus nervos gelaram, suas pernas perderam o controle quase a levando ao chão.
Moveu-se lentamente em direção aos gemidos. Sentiu todo o seu corpo arrepiar, como que se a morte passasse de leve por seus pelos. A cada passo sorrateiro que dava ouvia os pranteados aumentarem. Aproximou-se do quarto da velha mãe. E lá estava ela, deitada sobre a cama se debatendo num pesadelo frenético. Achegou-se da beirada do leito sacudindo a genitora, entretanto não percebeu a Sombra de mãos magras, dedos compridos e unhas pontiagudas, tampando lhe a boca, roubando-lhe a ar e a deixando-a desacordada.
Sangue, vermelho, viçoso e quente, esfriando naquele mármore. Um olhar sem vida direcionado para o acaso. Um risco de lagrima na pálida e jazida face. Os sinais pelo corpo demonstravam claramente de que a vida lutou bravamente com a morte, porém na pugna foi derrotada. O vento silencioso, o frio cortante, e o cheiro funesto poluindo o ar. Na tela pintada com assombro dois personagens. O ceifador e a ceifa. Nas mãos as garras ainda manchadas com a linfa escarlate. O cenário da mortuária mesclado com a beleza inerte. A sombra do sinistro cobrindo partes imaculadas. Talvez se ele não fosse à personificação do mal e ela a visão angelical. O contraste do horrível e belo. Do prazer e da dor, misturado agora apenas num ser.
Amanheceu, lento, magistral. Gotículas de orvalhos cristalizados e refletindo minúsculos raios. No meio do jardim da praça o corpo da jovem morta em cima do banco. Deitado como se dormisse o sono dos justos. Faltando-lhe, apenas a vida. Em casa o despertar da mãe, sereno, doce, ansioso e depois aliviado, quando olhou na porta sorriu, ao encontrar do lado de fora, uma caixa recheada de moedas de ouro mergulhadas em coágulos de sangue.