TRILHOS DE SANGUE (PARTE 03)
Muitas coisas passaram pela cabeça de Marcos. Não sabia o que pensar. João estaria pregando uma peça, ou algo terrível realmente estaria acontecendo? Incrivelmente a segunda opção era a que se recusava a sair de sua cabeça. De uma coisa estava certo, não poderia ficar ali esperando, deveria procurá-lo pelo imóvel. O garoto voltou ao seu quarto para pegar a lanterna, verificou se estava funcionando, afinal a bateria não havia sido recarregada desde que saíra para a aventura no trem.
- Eu sabia que não devíamos ter aceitado ficar nessa casa, eu sabia. – Pensou o menino, que apesar de ser o mais corajoso da turma, tinha lágrimas escorrendo de seu rosto pálido.
Marcos, com apena a luz da lanterna iluminando seu caminho, foi descendo as escadas do velho sobrado. Preferiu deixar os interruptores do andar de cima desligados, afinal se algo errado estivesse mesmo acontecendo, iria preferia que o casal de velhos acreditasse que ainda estivesse em seu leito. O andar de baixo se encontrava completamente escuro, e estava impossível enxergar um palmo a frente de seu rosto. Segurando no corrimão, foi descendo passo a passo os degraus com apenas as meias nos pés para evitar qualquer espécie de ruído. O feixe de luz oriundo da pequena lanterna fitava os degraus que pisava, e às vezes o menino até arriscava iluminar alvos mais longínquos com o objeto.
Quando se encontrava no último degrau, apesar de toda a escuridão que o cercava, percebeu que a porta do porão estava aberta. Devagar caminhou paulatinamente até ela. Seu corpo todo tremia. Marcos lutava contra si para buscar uma coragem interior que não possuía. Encostado na porta, o garoto passou a luz da lanterna lentamente pela pequena escada que dava ao solo. Por alguns segundos estava prestes a desistir e dar as costas à parte inferior da casa, quando então, escutou um gemido oriundo daquele lugar frio e pavoroso.
Nesse instante, Marcos sentiu um frio aterrorizante na barriga, e instintivamente virou-se mais uma vez na direção do porão. Respirou fundo, e começou a descer as escadas. Quando enfim chegou ao piso frio, passou a procurar com a lanterna o local de onde vinham aqueles gemidos horripilantes.
- Tem alguém aí? Estou aqui para ajudar. – Sussurrou.
- Hummmm... Hummmm...
Marcos sentiu um calafrio ao iluminar a região da qual vinha o som. Um menino gordo e rosado estava amarrado a uma cadeira, com os olhos e a boca rudemente costurados. Era seu amigo João.
- João, o que fizeram com você? Meu Deus! Não se preocupe eu vou te tirar daqui, vamos ficar bem. – Marcos sabia que não seria tão fácil assim, mas tinha que dizer algo para reconfortar o amigo. Ele tentou soltá-lo, mas foi em vão. Percebeu que só conseguiria se pudesse contar com alguma lâmina afiada.
Enquanto procurava uma lâmina, escutou vozes no primeiro andar se aproximando, e Luzes se acendendo. Desesperadamente o menino procurou um lugar para se esconder. A iluminação que agora passava pela porta, deixava o porão suficientemente clareado para que percebesse uma cama velha encostada em uma das paredes. Antes que o casal de velhos descesse até lá, conseguiu se jogar debaixo dela. Alda e Nicanor carregavam com muito esforço outro corpo, o do maquinista do trem.
- Ei seu velho burro, onde vamos colocar esse corpo? Se a cama estivesse aqui do lado poderia deitá-lo nela.
- Não reclame, ela está ali no canto, vou colocá-la mais perto do menino. – Nesse momento Marcos, entrou em desespero. Afinal se Nicanor arrastasse o leito, ele seria descoberto. Entretanto, quando Nicanor se posicionou para arrastá-la, a velha chamou sua atenção novamente.
- Não precisa, deixe-o em cima do freezer mesmo. Onde esta a faca? Quero minha faca seu idiota! – Nicanor olhou para uma parede que estava repleta de facas, cutelos, serrotes, entre outras coisas que poderiam decepar qualquer ser.
- Como não vi isso! – Pensou Marcos observando toda a cena.
- (Risos) Meu maquinista lindinho, você se importa se eu arrancar alguns dedinhos? Não? Responda-me seu infeliz dos infernos! – Alda estava loucamente furiosa. E de maneira sádica começou a decepar os dedos do cadáver, como se ele houvesse a ofendido profundamente. O velho apenas assistia.
- Esses velhos são doidos, preciso dar o fora daqui. – Marcos estava atônito. Ao mesmo tempo que era seduzido pela porta aberta para fugir, não poderia deixar de reparar o seu amigo agonizando a sua frente, sentado em uma cadeira e com o rosto repleto de costuras. Não seria correto larga-lo ali com aqueles lunáticos. – Enquanto pensava no que fazer, viu Alda guardar os dedos do maquinista em uma espécie de pode plástico.
- E você meu netinho, por que me abandonou? – Agora ela falava com João na cadeira. Era possível, mesmo com os olhos costurados, ver lágrimas escorrendo entre as linhas molhadas de sangue por sua roupa. – Você me fez tão infeliz, eu chorei tanto. Mas agora você não vai mais se afastar de mim, pois não pode mais ver. O que? Você ainda pode correr? Não pode não! Não pode! Nicanor segure a perna dele com força, vamos! – O velho prontamente agarrou a perna de João enquanto a velha apanhava o serrote pendurado na parede.
- Seu pirralho fujão, agora você não vai me deixar mais! Vovó não gosta de te machucar, mas isso é para o seu próprio bem. – Alda começou a serrar insanamente a perna da criança em uma altura um pouco baixo dos joelhos. O sangue jorrava enquanto ele se contorcia na cadeira agonizando em dor. Marcos chorava baixinho com os punhos cerrados.
- Não posso aguentar isso, eu não posso ficar aqui sem fazer nada! – Rapidamente o menino saiu debaixo da cama e correu pela porta aberta.
- O que? O outro fedelho está querendo fugir! Vá pegá-lo imbecil – Ordenou a mulher apontando para a porta, com sangue coberto por todo seu corpo, e João, já desmaiado a sua frente.
Marcos correu em direção à saída, mas a porta da frente do casarão se encontrava trancada. Ao perceber que estava sendo perseguido pelo velho, subiu desesperado para o segundo andar e se trancou em seu quarto. Poucos segundos após prender-se, Nicanor, do outro lado, passou a espedaçar a velha porta de madeira com machadadas grosseiras. O garoto começou a procurar algo que pudesse usar como arma, e em uma das gavetas encontrou uma faca de estilo punhal. Não tinha outra opção, ficou ao lado da entrada do quarto se escondendo para surpreender o velho. Mas estranhamente, o barulho do machado parara.
O garoto, outrora valente, precisou esperar alguns minutos até que criasse coragem para olhar através da porta. Vagarosamente foi colocando a cabeça entre as fendas criadas pelo machado. Nada. Achou melhor não arriscar olhar mais a fundo, e se afastou. Ao virar o rosto em direção à janela do quarto, percebeu rapidamente uma sombra sem movendo, e instintivamente saltou para trás com o golpe do machado que lhe acertou o braço. O velho subira até seu quarto tacitamente pela escadaria de emergência, rente a janela. Após o golpe, o braço esquerdo de Marcos teve o osso quebrado, e estava agora balançando solto, apenas ligado por nervos. Nicanor se posicionava para dar a machadada final, quando escutou algo que o distraiu.
- Ei seu idiota, você está destruindo minha casa! – A velha estava atrás do que sobrara da porta analisando o estrago. – Aproveitando o descuido, o menino segurou firme o punhal e cravou-o no pescoço de Nicanor, que soltou o machado e iniciou uma dança da morte pelo quarto jorrando sangue por toda a parte.
- Além de quebrar minha casa, agora a está sujando toda! – Resmungou a velha, pouco se lixando para o seu marido desfalecendo à sua frente.
Marcos foi até a janela ver por onde Nicanor havia subido, e percebeu que a escada atrás da janela descia até a grama rala do lado exterior do imóvel. Sem a ajuda de um dos braços, ele tentou desce-la, mas a chuva que caia atrapalhava demais o menino. As gotas que pingavam em seu osso exposto dependurado no braço eram como facadas. E em uma delas, o garoto despencou por uns três metros, caindo de costas no chão.
-Arggg... Preciso me levantar, não quero morrer aqui. – Disse a si mesmo enquanto se levantava e começava a correr de modo trôpego. Marcos não parou sequer para ouvir o que a velha o dizia da sacada.
- Alemãozinho “viado” desgraçado! Covarde! Volte aqui para salvar seu amigo balofo! – Talvez tenha dito até mais coisas, mas Marcos já estava longe demais para conseguir ouvi-la.
Alguns minutos depois, exausto, extremamente cansado, e tendo perdido muito sangue, não tinha mais forças para caminhar. Parou de frente para um barranco íngreme, e abaixo, muitos carros transitavam pela pista. Tentou gritar pedindo ajuda, mas não tinha voz. Com o corpo mole, percebeu uma luz se aproximando rapidamente às suas costas. Marcos não tinha forças para virar, e apenas fechou os olhos esperando o pior. Um carro em alta velocidade, com Alda ao volante, o acertou com tamanha força que o arremessou e o fez rolar pelo barranco.
O menino rodou várias vezes até parar ao lado da pista. Deitado de costas para o chão, e com os olhos voltados para o céu. Ele não sentia mais o braço, e a chuva que molhava seu corpo, de certa forma, era até acolhedora. Nada mais importava agora, ia morrer. Cerrou os olhos, e esperou, esperou, e esperou muito tempo. Entretanto não foi a morte que o saudou. Ao abrir os olhos, notou que estava sendo carregado de forma desesperada por uma mulher repleta de sangue.
Continua...