Alimento para um Imortal
Parte 1
O relógio marcava 18 horas. Jonas estava atrasado, havia dormido demais. Os sons da favela rodeavam seu barraco enquanto ele se arrumava. Seus trajes do dia a dia eram parecidos, geralmente velhos trajes sociais, que já haviam visto dias melhores, normalmente adquiridos ou em algum bazar de caridade de uma igreja próxima ou em algum de brechós de fundo de quintal. Não que ele não tivesse dinheiro para trajes melhores, ele tinha, porém como poderia ele andar bem vestido morando em um barraco na favela do chapéu vermelho? Bem, ele poderia se mudar para outro lugar de melhor status da cidade, é verdade, porém como poderia ele exercer sua função dentro do grande plano se não estivesse lá na favela?
Seu banho fora rápido. O pouco luxo de sua casa não o convidava a desfrutar de horas em banhos quentes. O cabelo, cortado a máquina e as roupas, já mencionadas, lhe permitia se arrumar com relativa facilidade.
O relógio marcava 18 horas e 20 minutos. Ele precisava correr para fazer sua busca. Apesar de oficialmente ele ser apenas um vigia noturno no prédio da assembléia do estado, sua real ocupação era o de conseguir jovens voluntários para os desígnios de um homem chamado Karl. Ele não sabia direito o quem realmente era Karl, nem quais eram os seus propósitos, nem qual seria o destino dos voluntários por ele angariados. Mas tudo bem, nesse trabalho às vezes a ignorância é sua melhor aliada e no final das contas, tudo o que ele sabia que é que havia todo mês uma bela recompensa lhe esperando. Uma recompensa que ele não podia gastar e que às vezes o fazia pensar se realmente aquele trabalho valia a pena.
Tão rápido quanto surgiam esses questionamentos tão rápido eles sumiam. Afinal, do que adiantava se questionar sobe isso? Não havia alternativa, ninguém abandona sua função para com seu empregador, o misterioso Karl. Nem mesmo com a morte seria capaz de livrá-lo de seu compromisso com Karl, embora Karl fosse capaz de propiciar tal alivio ao velho Jonas.
Limpando sua mente de quaisquer dúvidas ou questionamentos que o pudessem atrapalhar em sua missão, Jonas se encaminhou para uma das bocas fumo que se espalhavam pela favela. Pouco mais de dez minutos foram necessários através das vielas escuras para que ele chegasse naquele que seria a sua da noite, e começasse a procurar a sua vítima. Vítima não! Afinal, ele não matava, torturava, ou provocava qualquer dano aos seus voluntários, apenas garantia a eles uma chance de servir a um propósito maior.
Uma olhada rápida pelos cantos e Jonas encontrou o seu voluntário da noite. Um jovem, de pouco mais de 20 anos, aparentando ser um filho da alta classe média que dedicava sua vida a gastar os anos de sua juventude com drogas e mais drogas. Ele estava caindo em torpor por um canto do beco quando Jonas o pegou. O jovem então começou a esboçar algumas palavras do tipo “quem é você?”. Jonas porém sacou rápido uma das injeções que seu contratador havia deixado com ele ser utilizada exatamente nesses casos. Ele não sabia do que se tratava o conteúdo, apenas sabia que bastava uma picada para que o sujeito caísse em sono profundo.
Vinha agora a hora mais difícil, descer com o rapaz apoiado aos ombros pela favela até o seu carro, estacionado em uma das várias ruelas de acesso, sem levantar maiores suspeitas.
O relógio marcava as 19 horas em ponto. O rapaz já estava acomodado no porta-malas do carro de Jonas que ignorava o destino do novo voluntário enquanto pensava, “dificilmente esse sujeito duraria até os 30 mesmo com essa quantidade absurda de drogas que ele ingere” enquanto discava para a polícia, dando a localização da boca de fumo, como sendo supostamente uma nova boca na favela. Era perfeito. Bastava essa ligação para que os policiais invadissem a favela, gerando uma uma troca de tiros entre PMs e traficantes com várias vitimas. Depois de tal desgraça quem notaria o sumiço de um jovem drogado que resolvera se meter na favela no dia errado e na hora errada?
Em seu carro, Jonas então rumou para o centro, aonde chegou 40 minutos depois. “Karl já deve estar chegando”, ele pensou enquanto estacionava o carro na entrada de serviço e carregava o corpo do jovem para dentro...
Parte 2
O sol havia se posto há pouco tempo. A cidade ainda fervilhava toda vida por suas ruas e avenidas iluminadas pelas janelas dos escritórios (os poucos que ainda funcionavam àquela hora) e dos bares que fervilhavam. Um misto de sons brotava daquele coração de concreto, com pessoas máquinas, veículos e toda sorte de outros itens que habitavam aquele mundo moderno.
Ele caminhava por entre a multidão de maneira quase despercebida. Não que ele não estivesse ali ou que não fosse possível vê-lo. Claro que era, porém havia algo em seus trajes e em sua postura com que faria que mesmo um melhor dos observadores perder mais que meros 30 segundos para conseguir uma breve descrição.
Era fácil dizer que ele era alto. Não muito alto. Algo em torno dos um metro e oitenta e alguma coisa centímetros. Seus cabelos, longos e presos em um longo rabo-de-cavalo que se estendia até pouco abaixo do ombro, eram escuros, assim como seus olhos. Ele trajava um fino e elegante terno, completamente preto, com um corte único que lhe permitira entrar tanto em festa de alta sociedade quanto em um boteco mal iluminado do subúrbio.
Sem qualquer sombra de dúvida ele não era um sujeito qualquer, e seu nome era Karl. Apenas Karl. Muitos sobrenomes haviam sido utilizados para acompanhar seu nome durante os anos, porém todos se perderam e o único nome que perdurara fora o seu primeiro: Karl.
As pessoas caminhavam apressadas àquela hora. Na verdade as pessoas caminhavam apressadas a qualquer hora do dia. O relógio infalível do mundo dos negócios não permitia aos comuns o prazer de uma bela caminhada durante o dia para apreciar as maravilhas da cidade. Ele, porém não era uma pessoa comum e por isso sabia muito bem como investir alguns minutos de seu dia (ou noite) numa bela caminhada.
O relógio na esquina da rua mostrava que faltavam dez minutos para as oito da noite. “10 minutos adiantado” ele pensou enquanto atravessava a rua e se punha de frente ao prédio.
Era um prédio fantástico, sem qualquer sombra de dúvida. Seu estilo era eclético, embora houvesse um predomínio do neoclássico. Ele não gostava do eclético (afinal ou se gosta disso ou daquilo), porém ele se sentia atraído pelo neoclássico. Cinco minutos foram perdidos na contemplação do prédio. Não que ele nunca o tivesse visto antes, porém ele não era um homem que perdia qualquer oportunidade de descobrir um novo detalhe em qualquer ambiente que fosse obrigado a visitar tantas vezes no mesmo ano.
Passados os cinco minutos ele se pos a subir as escadarias. Chegando a entrada principal se deparou com um dos demais vigias da noite, um homem simples chamado Carlos.
“Boa noite. Estou procurando por Jonas” disse ao segurança.
Carlos já conhecia aquele sujeito. Seu nome como era mesmo? Ele não era capaz de lembrar, apenas sabia que de tempos em tempos aquele mesmo homem aparecia com o seu olhar inquisidor procurando por Jonas. Carlos não sabia o que aquele sujeito tinha, mas a simples presença dele o fazia segurar com força a guia que trazia ao redor do pescoço. Curioso que ele mal sabia ele que ambos possuíam o mesmo nome, porém em línguas diferentes... doce ironia do destino.
“Bo... boa noite senhor. Jonas acabou de chegar e ainda se encontra no vestiário. È... o senhor pode ir até lá encontrá-lo Senhor” disse Carlos tentando disfarçar o tremor ante a presença daquele homem.
“Obrigado” disse Karl adentrando ao prédio e seguindo em direção ao já conhecido vestiário dos seguranças, próximo a entrada de serviço. Vestiário esse que alcançou, com uma pontualidade de fazer inveja a qualquer britânico, pontualmente às 20 horas.
Jonas acabara de fechar o seu armário quando se assustara e gritara um alto e sonoro “Deus do céu!” com o súbito aparecimento de Karl.
“Ele não esta aqui agora Jonas. Você sabe muito bem disso. Diga-me, aonde esta aquilo que vim buscar?”, disse Karl enquanto se aproximava à passos suaves como os de um gato doméstico e ameaçadores como de um leão.
“No lugar de sempre, próximo aos contêineres de lixo na caçamba marcada com a letra que o senhor mandou”, disse Jonas que se afastava na mesma proporção em que Karl avançava. Era incrível como mesmo encontrando com Karl esporadicamente, Jonas não se acostumava a sua presença. Um frio no estomago, um aperto no peito, um tormento na alma... essas eram apenas algumas das expressões que Jonas poderia utilizar para descrever a sensação que sentia na presença daquele sujeito.
“Pois bem. Veremos”, disse Karl enquanto ambos caminhavam para o lixão a poucos passos. Karl então se pos a abri a caçamba, e ao verificar o jovem que lá estava em sono profundo exibiu um protótipo do que viria a ser um sorriso e disse “Branco, de estatura mediana de cabelos escuros... minhas congratulações, sei trabalho esta concluído por agora. Volte ao prédio antes que se levantem mais suspeitas”
Jonas não pestanejou uma segunda vez e retornou para seu oficio de fachada. Karl então puxou os braços do jovem e fez neles duas pequenas marcas que segundos após sumiram como se nunca tivessem sido feitas. Karl então tomou o pulso do jovem, seus olhos começaram a brilha e o corpo do rapaz a se dissolver. Poucos minutos depois a caçamba estava coberta de uma poeira negra sem qualquer vestígio do rapaz que antes lá estava.
Karl se virou e foi em direção a rua caminhar. Os bares ainda fervilhavam, e Karl agora se sentia como se houvesse acabado e degustar um banquete de um rei. A cidade o esperava, sua verdadeira missão o esperava, e sem pressa ele caminhava pelas ruas movimentadas da cidade.